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Sabemos que a História tem sido concebida de diferentes maneiras ao longo do tempo. Para a tradição historiográfica oci- dental, a História surge há mais de dois mil anos como um discurso específico, diferenciando-se do gênero literário por assumir um

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compromisso com a verdade. Heródoto, o historiador mais anti- go a quem os historiadores se remetem, anuncia o surgimento da História como um novo gênero, cujo propósito era registrar os fei- tos humanos para a posteridade. Esse gênero narrativo toma como parâmetro o compromisso com a verdade, para se diferenciar da literatura enquanto gênero, e a comprovação material, que o dis- tancia da filosofia, apegada ao mundo da especulação.

Assim, desde a origem, o historiador busca coerência entre aquilo que escreve e o acontecido, fazendo com que a busca da ver- dade se constitua em um dos aspectos mais marcantes do gênero histórico. Conforme as palavras de François Dosse, “as Histórias de Heródoto tornaram-se o espelho no qual o historiador não cessa de interrogar-se sobre sua identidade” (DOSSE, 2003, p. 15).

Uma das marcas dessa identidade está no fato de o historiador recusar para si a liberdade de criação conforme os termos do fic- cionista. O seu ofício pressupõe uma liberdade “limitada” no que diz respeito ao conteúdo de sua narrativa. Conforme Marc Bloch (2001, p. 75), “[...] os exploradores do passado não são homens completamente livres. O passado é seu tirano. Proibe-lhes conhe- cer de si qualquer coisa a não ser o que ele mesmo lhes fornece”. É inerente ao historiador o comprometimento com o vivido, embo- ra esse vivido só lhe seja acessível de forma indireta, por meio de vestígios.

Nos mais de dois mil anos de existência da História, o campo de atuação do historiador não apenas se expandiu, mas também se diversificou. Cadiou et al (2007, p. 172), tomando como referência o pensamento de Bédarida, afirma: “Mais do que um vasto terri- tório marcado pela diversidade, seriam territórios tão múltiplos

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e especializados quanto seus objetos”. São, portanto, diversos os campos de domínio (História econômica, social, política etc.) pelos quais transitam os historiadores.

As formas de se conceber e de se produzir o conhecimento his- tórico não dependem tão somente do que acontece no seu campo de atuação, mas também das transformações advindas da socieda- de em geral. A propósito, devemos ressaltar que o conhecimento científico, assim como qualquer outra forma de conhecimento, é também uma atividade social e que, como tal, não é fruto da ação de um indivíduo, mas das inúmeras experiências que se acumula- ram ao longo do tempo. Portanto, a construção do conhecimento histórico ocorre pelo acúmulo de experiências vivenciadas pelo conjunto dos historiadores, assim como das influências recebidas de outras áreas do conhecimento.

Em outras palavras, as particularidades do nosso ofício só serão compreendidas se for levado em consideração o lugar que cabe aos historiadores na sociedade e as condições em que se dá a sua prática, seja na escrita, seja no ensino. Para Michel de Certeau (2002, p. 66), “[...] a operação histórica se refere à combinação de um lugar social, de práticas ‘científicas’ e de uma escrita”. Essa escrita histórica se constrói em função da organização de uma instituição que obedece a regras que ela mesma institui e ao mesmo tempo as fazem valer junto aos seus membros. A instituição à qual nos referimos é a instituição social do saber (ou seja, uma sociedade de estudo), cujos contornos foram melhor definidos a partir da constituição dos campos de saberes em disciplinas acadêmicas/ escolares, ou seja, a partir da formação de grupos específicos para cada área do conhecimento.

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Conforme já vimos anteriormente, a História se constitui como disciplina escolar e o Ensino Superior opta por um ensino científico da História, que é pensado, construído e ensinado nas academias e nas escolas.

A História profissional sobre a qual aqui nos debruçamos tem sido fortemente marcada pelas instituições acadêmicas, especifica- mente pelo que ocorre no espaço universitário. A História produzida na universidade gera os conteúdos de ensino dos cursos de graduação e das escolas do Ensino Básico. Nas palavras de Keith Jenkins (2007, p. 44), esse tipo de História é expressão “[...] de como as ideologias dominantes formulam a história em termos ‘acadêmicos’”.

Jenkins, ao se referir às condições de produção da História, faz as seguintes afirmações: essas Histórias sofrem pressão de todo tipo (dos órgãos que as financiam, das distintas correntes de pensamen- to que acolhem no seu interior, das editoras e do público leitor); na produção do conhecimento, o historiador carrega consigo, consciente ou inconscientemente, as condições que determinam a sua prática profissional e que fazem com que o conhecimento por ele produzido tenha uma configuração específica, conforme a sua natureza. Assim, o conhecimento histórico sofre influência dos seus valores, posições e perspectivas ideológicas e dos seus pres- supostos epistemológicos de outros historiadores; os historiadores empregam vocabulários, categorias e conceitos que são próprios do seu ofício. Essas categorias, conceitos e vocabulários são impres- cindíveis para a compreensão da linguagem que é própria da sua comunidade; os historiadores adotam rotinas e procedimentos (métodos) para lidar com o material que irá trabalhar (modos de verificar a autenticidade e a veracidade das fontes); por fim, ao

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tentarem publicar as suas pesquisas, os historiadores sofrem pres- sões das mais diversas, principalmente das editoras que interferem nas formas dessas publicações (JENKINS, 2007, p. 45-48). Ou seja, da pesquisa propriamente dita à publicação de um texto, passando por todas as etapas intermediárias, o historiador é influenciado por seus pares e por órgãos da sociedade da qual faz parte.

A citação a seguir sintetiza a discussão que desejamos fazer acerca das questões relacionadas ao ofício de historiador:

A história está presente na nossa sociedade através de uma disciplina universitária, de livros e de algumas grandes figuras e por um grupo de pessoas que se afirmam historiadores com o acordo de seus colegas e do público. Esse grupo diversificado, compreendendo essen- cialmente professores e pesquisadores, está unido por uma formação comum, uma rede de associações e de revistas, assim como pela consciência nítida da importância da história. Além de compartilhar critérios de julgamento – sobre a produção de obras históricas, sobre o que é um bom ou ruim livro de história, sobre o que um historiador deve, ou não deve, fazer –, ele está unido por normas comuns, a despei- to de previsíveis clivagens internas. Em suma, estamos em presença de uma profissão – pode- ríamos dizer, quase, de uma corporação – se levarmos em consideração o grande número de referências ao ofício, à oficina e à bancada de trabalho que circulam no interior do grupo (PROST, 2008, p. 33).

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Na citação está posto que o grupo de historiadores é “unido por uma formação comum” e que compartilha “critérios de julga- mento sobre o que um historiador deve, ou não deve, fazer”. Pois bem, definir o ofício do historiador é indicar a especificidade do seu campo ou lugar de atuação.

A instituição é que garante a formação e a manutenção de uma linguagem comum aos membros da sua comunidade. Isso no que diz respeito não apenas às normas que devem ser seguidas pelo grupo, como também às estratégias utilizadas com relação ao fazer científico (os métodos).

No caso da História, é essa instituição que define o que é a fonte e o objeto do seu conhecimento, por exemplo. Retomamos o pen- samento de Certeau que, ao fazer uma analogia entre o veículo e o conhecimento histórico, afirma:

Como o veículo saído de uma fábrica, o estudo histórico está muito mais ligado ao complexo de uma fabricação específica e coletiva do que ao estatuto de efeito de uma filosofia pessoal ou à ressurgência de uma ‘realidade’ passada. É o produto de um lugar (CERTEAU, 2002, p. 73).

Ou seja, o ofício de historiador se dá a partir do conjunto de práticas provenientes de uma comunidade que institui o que pode e o que não pode ser feito em nome da História. Essa comunidade de historiadores, porém, para fazer valer as suas ideias e interesses, além de criar as suas próprias instituições (no caso do Brasil, ANPUH, IHGB, academias, associações profissionais, sites especializados

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etc.) e ocupar espaços em instituições estatais e privadas (universi- dades, escolas e centros de pesquisa), relaciona-se com os poderes estatais constituídos (Legislativo, Executivo e Judiciário).

Os debates e as ideias predominantes no seio dessas institui- ções quase sempre se fazem presentes nos textos dos historiadores, embora não necessariamente de forma explícita, exigindo do leitor o conhecimento necessário à sua identificação. Assim, uma boa leitura de um texto histórico requer, por parte do leitor, o conheci- mento de elementos que influenciam a sua construção, mas não são anunciados. Daí, portanto, a importância de todos os historiadores participarem dos eventos promovidos por essas instituições.