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2. ORALIDADE E ESCRITA: PARTICULARIDADES E INTERAÇÃO

2.1 Conceituação da oralidade

Após constatar que Bakhtin estabelece uma relação integrada entre oralidade e escrita que se apresentam na forma de gêneros discursivos primários ou secundários, torna-se necessário verificar como os demais autores que compõem essa pesquisa caracterizam as duas modalidades.

O termo oralidade nem sempre se refere ao diálogo ou fala do cotidiano. Apresenta algumas particularidades de uso. Num sentido abrangente, ela tem um papel primordial na constituição do conhecimento, na manifestação dos sentimentos, do pensamento e a vivência das experiências humanas ao longo da história. Foi através da transmissão oral de geração a geração que o homem veio se estabelecendo. Zumthor (1997, p.12), ao estudar a poesia oral, situa oralidade da seguinte forma:

Não duvida que a voz constitua no inconsciente humano uma forma arquetipal: imagem primordial e criadora, ao mesmo tempo, energia e configuração de traços que predeterminam, ativam, estruturam em cada um de nós as experiências primeiras, os sentimentos e pensamentos.

Belintane (2013) também não toma a oralidade apenas como uma representação da fala cotidiana, do processo comunicativo instantâneo, mas como manifestação cultural de transmissão de narrativas ligadas ao mítico, à aventura, ao encantamento associadas aos gêneros infantis e da tradição oral. O autor fez um longo estudo sobre o papel da oralidade no processo de alfabetização e produção textual. Segundo ele, a criança só penetra no universo da escrita, quando traz dentro de si o potencial de sua oralidade.

Desde o nascimento, a criança é envolvida pelos sons da voz humana. Inicialmente, é atraída pela voz materna que representa a voz do outro. Logo ela começa a trocar as sensações de prazer do corpo como o ato de mamar, o carinho, o colo, etc. pelas vozes da mãe, representadas pelo manhês, cantigas, brincadeiras com palavras, etc. A mãe começa a atribuir sentido às manifestações da criança, principalmente as sonoras, sem ter certeza do erro ou do acerto. Isso se torna uma rotina na relação mãe/filho. A cada som emitido pela criança, a voz materna lhe atribui uma palavra. É o caso, por exemplo, do ô ou bô que, no ato da amamentação, passa a ser interpretado como o seu término, a mãe responde a essa manifestação com a seguinte fala: é, sim! acabô!, construindo um sentido para os sons realizados pelo filho.

Mesmo Belintane utilizando uma base teórica (psicanálise) diferente de Bakhtin (2015, p.46-7), registra-se um ponto de ligação entre eles. Ambos tomam a constituição da linguagem por meio do outro. Bakhtin demonstra que as relações afetivas da mãe com a criança e demais pessoas de convivência mais íntima são os constituidores iniciais da imagem do corpo exterior e interior através da linguagem. Nesse processo, inclui-se a construção linguística, constatada nesta afirmativa do autor:

As influências extratextuais têm uma importância especial nas primeiras fases da evolução do homem. Essas influências se envolvem nas palavras (ou outros signos), e tal palavra é a dos outros, e, acima de tudo, a da mãe. Depois disse a “palavra do outro” se transforma dialogicamente, para tornar- se “palavra pessoal-alheia” com a ajuda de outras “palavras do outro”, e depois, palavra pessoal “com, poder-se-ia dizer, a perda das aspas. (BAKHTIN, 2015, p. 402- 3)

Belintane admite que a atribuição dos sentidos e a ampliação dos signos se constituem pelo outro (a mãe) e à sua revelia, mas traz um dado novo: o esvaziamento do senso lógico. Nesse processo, o sentido vai se formando, juntamente com os traços do sem sentido (nonsenses) que penetram no próprio ato da fundação da palavra. Esses desencontros significativos entre mãe e filho, são importantes na estruturação da linguagem, por deixar o seu resto, seu vazio de sentido no domínio linguístico. No meio da fala séria, encontram-se as manifestações do sem sentido, das brincadeiras e das possibilidades poéticas. Na percepção do sentido da linguagem, é muito comum ocorrer esse esvaziamento do senso lógico para dar espaço a uma interpretação do metafórico, acionando o conhecimento poético para estabelecer o seu entendimento.

Para Belintane (2013, p. 35), “esse ato de esvaziar é uma operação fundamental da linguagem e da leitura”, mas que nem sempre o ser falante o tem de prontidão, sobretudo na escolarização da leitura. O referido autor destaca a importância das cantigas e dos jogos linguageiros da infância para obter o domínio linguístico no processo de escolarização, porque eles se tornam verdadeiras matrizes textuais da leitura e da própria literatura, trazem o esvaziamento das palavras do cotidiano para permitir a entrada de um novo sentido. O trabalho com esses textos da infância, da cultura oral, possibilita a criação de matrizes mentais que servirão de suporte para a alfabetização e a produção de textos escritos:

As narrativas míticas, de encantamento, de aventuras e outras que instigam o desejo de continuar a saber, aliadas aos gêneros da infância e da tradição oral, constituem o que nomeamos “oralidade”. Nossa aposta busca uma metodologia que tem como base essa oralidade, que se abre na forma de matrizes e de pujança psíquica para a escrita (BELINTANE, 2013, p. 126 e 127).

Para o autor, a criança que vivencia desde cedo o universo discursivo dessa oralidade caminha para um domínio da escrita com mais facilidade, pois esse contato lhe possibilita a formação de matrizes mentais para a sua realização. Inclusive, favorece a criação e o contato

com a literatura, justamente, porque esvazia as palavras do cotidiano, permitindo o ingresso a nova ordem de significações, levando o aluno a conviver com o universo metafórico e metonímico. Seu trabalho se volta para a constituição de estruturas linguísticas mentais que, quando acionadas, levam a criança a um processo de leitura e escrita produtiva.

A escola, muito preocupada em fornecer o maior número possível de gêneros textuais sintonizados com o cotidiano, está se esquecendo da força e da importância que a oralidade tem na constituição de recursos criativos que conduzem à leitura e à produção textual. Retomá-la no ensino fundamental II é ativar recursos para os relatos recheados de experiências e imaginação, seria uma forma de desenvolver as potencialidades adormecidas pelo pragmatismo linguístico em que se transformaram as atividades escolares, principalmente, a produção textual. Belintane (2013, p. 125), ao trabalhar com crianças do Ensino fundamental I, mostrou o quanto é importante lhes fornecer narrativas e gêneros da cultura oral “em que prevalece a função poética da linguagem”. Em relação à variedade de gêneros que povoam a prática escolar, ele esclarece:

A fala, os gêneros, textos e discursos que banham o cotidiano da criança constituem de fato dimensões importantes da língua e da linguagem, mas não possuem o mesmo relevo e poder que os textos oriundos da tradição oral e os literários exercem sobre o imaginário infantil. Não é por acaso que a propaganda e o marketing se valem da função poética e das artes em geral e que os homens, desde as civilizações da Mesopotâmia, lançavam e laçam mão de provérbios, alegorias, fábulas e poemas para aconselhar ou ensinar os valores da vida – [...]

Marcuschi, outro pesquisador do assunto, traz um estudo minucioso sobre oralidadee escrita. O autor reconhece a abrangência do termo oralidade como manifestação ampla do conhecimento ao longo das gerações, mas o seu trabalho se situa mais nas formas como ela se manifesta nas interações sociais do dia a dia e sua relação com a escrita. Para ele, oralidade é representativa das práticas sociais que se manifesta pela fala:

A oralidade seria uma prática social interativa para fins comunicativos que se apresenta sob formas ou gêneros textuais fundados na realidade sonora; ela vai desde uma realização mais informal à mais formal nos variados contextos de uso. Uma sociedade pode ser totalmente oral ou de oralidade secundária, como se expressou Ong [1982], ao caracterizar a distinção entre povos com e sem escrita (MARCUSCHI, 2010, p. 25).

Outra preocupação do autor foi com as palavras fala e escrita. Esses dois termos são representativos das duas modalidades da língua, indicam formas linguísticas e atividades de formulação textual. Definiu-os da seguinte forma:

Em resumo, com a expressão “fala”, designamos as formas orais do ponto de vista do material linguístico e de sua realização textual-discursiva. O mesmo acontece com a expressão “escrita”, que será usada para designar o material linguístico da escrita, ou seja, as formas de textualização na escrita” (MARCUSCHI, 2007, p.32).

Ao trabalhar com essas duas manifestações linguísticas, desfaz a polarização constituída ao longo do tempo dessas duas modalidades, tomando-as como dicotômicas. Demonstrou que isso não tem razão de ser, pois, no processo de interação social, em situações discursivas, elas não se opõem, ao contrário, se entrelaçam e se complementam. Mesmo cada uma tendo realização, história e representação própria, há muito mais semelhanças do diferenças entre elas.

A palavra oralidade, nesse trabalho, não está sendo revestida de novos significados, integra o posicionamento de Belintane que a toma como manifestações culturais oriundas (principalmente as narrativas da tradição oral) da tradição e os estudos de Marcuschi sobre a formulação de um texto oral. Este autor considera a oralidade como uma prática social interativa, materializada pela fala, evidenciando seus aspectos de formulação. A oralidade como um processo representativo do conhecimento constituído por diferentes gerações nas suas relações sociais se torna a mola motivadora das atividades linguísticas e de produção textual com o intuito de abolir uma prática tão frequente no espaço escolar: o distanciamento entre a fala e a escrita, chegando a privilegiar a segunda em detrimento da primeira. Além disso, os próprios recursos linguísticos da fala são mobilizados durante a análise linguística para aluno perceber as diferenças na formulação escrita. O processo de aprendizagem linguística tem como referência a fala do aluno. A ligação entre elas é muito estreita. Mesmo que se situe a oralidade do cotidiano, ela não está desprovida de um conhecimento, pois o aluno está inserido em um grupo que tem a sua vivência, a sua identidade social. Portanto, o termo está sendo usado como um suporte cultural, motivador da criação e como manifestação linguística imediata.