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Da História eurocêntrica à História Local

É comum encontrarmos, em livros didáticos da área de História, os conteúdos dispostos numa divisão tradicional que aloca o conhecimento sobre o processo histórico em “idades” previamen- te organizadas: Idade Antiga, Idade Média, Idade Moderna e Idade Contemporânea, cada qual situada no tempo a partir de marcos que definiriam o seu início e término. A Antiguidade, por exemplo – como também se costuma chamar a Idade Antiga – teria o seu início em, aproximadamente, 3 mil a.C., época em que se atribui, para a maioria dos historiadores, a “invenção” da escrita. O seu fim teria se dado com a queda do Império Romano do Ocidente, em 476 d. C., em decorrência da invasão de povos “bárbaros”. Todos os aconte- cimentos situados antes da “invenção” da escrita, portanto, seriam considerados parte da “Pré-História”.

Essa divisão tradicional do tempo histórico, conquanto, preten- samente, seja aplicada a todas as realidades espaciais do planeta, está longe de corresponder às especificidades das sociedades humanas em toda sua diversidade. A julgar por essa demarcação do tempo, os nativos que os europeus encontraram em 1492 no que, anos

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depois, se chamaria de América, estariam vivendo na Pré-História, pois desconheciam a forma de escrita predominante na Europa. No que hoje chamamos de Brasil, seguindo essa mesma lógica, a História só teria começado em 1500, época em que os portugueses, detentores da escrita, chegaram a esse espaço e dele se apropriaram. Os livros de História que ainda centram a explicação dos processos históricos nessa compartimentação do tempo focada nas “idades”, pois, são resultado de uma maneira ocidentalizante de produzir o conhecimento.

Se considerarmos que tais livros didáticos espelham o conhe- cimento produzido pela historiografia – e, em regra, o lugar de produção dos seus autores e das obras –, isto quer dizer que tam- bém refletem um paradigma eurocentrista de História. Dizendo de outra maneira: um sentimento de superioridade do Ocidente, uma maneira eurocentrada de perceber o processo histórico e, em geral, a própria realidade.

A crítica a esse paradigma eurocentrista tem sido feita, nos últimos anos, por intelectuais da área das humanidades, que o abordam, em linhas gerais, como uma estrutura mental fundada na crença de uma suposta superioridade do modus vivendi e do ritmo do desenvolvimento

da Europa1. Essa estrutura mental – que, partindo do entendimento

de Aníbal Quijano (2005, p. 277-278), pode ser entendida como um paradigma – estaria presente não apenas na construção do conheci- mento histórico, mas também na própria compreensão da realidade. Nos textos da historiografia, todavia, a ênfase a essa superioridade europeia-ocidental estaria mais presente.

1 Verificar, a exemplo, Said (1990); Amselle (2008); Wallerstein (2007), ape- nas para citar exemplos.

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Basta lembrar, aqui, da literatura moderna do Iluminismo (Kant, Hegel e Voltaire, por exemplo), que deturpou a visão dos europeus acerca dos demais povos do mundo até então conhecido, vistos, em geral, como “crianças” a serem educadas pelo poder das luzes da Razão; da Filosofia da História do século XIX (sobretudo Marx e Engels), em suas diversas vertentes, que procurou cons- truir interpretações evolutivas das sociedades humanas, tendo como síntese a ser atingida o ideal de progresso firmado pela his- toricidade europeia-ocidental; e das teorias sociais do século XIX (em especial os estudos de Spencer e de Comte), que, ao tratarem as sociedades e povos fora da Europa como “pré-modernos” ou “arcaicos”, colocavam-nos na perspectiva de serem enquadrados como estágios de um caminho civilizacional único, cujo fim seria a Europa Ocidental (BARBOSA, 2008).

Observamos, dessa maneira, que o paradigma eurocentrista procura incutir, através de sua disseminação nos textos historio- gráficos, uma convicção de que a Europa seria o centro do mundo e, como lugar irradiador do progresso, por excelência, o ideal e a origem de toda a civilização. Seria mais apropriado, todavia, falarmos de convicções que o pensamento eurocentrado tenta reafirmar como sendo superiores: econômico-social (o capitalis- mo), cultural (a modernidade), religiosa (a cultura judaico-cristã) e, por que não dizer, “racial” (a “raça” branca).

Essa pretensa superioridade encadeia determinados processos históricos como sendo responsáveis pela formação da Europa – e da entidade cultural “Ocidente”. Anuncia, portanto, uma genealogia que coloca realidades que se superam, dando origem, progressi- vamente, a estágios cada vez mais “avançados”, cuja culminância

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é a Europa moderna: a Grécia Antiga teria dado origem a Roma; esta, por sua vez, à Europa cristã; esta, à chamada Civilização do Renascimento; esta, ao Iluminismo; este, à democracia política, que, por sua vez, teria levado à Revolução Industrial e ao surgimento da democracia. Essa genealogia, que corresponde à morfogenia do Ocidente na acepção do filósofo Philippe Nemo, vem sendo critica- da por pensadores que defendem a historicidade dos conceitos e o estudo de suas interconexões (WOLF, 1994) e ainda a desconstrução de determinados “mitos fundadores”, como o da modernidade e, em regra, a desconstrução do próprio conceito de “modernidade” européia (DUSSEL, 2005 apud LANDER, 2006).

Nos livros acadêmicos e didáticos de História em que o para- digma eurocêntrico é mais enfático, a percepção que temos é a de que, no âmbito global, teríamos um permanente “centro” geográfi- co, avançado e inovador, irradiador de cultura e de modos de vida, da mesma forma que teríamos uma “periferia”, atrasada e arcaica, sempre pronta para receber inovações e se “modernizar” ao esta- belecer laços com o “centro” e imitá-lo. Esse pensamento de um “difusionismo eurocêntrico”, que tende a enaltecer a superioridade europeia, é criticado por James Blaut, que propõe aos historiado- res a escrita de uma “História ao avesso”, ou seja, uma versão da História em que não esteja presente, espacial e temporalmente, a convicção de que os europeus têm qualidades especiais de raça, cultura, ambiente, mente ou espírito (BLAUT, 1993).

A crítica de Blaut ao eurocentrismo, dessa maneira, nos incita a revisar o conhecimento histórico já produzido sobre o passado do Brasil a partir de outros referenciais que não apenas aqueles que concedem primazia ao conquistador e às grandes narrativas,

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responsáveis por (tentar) inserir o curso dos acontecimentos numa lógica europeia. Perceber, por exemplo, como os processos históricos se desenvolvem em nível local, nas suas conexões com as realidades regionais/nacionais/globais, configura-se, dessa maneira, como um bom caminho para essa “desmontagem” da versão eurocentrada da História.

Em outras palavras: conhecer a História Local é um dos pré- -requisitos para se compreender melhor os processos históricos em nível regional, nacional e global, além do que, como veremos adiante, contribui para o fortalecimento das identidades das pessoas para com os lugares onde nasceram/habitam. Tomemos um exemplo, apenas, para que essa afirmação fique mais próxima: o cultivo do algodão nas

terras que hoje chamamos de Nordeste, do século XVIII ao XX2. Em

que pese a informação de que o algodão já fosse aproveitado pelos nativos e pelos primeiros colonizadores no período colonial, o boom de sua produção para exportação se deu a partir de, pelo menos, dois surtos: um no fim do século XVIII e outro em meados do século XIX. Esses momentos não aconteceram desligados do tempo e do espaço. Pelo contrário: estiveram ligados a conjunturas mais amplas, de nível global, se é que assim podemos chamar.

Um primeiro surto, que aconteceu entre as décadas de 1770 e 1780, se deu no momento em que as colônias inglesas na América deixaram de fornecer o algodão enquanto matéria-prima para suprir o parque têxtil da Inglaterra, por ocasião da Guerra de Independência (1776-1783), que viria a formar os Estados Unidos

2 Os dados trabalhados nos parágrafos seguintes foram extraídos de Takeya (1985) e de Macêdo (2005).

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da América. Se, nas possessões portuguesas da América, o algodão era produto consumido apenas internamente, restrito ao setor de subsistência, agora, com a mencionada guerra, seria elevado a mercadoria capaz de suprir a demanda do mercado internacional, mormente, da Inglaterra. Nessa época, no final do século XVIII, a Capitania do Maranhão foi considerada o território de onde saiu a maior quantidade de arrobas na pauta de exportação para o mer- cado inglês.

Um segundo momento deu-se nos anos de 1860 e, novamente, quando a produção e exportação de algodão dos Estados Unidos com destino à Inglaterra teve seu fluxo interrompido, desta vez, pela Guerra de Secessão (1861-1865). Novamente, o algodão produzido na América portuguesa foi elevado ao patamar de produto inseri- do na pauta de exportações para suprir o mercado internacional, sobretudo o parque têxtil britânico. Se, no fim do século XVIII, a pro- dução algodoeira foi mais forte nas terras do Maranhão, desta vez, no decorrer da segunda metade do Oitocentos, o cultivo e a produção do algodão levarão em conta, também, as plantações de outras capi- tanias do chamado “Norte” – hoje, correspondente, grosso modo, ao Nordeste.

Em ambos os momentos, pois, temos uma história que se desen- volve em nível local, conectando-se com acontecimentos, nesse caso, de ordem global. Longe de privilegiar, apenas, as narrativas que tocam na necessidade do mercado inglês de captar matéria-prima para seu parque têxtil, em situações de guerra – a Independência das Colônias Inglesas ou mesmo a Guerra de Secessão –, um estudo de História Local poderia, com o concurso de fontes e de bibliografia específica, tratar dos aspectos que se desenvolveram nos lugares

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onde a produção algodoeira foi requisitada: como se deu a monta- gem dos roçados, quem foram os investidores, quais instrumentos foram utilizados no cotidiano da produção, qual o perfil das pessoas que trabalhavam diretamente com o cultivo e apanha do algodão, quais os tipos de terrenos usados para plantar a malvácea, quem eram as pessoas que faziam a intermediação do algodão prensado e/ou ensacado, das áreas sertanejas para os portos de exportação...

Esse é apenas um exemplo de como a História Local pode ope- rar enquanto uma abordagem que privilegia um recorte espacial microlocalizado, mas que não perde seus nexos com outros tempos

e espaços. Considerar a História Local enquanto abordagem3 quer

dizer que a consideramos uma metodologia, ou seja, uma forma de como o historiador trabalha em termos do seu campo de observa- ção e das fontes que utiliza. Considerar a História Local enquanto abordagem é pensar no modo de fazer adotado pelo historiador quando circunscreve a maneira como ele se apropria e observa a realidade, focando sua lente no espaço – um lugar, uma cidade, uma rua, um bairro, uma cidade.

Sendo fruto do trabalho historiográfico, a História Local é, tam- bém, produzida a partir de um determinado tempo e de um espaço, ou, na acepção problematizada por Michel de Certeau (2008), de um lugar de produção, como veremos posteriormente. Isso poderia nos conduzir a um pensamento mais amplo sobre a História Local, indo em direção a uma frase de efeito discutida por José D’Assunção Barros, a de que “toda História é Local”. Segundo o autor, um histo- riador pode estar na Floresta Amazônica e escrevendo uma obra de

3 A problematização da História Local enquanto abordagem está sendo feita a partir das discussões de Barros (2009)

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História sobre o cinema norte-americano, sobre a Revolução Cubana ou mesmo sobre os grupos indígenas norte-americanos – ou, acres- centamos, sobre os índios da própria região. Independentemente do tema a que esteja filiado em sua atividade de produção, ao escrever da Amazônia o historiador se verá influenciado pelos “[...] vínculos que estabeleceu ou estabelece com este lugar [...]” e será “[...] benefi- ciado pelas cores locais que o levarão a refletir de uma nova maneira sobre os antigos problemas e objetos historiográficos” (BARROS, 2010, p. 229-230). A História produzida a partir de um lugar, pois, guarda suas marcas, e poderá – ou não – ser consumida por seus moradores, retornando às pessoas na forma de um conhecimento que passa pelo crivo de ser aceito e/ou contestado.

Mas existe um outro sentido para a História Local, longe desse sobre o qual discorremos no parágrafo anterior. Trata-se de com- preender essa abordagem no bojo da renovação historiográfica que se procedeu no Ocidente a partir do século XX e, em particular, na historiografia brasileira das últimas décadas. É sobre esse tema que trataremos no próximo tópico.