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2. ORALIDADE E ESCRITA: PARTICULARIDADES E INTERAÇÃO

2.5 Narrativas orais e escritas

As características acima delimitaram a constituição de textos orais e escritos. Como o trabalho mobiliza esses recursos na construção de narrativas orais e escritas, estabelecendo uma estreita ligação entre elas, é interessante situar no tempo como se deu a interação entre produção textual oral e a escrita.

As narrativas orais sempre compuseram a história cultural dos povos. Elas vieram perpassando as gerações, sofrendo alterações de acordo com a época e o povo local. Essa foi a forma mais antiga de preservar as conquistas e a cultura do homem ao longo do tempo, até o aparecimento da escrita. Assim, surgiram os primeiros gêneros narrativos que, muitas vezes, relatavam fatos vivenciados, verídicos, mas revestidos do imaginário, do fantástico, de mistério.

Na ausência da escrita, esses relatos eram preservados pela memória dos contadores de história, em suas comunidades, mantendo-os vivos para as gerações futuras. O núcleo comum, central, era sempre mantido, mas dependendo do momento ou do público ouvinte, iam sofrendo alterações, acréscimos de novos detalhes ou adaptações para promover a interação entre o contador e os espectadores. Ele acabava se tornando um coautor, pois criava a ambiência espacial, precisava caracterizar os personagens, o herói. Normalmente, tudo isso era feito com o aproveitamento dos recursos da comunidade onde se dava o relato. O intuito era sempre promover a interação com o grupo. A voz do contador criava um valor de verdade e dessa forma, ele podia misturar o obscuro, o mistério, o fantástico com o real, rompendo com as suas fronteiras.

Muito mais tarde, com o surgimento da escrita, eles foram absorvidos pela nova modalidade. Mesmo assim, continuaram a sofrer a força da adaptação aos interesses da época. Houve um divisor de águas com seu aparecimento: os fatos reais se separaram dos imaginários e passaram a compor a história, os imaginários e fantásticos constituíram as narrativas literárias. Essa arte oral, inicialmente, não era voltada às crianças, como pontuou Pondé (1985, p.92): “Primitivamente, ligava-se às camadas inferiores extremamente exploradas pelo senhor feudal e procurava sempre satirizá-lo; não se dirigia, portanto, às crianças.”

Depois, houve uma mudança de foco. Com a ascensão burguesa, esses relatos foram adaptados aos seus valores e passaram a receber um cunho ético e religioso cuja finalidade era moldar os jovens a um papel social. Essas narrativas orais que eram apresentadas pelos

contadores de histórias, com o tempo foram compiladas por escritores profissionais, com caráter educativo.

O contato do Brasil com esse universo literário deu-se bem mais tarde, porque, inicialmente, o colonizador não via com bons olhos a presença de livros que pudessem veicular um conhecimento libertador. Tudo era controlado pelos dominadores. Somente, com a vinda da Família Real para a Colônia, seguida de uma expansão econômica e social, é que o livro ganhou espaço. Primeiramente, num processo de importação, depois surge uma franca produção nacional.

No espaço da obra infantil, predominaram os contos de fadas europeus. Não houve espaço para a cultura indígena e a influência africana. Estas passaram a integrar a cultura nacional voltadas a uma produção infantil com os movimentos do Modernismo, apesar de que, no convívio da oralidade isso acontecia tranquilamente, através das mucamas que passavam o seu saber para os filhos dos senhores.

Os contadores de história ainda existem em pequenas comunidades mais isoladas. Como essas narrativas chegam ao conhecimento das novas gerações por meio da escrita, surgem os intérpretes de histórias infantis, pois vivenciam os relatos escritos para as crianças. A espontaneidade dos textos orais se perde, dando espaço à leitura expressiva ou à sua interpretação.

Com a presença da tecnologia dominando as relações interpessoais, a contação de histórias desapareceu do convívio social. As narrativas advindas da tradição oral, inicialmente, foram sendo absorvidas pela escrita; em seguida, passaram a compor o repertório dos meios de comunicação de massa, tomadas com mercadoria, juntamente com a expressão corporal.

Vistos no seu processo de construção, tanto a narrativa oral quanto a escrita trazem os mesmos elementos constitutivos da sua tipologia: são necessários o narrador, o assunto, o espaço, a temporalidade e os personagens. A narrativa oral apresenta algumas particularidades na aplicação desses elementos. O narrador, em certas situações, se mistura com o contador da história e este, ao constituir o espaço e os personagens, acaba imprimindo um tom pessoal, torna-se um coautor. O processo de recepção do relato é imediato, o público ouvinte é mobilizado pelo contador que busca recursos expressivos e locais para envolver os espectadores e trazê-los para os fatos. O ouvinte pode tornar-se ativo, interagir o tempo todo, dependendo das habilidades e das solicitações do contador de histórias. O narrador é material, a alma do relato é sua voz. Estabelece o dialogismo imediato com o público expectante. Modula as diferentes vozes dos personagens, causa suspense, estabelece tons ao exprimir

acontecimentos, promove questionamentos para interagir com a plateia, cria ambiência necessária aos fatos. O espaço e a caracterização de personagens também ganham o ar local. Já a narrativa escrita tem sua construção distanciada do provável leitor, a interação é distante do momento de realização. Portanto, o que torna a narrativa escrita diferente da oral é o planejamento, execução e a espontaneidade.

Todas essas características dos relatos orais estão vivas no cotidiano das pessoas, é natural no ser humano essa capacidade de narrar fatos do seu dia a dia. O ato de narrar permeia, praticamente, a maior parte da interação humana, é abrangente, abarca uma variedade de gêneros. No transcorrer do dia, os relatos se tornam presentes o tempo todo, compondo as relações sociais. O aluno, mesmo de uma forma simples, ao construir seus relatos, faz tentativas de construir um gênero secundário; torna-se locutor, idealizando um leitor que não está face a face. Na construção de sua história, vai imprimindo características peculiares de sua linguagem. Reelabora as suas informações orais para estabelecer a significação do texto escrito com intuito de se fazer compreendido por quem o lê. Como disse Flores (2014, p. 103):

Cabe enfatizar que o uso da linguagem sempre implica a interação entre locutor e um interlocutor, situados em um aqui-agora. No caso de um texto produzido por um aluno em contexto de sala de aula, vemos que o aluno, de um lado, projeta uma imagem de seu interlocutor (professor, colegas etc.) e, do outro, com vistas a influenciar esse interlocutor, levando-o a aceitar a sua tese (aprovando seu texto), mobiliza a língua por sua conta, isto é, converte a língua em discurso, como diria Benveniste. Por menor que seja, em seu texto, o grau de presença atribuído ao alocutário, o locutor tem sempre em vista aquele a quem destina o que diz de si ou daquilo que o cerca. Quem escreve o faz para alguém.

Na faixa etária em foco, sexto ano, trabalhar com relatos orais e escritos, entrelaçando os dois, facilita a aprendizagem do aluno, ampliando o seu domínio linguístico e o seu poder criativo, pois ele ainda está muito ligado às experiências vivenciadas anteriormente. Estreitar as relações entre o oral e o escrito evita a criação de barreiras e dicotomização das duas modalidades linguísticas, permitindo a percepção de que ele não está diante de duas línguas diferentes, mas está mobilizando recursos linguísticos adequados à finalidade, ao texto escolhido e ao contexto proposto. Sentir que seu interlocutor não está diante dele, quando produz o texto escrito, leva-o a buscar formas, estratégias para se fazer compreendido. Inicialmente, a sua tendência é transferir recursos de formulação oral, mas, à medida que o professor começa a analisar com ele as características que definem o texto escrito, os recursos linguísticos mais convenientes para garantir o entendimento do interlocutor, o aluno se

esforça, buscando adaptar-se ao contexto da escrita. Leva-o a perceber nuanças de construção linguística, quando o tempo e o espaço não são os mesmos da conversação direta, do relatar face a face.

Como já foi dito ouvir e contar histórias foi o sustentáculo, ao longo do tempo, da herança cultural entre os povos. A linguagem oral é a expressão viva da língua. Mesmo hoje com o domínio da escrita, o ser humano continua se constituindo na rotina do dia a dia através da fala. A resolução da vida se dá pelo diálogo. Desconhecer esse poder no espaçoescolar é anular a riqueza cultural que cada um traz de suas comunidades, pois a escola é o espaço da diversidade, polifônico e democrático. Colocar a criança em contato com essa tradição de ouvir e contar histórias, desde muito cedo, possibilita o alargamento de seus horizontes quanto à percepção de mundo, à criação e ao posicionamento diante da diversidade de situações. E a escola reforçar isso como estratégias de aprendizagem evita a distância estabelecida entre a linguagem oral e escrita.

Na elaboração de seus relatos escolares, na fronteira ainda dos gêneros primários, o aluno começa a vivenciar diferentes recursos de expressão. A partir do contato com a diversidade e a riqueza expressiva de textos advindos da tradição oral ou histórias infantis, ele tem a oportunidade de se envolver com a linguagem metafórica, criativa. Essa experiência lhe possibilita desenvolver habilidades linguísticas e criativas, configurando traços de autoria em suas produções.

3. ANÁLISE LINGUÍSTICA E INDÍCIOS: A CONSTRUÇÃO DE UM