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2.3 Concepções teóricas de leitura 29

2.3.3 Concepção de leitura como processo discursivo 34

A concepção de leitura como processo discursivo se “encontra na interface entre a análise do discurso e a desconstrução que considera o ato de ler como um processo discursivo no qual se inserem os sujeitos produtores de sentido – o autor e o leitor-, ambos sócio- historicamente determinados e ideologicamente constituídos” (CORACINI, 2010, p. 15). Essa perspectiva teórica é defendida por Coracini (2010) e por vários teóricos da Análise do Discurso (FOUCAULT, 1971; ORLANDI, 1988, 1999; BAKHTIN, 1929/2006), todavia, para discorrer sobre a dimensão discursiva, ancoro-me nas ideias de Coracini (2010) 6.

No processo discursivo, a leitura é construída a partir do olhar do leitor, sob as influências de um contexto histórico-social, o que significa que não é o texto que determina a leitura, porque é controlado pelos sujeitos imersos num contexto sócio histórico (ideológico), ou seja, é o sujeito situado historicamente o responsável pelas condições de produção. Nesse processo, o leitor é visto como sujeito complexo, sendo individual e, ao mesmo tempo, social.

6 Embora a autora apoie-se na perspectiva da Análise de Discurso de linha francesa, que leva em conta as condições de

produção dos sentidos num evento discursivo, operando na concepção de “sujeitos assujeitados”, ou seja, o sujeito que é socioestruralmente determinado, o que pode justificar o apagamento da voz autoritária e institucional do professor, interessa- me principalmente as vozes dos alunos expressas na situação de leitura de um texto na interação.

É um “sujeito clivado, heterogêneo, perpassado pelo inconsciente, no qual se inscreve discurso” (CORACINI, 2010, p. 17).

As contribuições da abordagem discursiva são fundamentais para o ensino- aprendizagem, por exemplo: a relação entre professor e aluno tende a ser horizontal, ambos se posicionam como sujeito no ato de conhecer o objeto; a construção de diferentes leituras, porque é realizada por um sujeito em constante transformação. Nessa visão, “o dizer é inevitavelmente habitado pelo já-dito e se abre sempre para uma pluralidade de sentidos, que, por não se produzirem jamais nas mesmas circunstâncias são, ao mesmo tempo, sempre e inevitavelmente novos” (FOUCAULT, 1971 apud CORACINI, 2010, p. 16).

Na escola, raramente, há práticas de sala de aula que privilegiam a concepção de leitura como processo interacionista (leitor/texto, leitor/autor), menos ainda a da concepção discursiva, porque dificilmente são permitidas nas aulas outras leituras que não sejam as definidas pelo professor e, na maioria das vezes, as pré-estabelecidas no livro didático. Temos aí uma parcela significativa de responsabilidades, porque estamos contribuindo para a homogeneização de consciências e reforçando a ideia de que o aluno não tem conhecimento algum. No entanto, existem professores buscando romper concepções pedagógicas cristalizadas e defendendo a ideia de uma leitura que permita a liberdade de interpretação do texto.

A concepção discursiva abre espaço para um afastamento das abordagens reducionistas e mecânicas de leitura, ao considerar que o registrado no texto não é necessariamente a única e imutável verdade, como impõe a concepção tradicional de leitura. Nesse aspecto, Coracini (2010, p. 27) explica, apoiada em Pêcheux (1969), que o “sujeito do discurso se caracteriza por dois esquecimentos ou duas ilusões”, a saber:

1. O sujeito tem a ilusão de que o sentido é uno;

2. O sujeito tem a ilusão de que o que diz tem apenas um sentido e todo interlocutor captará as intenções e as mensagens de forma idêntica a sua.

É nesse sentido que, há no nível consciente, o esquecimento de que o dito já é uma retomada do já-dito, o novo seria a condição de produção na qual se constrói o discurso. Depreende-se, portanto, que o sujeito não é uno, ele é constituído por outros sujeitos, por isso “não tem controle total sobre seus atos e atitudes” (CORACINI, 2010, p. 27) nem controle da linguagem, consequentemente, do sentido.

Dito isso, relaciono com a prática pedagógica em sala de aula para mostrar a ilusão do professor referente à construção do sentido: primeiro, o professor, mesmo sujeito integral,

ilude-se de que é dono de seu fazer pedagógico e o que diz é a única possibilidade; segundo, o professor por acreditar que é dono do seu dizer, ilude-se de que suas palavras têm um único sentido, por isso vai ser compreendido da mesma forma (mesmo sentido) por todos os alunos. Relaciono com o texto: primeiro, o texto não é uma unidade fechada, ao contrário, quando relacionado ao discurso, ele traz uma imensa carga simbólica, uma multiplicidade de sentidos, porque a leitura passa pelo viés da interpretação, do processo de construção dos sentidos de um texto pelo leitor. Assim, o texto é sempre um conjunto de sentidos, não pode ser visto como um produto inerte, alheio às relações com a sua exterioridade. Agora, refiro-me ao aluno, ele é constituído por formações discursivas e ideológicas e à proporção que entra em contato com um texto, inevitavelmente a construção dos sentidos sofre influências do seu olhar de sujeito social.

Esse contexto retrata resumidamente uma realidade das práticas pedagógicas muito presentes no ambiente escolar. Reflete concepções de ensino que, há muitos anos, subjazem às práticas de leitura, nas quais o professor é o dono do saber, o texto tem unicidade de sentido e o aluno é um recipiente a ser preenchido. Todavia, na leitura discursiva, posso dizer que o “sentido nunca é único e que os textos encaminham para ‘outros’ textos e neles ressoam, igualmente, outros discursos nem sempre pensados” pelos professores (VENTURINI, 2010, p. 486).

Na prática discursiva de leitura, ler um texto é compreender os sentidos explícitos e implícitos, é olhar além dos sinais gráficos, é falar em pluralidade de sentidos, é conceber o aluno um sujeito sócio-histórico, como Souza (2010, p. 22) explica “o sujeito é visto por Bakhtin como sendo permeado e constituído pelos discursos que o circundam”.

Para Freitas (1994, p. 136):

O sentido exige uma compreensão ativa, mais complexa, em que o ouvinte, além de decodificar, relaciona o que está sendo dito com o que ele está presumindo e prepara uma resposta ao enunciado. Compreender não é, portanto, simplesmente decodificar, mas supõe toda uma relação recíproca entre falante e ouvinte, ou uma relação entre os ditos e os presumidos.

Enfatiza-se aqui a concepção dialógica de leitura que é também a perspectiva do Pensar Alto em Grupo (PAG), na qual os leitores partilham os sentidos construídos coletivamente na interação. Esse aspecto é favorável a construção de sentidos, pois vivenciar trabalhos em grupo pode ser uma forma benéfica para o desenvolvimento da leitura e do leitor, enfim, discutindo abre-se espaço para se aprender.

Nesta subseção, sublinhei as diferenças entre as perspectivas de leitura tradicional, interacionista e discursiva. Iniciei com a perspectiva tradicional de leitura, abordei especificamente a leitura como decodificação, seguindo para o modelo ascendente (bottom-

up), descendente (top down), interativo, bem como a abordagem interacionista e, finalmente, o processo discursivo de leitura (práticas discursivas de letramento). Na próxima subseção, apresento considerações sobre conceitos e implicações do letramento.