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Presenciamos hoje, mais do que nunca, os apelos por uma “memó- ria local”, entendida quase sempre como uma “memória municipal”.

Há anos observamos em pequenas, médias e até em grandes cidades do país a ocorrência de um afã comemorativo com vistas a celebrar a data de fundação da cidade, ou mais correntemente a de sua emancipação política. É possível identificar essas celebrações nos calendários oficiais ao lado das datas das festas de padroeiros e das comemorações cívicas do Sete de Setembro. Tais festas aparecem sempre acompanhadas de shows musicais, celebração religiosa, discurso de autoridades e o corte de um bolo de aniversário. É um evento de confraternização não só para os moradores locais, mas também para aqueles que lá nasceram e que por algum motivo não vivem mais no lugar. Como toda festa de aniversário, essas cerimô- nias servem para marcar o tempo da municipalidade, instituir a data emblemática de uma origem.

Temos também percebido um esforço de autoridades, estudiosos e populares locais em procurar marcas desse passado municipal como um modo de estabelecer registros dessas experiências. Constatamos que muitas cidades vêm constituindo nas últimas décadas seus

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próprios museus, centros de documentação e associações culturais. Tais entidades têm procurado reunir objetos e relatos de fatos e per- sonagens da “história local” “dignos de nota”, assim como artefatos da vida cotidiana e/ou de um passado longínquo.

Recentemente, em 1990, um grupo de moradores do distrito de Lajedo, município de Apodi, iniciou um trabalho de preserva- ção do Lajedo de Soledade. O Lajedo é uma formação de rochas calcárias da bacia potiguar, composta de cavernas e fendas reple- tas de pinturas rupestres.

Liderados pela historiadora e ambientalista Maria Auxiliadora da Silva Maia, eles criaram a Fundação Amigos do Lajedo de Soledade (FALS), uma entidade sem fins lucrativos que passou a desenvolver esse trabalho de preservação, pesquisa e educação patrimonial. Em 1993, com o apoio da Petrobras, a FALS criou o Museu do Lajedo de Soledade com o objetivo de abrigar peças recuperadas no Lajedo e monitorar as visitas turísticas e educacionais ao local.

Também no ano de 1993, a prefeitura do município de Currais Novos criou a Fundação Cultural José Bezerra Gomes com a finali- dade de “cuidar de bibliotecas, bandas de música, museus, folclore e tradições que acentuem a presença do povo na evolução da comu-

nidade” (FUNDAÇÃO CULTURAL JOSÉ BEZERRA GOMES, 2011)1.

Para alcançar tal objetivo, a instituição buscou desenvolver traba- lho de coleta, organização e conservação do acervo bibliográfico e documental do seu patrono, o escritor e poeta José Bezerra Gomes (1911-1982), de preservação de monumentos históricos, artísticos e paisagísticos do município, bem como passou a estimular pesquisas

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sobre “os aspectos sociais, políticos e econômicos da municipalida- de, podendo, contudo estender-se à região do Seridó” (FUNDAÇÃO

CULTURAL JOSÉ BEZERRA GOMES, 2011)2.

Ainda mais recentemente, em 2003, o professor Máximo Rebouças Júnior, do município de Areia Branca, instalou um museu particular (que leva o seu nome) para expor objetos liga- dos à História Local. A ideia surgiu durante a realização de uma feira cultural na Escola Santo Expedito, em Redonda, zona rural do município. Depois do evento, Rebouças começou a recolher artigos, documentos e objetos que “retratassem o cotidiano e a história de Areia Branca”, compondo um acervo com cerca de 16 mil peças

(VOZ DE AREIA BRANCA, 2012).3

Outras experiências no campo da memória local também podem ser presenciadas nos últimos anos, como as chamadas Caminhadas Históricas. No Rio Grande do Norte, elas foram realizadas nas duas maiores cidades do estado. Em Natal, ocorreram quatro edições, sendo a primeira em 2008 e a última

em 2011. Em Mossoró, realizou-se apenas um festejo em 20124.

As Caminhadas Históricas constituíram-se numa atividade de caráter educacional e artístico-cultural promovida por uma

2 Documento on-line não paginado. 3 Documento on-line não paginado.

4 Na Internet foram encontradas referências apenas dos seguintes eventos: 1ª Caminhada Histórica de Natal (Dezembro/2008); 3ª Caminhada Histórica de Natal (Junho/2010); 4ª Caminhada Histórica de Natal (Dezembro/2010); 5ª Caminhada Histórica de Natal Dezembro/2011); Caminhada Histórica de Mossoró (Maio/2012). Não há menção a 2ª Caminhada Histórica de Natal, ou ela não mereceu destaque na imprensa, ou ela não ocorreu (o que pare- ce ser mais provável).

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empresa de eventos, a Viva Promoções. Elas eram realizadas como um passeio a pé pelas ruas da cidade em visita aos principais monumentos e prédios históricos locais. Eram acompanhados por um professor de História e um guia turístico, que explicavam aos participantes a “importância histórica de cada monumento”. Ao longo dos percursos das caminhadas ocorriam shows musicais com artistas locais e apresentações teatrais e folclóricas.

As Caminhadas chegaram a ter participação de um grande con- tingente de pessoas e ganharam apoio de entidades da sociedade civil e de empresas do estado. Segundo o produtor do evento nas duas cidades, o empresário Jarbas Filho, da Viva Promoções, o obje- tivo das Caminhadas era

resgatar a história de seus monumentos e chamar a atenção da população e autoridades para a importância de manter esse patrimônio preservado, proporcionando às gerações futu- ras a oportunidade de conhecer a história do município e perpetuá-la (OLIVEIRA, 2012)5.

Antes de ser um processo consensual, a definição da memó- ria local se apresenta como um espaço de disputa, que assinala

5 Outros registros sobre as Caminhas Históricas em Natal e em Mossoró en- contram-se em: <http://nataldeontem.blogspot.com.br/2008/12/i-cami- nhada-histrica-do-natal.html>; <http://nominuto.com/noticias/cidades/ caminhada-historica-de-natal-tera-concentracao-as-14h-na-praca-an- dre-de-albuquerque/25201/>; <http://www.cascianovidal.com.br/cami- nhada-historica-nesta-tarde-em-mossoro/>; <http://blogdpc.blogspot. com. br/2012/04/patrimonio-historico-cultural-caminhada.html>Acesso em: 6 dez. 2013.

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diferentes interesses, sentidos e definições dos grupos envolvidos. Isso ficava evidente numa prática simbólica comum que é a nomea- ção de edificações e lugares públicos urbanos. Assim, ao dar nome à rua e a logradouros públicos, busca-se instituir uma identidade para esses locais e fazer com que certas referências do presente possam ser perpetuadas.

Essa prática de dar nomes de líderes políticos, artistas e perso- nalidades ou de fatos de reconhecimento histórico aos edifícios, ruas e logradouros públicos foi, durante muito tempo, comum a todos os municípios do Rio Grande do Norte e do resto do país. Entretanto, ela parece mais aguda atualmente, mobilizando a população local de maneira nunca antes vista. O que falar da contenda em torno do nome do novo aeroporto da cidade de Natal? A querela envolve os interesses de grupos políticos tradicionais e a intervenção de diversas organizações da sociedade civil. Ela deixou de ser um pro- blema restrito aos gabinetes governamentais para ganhar os fóruns da Internet, mobilizando a opinião pública de diferentes partes do estado e até fora dele.

Também assistimos a um descontentamento dos habitantes municipais em relação aos próprios nomes de suas cidades. O que tem levado determinadas populações locais a não se sentirem mais identificadas com os nomes de suas cidades e mobilizarem esforços para que esses sejam modificados? Que novas aspirações teriam pro- vocado esse descontentamento e o desejo de mudança?

Em 1991, por exemplo, a população de Campo Grande apoiou o retorno do antigo nome da cidade, depois de mais de setenta anos vivendo sob a denominação de Augusto Severo. Também nesse mesmo ano, os moradores de Januário Cicco votaram pela mudança

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do nome da cidade, que passou a se chamar Boa Saúde. Em 2012, a população de Presidente Juscelino foi a um plebiscito para mudar o nome do município para Serra Caiada, trocando a homenagem feita ao ex-presidente por outra identificada com uma formação geológi- ca característica do lugar.

Antes de ser um fenômeno tradicional, a questão da memória local aparece fortemente associada aos novos dispositivos de comu- nicação na rede de computadores. Presenciamos a proliferação de sites na Internet buscando oferecer um registro dessa memória por meio da reunião de cópias digitais de documentos textuais, de fotografias e outros documentos imagéticos. Alguns desses sites per- tencem a órgãos do poder público municipal, mas a maioria deles é de pessoas comuns, curiosos, estudiosos diletantes, e até mesmo de historiadores profissionais.

Como entender todas essas experiências? O que elas têm em comum e no que são diferentes? Seriam algo do tempo atual (últimos vinte anos) ou teriam relação com outras experiências mais antigas?