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19 Expressões de dois sindicalistas.

CAPÍTULO 3. PLANO NACIONAL DE QUALIFICAÇÃO DO TRABALHADOR (PLANFOR): CONCEITUAÇÃO E NEGOCIAÇÃO.

3.2. Base conceitual do Planfor

Nos documentos norteadores do Planfor, a educação profissional apresenta-se como uma estratégia para a modernização do país e para o seu desenvolvimento em bases sustentadas. No contexto da globalização e da reestruturação produtiva, apresenta-se também como um dos elementos-chave para a adequação das empresas nacionais ao padrão de acumulação internacional baseado na acirrada competitividade.

A educação e a educação profissional, no âmbito do Planfor, aparecem como uma forma inovadora de atuação do Estado na área da qualificação, constituindo-se como um instrumento para elevar a produtividade do trabalho ao mesmo tempo que emerge como um direito do trabalhador (Brasil, 1999a). A educação, então – principalmente a educação básica –, passa a ser considerada, na perspectiva governamental, “como um forte indicador de capacidade para a adequação das formas de geração e difusão de tecnologia nos diversos setores da economia, para assim capacitá-los para a competitividade e o crescimento econômico” (Brasil, 1999a). Nesse sentido, ela tem o objetivo claro de querer superar o modelo de formação centrado no treinamento focalizado nos postos de trabalho, para um novo formato de política que propicie a adequação do trabalhador ao novo padrão de acumulação capitalista. O que, na concepção do Planfor, pressupõe incorporar, na formação profissional, ações educativas capazes de garantir a elevação do nível de escolaridade.

Esse novo padrão altera as bases do fordismo-taylorismo, bases essas que nortearam os “modelos de organização e administração de empresas”, bem como definiram a linha do sistema educacional.

“Na prática, o ideário fordista-taylorista como fonte de princípios norteadores de modelos e ou correntes de organização e administração de empresa e, por essa via, penetrou nos sistemas de educação média e superior. Escolas de engenharia, de administração, de técnicos de nível médio e de formação de operários qualificados assumiram, em grande parte, esses princípios e, conseqüentemente, a visão do trabalho e do trabalhador neles embutida” (Brasil, 1999a, p. 14).

É importante destacar que o documento pactua com a idéia de que faltavam, no Brasil, “traços essenciais desse modelo, como produção em massa, formação de mercado interno próprio e o próprio Estado no papel de articulador social e econômico” (Brasil, 1999a, p. 12). A esse respeito mostra que todo o padrão de relações do trabalho no Brasil (legislação, sindicatos, políticas sociais) foi “concebido por um Estado paternalista, autoritário e conservador” (Brasil, 1999a, p. 13).

Essas bases contribuíram, segundo os documentos oficiais, para a “constituição e fortalecimento de grandes instituições nacionais de educação profissional, geridas pelo Estado e/ou pelo setor privado, com algum tipo de financiamento público assegurado” (Brasil, 2001, p. 52). Nesse antigo padrão de desenvolvimento, no qual as forças produtivas nacionais gozavam de amplos mecanismos de proteção contra a concorrência, o Sistema “S” notabilizou-se, a partir dos anos 40, como o grande formador da mão-de-obra brasileira, “treinando”, literalmente, os trabalhadores que iriam ocupar os novos postos de trabalho. Constituiu um modelo que, junto com uma rede de escolas técnicas federais e estaduais, permaneceu até a década de 80 (Brasil, 2001).

“A crise da institucionalidade dominante [...] situa-se a partir de meados dos anos 70 [...] mas se generaliza no bojo das novas tendências que marcam a economia e a sociedade latino- americana, a partir dos ano 80. [...] cursos, programas, as instituições de EP ou de educação em geral não estavam preparadas para o novo paradigma do trabalho e qualificação exigido pelo setor produtivo, no contexto da democratização, crise

econômica e mudança no próprio conceito de emprego” (Brasil, 2001, p. 53).

Na concepção expressada no documento dois aspectos podem sintetizar a crise do sistema educativo e de educação profissional nos países da América Latina:

“Gestão e financiamento – corroído pela inflação, sujeito a flutuações no orçamento púbico, chegando a ser extinto (caso do Chile, Peru), em função de processos de reforma tributária e de reestruturação do Estado; ausência de trabalhadores (caso do Brasil) questionada diante da recuperação de valores como democracia e cidadania, da própria reestruturação do setor produtivo.

Metodologia e organização pedagógica – lentidão ou rigidez diante de novos perfis profissionais demandados pelo setor produtivo; escala eficiente diante da crescente demanda por formação contínua das empresas e da própria sociedade; dificuldade de lidar com novas clientelas (pequenos e microprodutores autônomos, cooperados, mulheres)” (Brasil, 2001, p. 53).

A partir de meados dos anos 70 e início do 80, os países começam a “enfrentar os desafios da globalização, integração dos mercados e esgotamento do modelo de substituição de importações, a difusão de padrões de qualidade e competitividade internacionais, fluxo de inovações técnicas e organizacionais, e processos de abertura democrática e de resgate de valores como participação e cidadania” (Brasil, 2001, p. 53). Na visão governamental, a disponibilização de trabalhadores qualificados e adequados à nova base tecnológica apresenta-se hoje como um indicador preponderante da capacidade de o país tornar-se competitivo.

“A competitividade de um país se revela não só pelos seus aspectos econômicos, mas também, por um significativa mudança qualitativa em seus indicadores sociais, entre os quais, o nível de escolaridade de suas populações” (Brasil, 1999d, p. 41).

O Planfor é, assim, concebido no propósito de “garantir uma oferta de educação profissional (EP) permanente, no âmbito da Política Pública de Trabalho e Renda, que contribua para: reduzir o desemprego e o subemprego da PEA; combater

a pobreza e a desigualdade social; elevar a produtividade, a qualidade e a competitividade do setor produtivo” (Brasil, 1999a). A educação e a formação profissional são compreendidas racionalmente como componente essencial para a obtenção de melhores índices de produtividade e como mecanismo individual do trabalhador na sua luta contra o desemprego.

“[...] qualificação profissional, em si e por si mesma, não cria empregos, não promove o desenvolvimento, não gera emprego, nem faz justiça social. Mas é um componente indispensável de políticas públicas que visem a tais propósitos. É como fermento: não basta para fazer o bolo, mas sem ele nada feito. Porque qualificação agrega valor ao trabalho e ao trabalhador. Aumenta as chances de obter e manter trabalho. Amplia as oportunidades de geração de renda. Melhora a qualidade dos produtos e serviços. Torna as empresas mais competitivas. Torna o trabalhador mais competente. [...]” (Brasil, 1999d, p 41).

Nessa perspectiva, os imperativos do mundo produtivo e da globalização surgem como desafios a ser enfrentados. Nela também se “retoma os ‘princípios universais’ do cálculo econômico que exprimem a racionalidade dos agentes individuais, sancionados pela troca mercantil” (Morais, 2000, p. 6).

“[...] qualidade, competitividade, flexibilidade, inovação participação, cidadania – atingiram diretamente o chamado mundo do trabalho, atuando como pressões e estímulos à revisão de conceitos e práticas produtivas. Em matéria de gestão e organização empresarial, definem-se e difundem-se uma série de princípios que configuram uma nova filosofia de produção: integração, flexibilidade, qualidade, polivalência, flexibilidade29,

autonomia e participação [...]” (Brasil, 2001, p. 54).

Tais conceitos surgem do discurso de empresários e especialistas e afetam pouco a pouco a vida das empresas, se propagando pela cadeia produtiva dos mais variados setores até atingir o setor informal (Brasil, 2001, p. 54). Assim todas as empresas,

“[...] são pressionadas a trabalhar com padrões de tempo, qualidade, produtividade e custo exigidos em escala internacional (norma ISO, por exemplo) [...], [onde] novas e velhas práticas convivem numa mudança de paradigma. Mas o fato é que a nova filosofia de trabalho e produção se torna referência ou a técnica dominante” (Brasil, 2001, p. 54).

As diretrizes do Planfor falam de “um novo perfil e um novo conceito de qualificação, que vai além do simples domínio de habilidades manuais e/ou disposição para cumprir ordens” e no qual “não basta que o trabalhador ‘saiba fazer’; é preciso ‘saber ser’ e ‘aprender a aprender’”. Nesse contexto, “valoriza-se a participação, a iniciativa, raciocínio, discernimento, informação. Busca-se pessoas com iniciativa, capacidade de decidir e agir em face aos imprevistos ou eventos aleatórios – que são tanto mais freqüentes quanto mais modernas, integradas e informatizadas as empresas” (Brasil, 2001, p. 54) . Ou seja, é preciso ir além da “dimensão técnica” e atingir a “dimensão da cidadania” a qual, segundo o documento,

“ultrapassa os portões da empresa: ler, interpretar a realidade, comunicar-se oralmente e por escrito, lidar com conceitos abstratos, trabalhar em grupos, resolver problemas – tudo que se define como perfil de empresas de ponta, é na verdade, base do trabalho e da vida na sociedade democrática” (Brasil, 2001, p. 54).

A noção de cidadania aparece vinculada ao ideário da competência que por sua vez fica restrita às condições de trabalhador e de consumidor30, condições entendidas

como esferas da vida que não podem aparecer dissociadas ou segmentadas. Tal concepção torna indissociáveis a qualificação profissional, a educação básica e os conhecimentos adquiridos pela sociabilidade, ainda que com domínios e propósitos característicos próprios (Brasil, 1999a).

30 Cabe aqui destacar, sob a ótica que se pretende neste trabalho, que a cidadania, restrita às condições de consumidor e de trabalhador que pariticipa das diretrizae do Planfor, é reveladora da instrumentalização da educação. Para Habermas (1987a) essas são relações de segunda ordem e por onde os sistemas regidos pelos meios dinheiro e poder colonizam o mundo da vida. São âmbitos da vida regidos pela razão instrumental.

No conjunto de expressões utilizadas também está presente o termo “empregabilidade”, abundantemente aplicado ao conjunto de competências que visa a capacitar os trabalhadores na sua inserção e reinserção profissional. Não apenas presente nos documentos norteadores, o conceito aparece também no texto do coordenador nacional do programa:

“[...] conhecimentos, habilidades, comportamentos e relações que tornam o profissional necessário não apenas para uma, mas para toda e qualquer organização. O que sem dúvida é válido para o trabalhador em qualquer nível. Agora, mais importante que obter um emprego, é tornar-se empregável, manter-se competitivo em um mercado em constante mutação. Preparar-se para várias carreiras e diferentes trabalhos – às vezes até simultâneos. [...] Além de aprender é preciso empreender. Não apenas no sentido restrito de montar um negócio – o que, sem dúvida, se torna fundamental no contexto da reestruturação e mutação do emprego. Mas, acima de tudo, na acepção de localizar-se e empreender-se a si próprio, na economia e na sociedade em permanente transformação. O cidadão produtivo é aquele capaz de aprender a gerir uma realidade que tem como constante única a transitoriedade permanente” (Mehedff, 1997, pp. 10-1).

O ideário do Planfor naturaliza o conjunto das transformações no mundo do trabalho e seus impactos, remetendo aos trabalhadores individualmente a responsabilidade pela adaptação ao mercado de trabalho.

Nos trechos dos documentos norteadores da política pública, reproduzidos acima, evidencia-se a preocupação com a inserção competititva do Brasil, na qual a qualificação (educação profissional e a educação) aparece como um elemento que, ao agregar valor ao trabalho, traduz-se em vantagens competitivas. Um projeto ideopolítico estruturado racionalmente que deve contar com trabalhadores (e suas entidades representativas) adaptados a essa nova conformação do modo de acumulação e de dominação.

Como observa Frigotto (1995, p. 144):

“[...] globalização, integração, flexibilidade, competitividade, qualidade total, participação, pedagogia da qualidade e defesa da educação geral, formação polivalente e ‘valorização do trabalhador’ – são uma imposição das novas formas de sociabilidade capitalista

tanto para estabelecer um novo padrão de acumulação, quanto para definir as formas concretas de integração dentro da nova reorganização da economia mundial”.

É por dentro da política pública de emprego que os mecanismos ideológicos e fetichizantes da modernização colonizam o âmbito das organizações representativas dos trabalhadores, as quais, guiadas também pela razão instrumental, legitimam o modo de acumulação e dominação assim como a sua própria permanência enquanto organismo representativo.

No capítulo seguinte iremos tratar desse aspecto, por meio dos diferentes documentos emitidos pelas organizações sindicais. Assim, poderemos observar o modo como estas percebem o conjunto das mutações na esfera do trabalho, sua atuação e perspectivas, tendo como pano de fundo a questão da política pública de emprego e, mais especificamente, a questão da educação e da educação profissional.

CAPÍTULO 4. TRANSFORMAÇÕES NO MUNDO DO TRABALHO, EDUCAÇÃO E