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Há trinta anos acontecia uma ruptura epistemológica nos estudos de leitura e escrita, por conta das pesquisas de Shirley Heath e Brian Street sobre leitura e escrita (BAYNHAM e PRINSLOO, 2009). Esses trabalhos de natureza etnográficas delineavam uma nova perspectiva de pesquisas sobre leitura e escrita, na qual não bastavam reconhecer os códigos escritos nem repeti-los mecanicamente, era preciso considerar o contexto da própria prática, significando que não era uma questão de medição ou de habilidades, tratava-se de conceber que as práticas sociais variavam de um contexto para o outro.

Heath realizou uma longa pesquisa dos eventos de letramento de duas classes trabalhadoras, envolvendo brancos e negros, em contextos diferentes, a casa e a escola. Ela7 concluiu que os padrões de uso da linguagem e de letramento variaram conforme as classes sociais e era consistente com outras práticas culturais (BAYNHAM e PRINSLOO, 2009, p. 3). Esse foi um primeiro sinalizador para a concepção de letramento como prática social.

Street pesquisou um povoado no Irã, na década de 1970, cujas pessoas foram consideradas iletradas por conta de não terem passado nos testes da UNESCO. Conclusão diferente apresentada na pesquisa de Street sobre as práticas de letramento em diferentes contextos nesse povoado, visto participarem efetivamente de diferentes eventos que lhes exigiram conhecimentos da escrita, o que demonstrou não serem iletradas. O autor enfatiza que não devemos usar critérios de um contexto específico para avaliar outro, “devemos começar das concepções e usos da leitura e escrita que as pessoas já possuem” (STREET,1993, p. 84). Essa percepção de considerar o próprio conhecimento do indivíduo é bem freiriana, significando que Street sofreu influência das concepções de Freire.

7No original, em inglês: “She concluded that patterns of language and literacy use varied across local communities (and

across social classes) and were consistent with other cultural practices, […]” (HEATH, 1982, p. 50 apud BAYNHAM e PRINSLOO, 2009, p. 3).

Esse quadro já se desenhava no construtivismo. Nele, já se admitia que o conhecimento de mundo influenciava a compreensão do texto, talvez os primeiros passos para a concepção do letramento ideológico. Concernente ao ensino tradicional de leitura, o enfoque se referia apenas ao ato de decodificação, o sentido se encontrava no texto, alheio às influencias do contexto específico da prática imediata e amplo que é o sociocultural, reconhecendo, portanto, que o letramento autônomo corresponde à prática tradicional de leitura.

O letramento é “um termo-síntese para resumir as práticas sociais e concepções de leitura e escrita8”, não é uma tecnologia neutra que pode ser isolada de um contexto social específico (STREET, 1984/1995, p. 1)9. É influenciado pelas condições socioeconômicas, culturais, políticas e educacionais que dificultam a realização de estudos neutros sobre os múltiplos letramentos em diferentes contextos.

Kleiman (1995/2008, p. 11) conceitua letramento como um “conjunto de práticas sociais, cujos modos específicos de funcionamento têm implicações importantes para as formas pelas quais os sujeitos envolvidos nessas práticas constroem relações de identidade e de poder”. Para Soares (1998/2010, p. 39), letramento compreende o “resultado da ação de ensinar e aprender as práticas sociais de leitura e escrita” e o “estado ou condição que adquire um grupo social ou um indivíduo como consequência de ter-se apropriado da escrita e de suas práticas sociais”. Conceitua também como práticas de leitura e escrita embasadas numa concepção de o quê, como, quando e por que ler e escrever. As posições de Kleiman e Soares convergem para a dimensão social do letramento, denominada por Street (1984/1995) de modelo ideológico de letramento. Nessa dimensão, as práticas de letramento levam em consideração os aspectos da cultura e das estruturas de poder na sociedade. Vejo a importância de reconhecer que o aluno e o professor estão inseridos num contexto histórico e esse reconhecimento pode contribuir para uma prática de leitura reflexiva e potencializar a voz do leitor.

Isso evidencia que a concepção do termo é resultante de como a leitura e a escrita são concebidas e praticadas em determinados contextos, reforçando a importância de se assumir uma postura profissional crítica e reflexiva, sobretudo, se o intuito é formar cidadãos críticos e capazes de não se deixarem manipular pelo dito nos textos. Por isso, a necessidade de uma

8 No original, em inglês: “literacy' as a shorthand for the social practices and conceptions of Reading and writing” (STREET,

1984/1995, p. 1).

postura metodológica renovada do professor, diferentemente da prática de leitura ancorada em modelos pré-estabelecidos, devendo simplesmente serem seguidos.

Street (2000) destaca o risco de incorremos numa naturalização da expressão práticas de letramento, considerando que vários autores frequentemente se posicionam como se a conhecessem, mas nem sempre explicam o que significa para eles, como Fairclough (1992) diria que todos assumem saber o que querem dizer a respeito. Em face disso, Street aponta o perigo dessa naturalização para os trabalhos intelectuais. O mesmo problema da naturalização ocorre com a expressão prática social. Ela é largamente empregada por muitos teóricos, merecendo ser discutida, pois é um conceito bastante complexo e, como não é o objetivo desta pesquisa, não abordo tal questão.

A escola, em quase todas as sociedades, é a principal agência de letramento, contudo é importante ressaltar que as práticas de letramento não são exclusivas da instituição escolar, pois as exercemos em diferentes contextos. Tais práticas, dentro ou fora do ambiente escolar, abrem possibilidades para a formação de um sujeito letrado, sendo aquele que participa das práticas sociais de leitura e escrita (SOARES, 1998/2010) e sendo aquele que é capaz de organizar reflexivamente seu pensamento e questionar textos, mesmo textos respaldados por instituições de prestígio, como a bula elaborada por instituições médicas (KLEIMAN, 1995/2008).

Kleiman (2005/2010) descreve um sujeito letrado como aquele que se envolve nas práticas sociais de uso da escrita, realizando atividades úteis para atender suas necessidades individuais e coletivas, mesmo não tendo o domínio individual da escrita. Entretanto, as instituições de ensino parecem desconsiderar os diversos elementos dinâmicos que contribuem para as condições de produção e compreensão do texto escrito. As formas de letramento social e o ensino da escrita e da leitura no contexto dos usos reais da língua continuam sendo ignoradas, apesar de, nas últimas décadas, os problemas de letramento dos brasileiros serem mais discutidos.

Ao tratar dos Novos Estudos de Letramento (NEL/NLS), como formas culturais de uso da leitura e escrita, Street (1984/1995) propõe duas dimensões de letramentos: o autônomo e o ideológico. A primeira se refere às habilidades individuais, toma a leitura e a escrita como uma mesma e única habilidade. A aprendizagem dessas modalidades ocorre de forma gradual, assim, chegar-se-ia aos níveis universais de desenvolvimento da leitura. Essa dimensão não leva em consideração as semelhanças e as diferenças individuais de cada um nem os contextos sociais e culturais no processamento da leitura e escrita. Enfim é uma prática reducionista dessas habilidades.

A segunda dimensão, o letramento ideológico, compreende as práticas de letramento vinculadas às “estruturas culturais e de poder da sociedade e reconhece a variedade de práticas culturais associadas à leitura e à escrita em diferentes contextos” (STREET, 1993b, p.7). Isso significa que o letramento varia através dos tempos e das culturas e dentro da mesma cultura e admite a pluralidade das práticas letradas cujos sentidos dependem do contexto de produção, por isso as “práticas de letramento, no plural, são social e culturalmente determinadas” (KLEIMAN, 1995/2008, p. 37), ou seja, na concepção ideológica de letramento, as práticas letradas são influenciadas pelo contexto social.

Segundo Street (1984/1995)10, o letramento tem sentidos políticos e ideológicos e não pode ser visto separadamente nem tratado como um fenômeno “autônomo”. O autor assume que a concepção de letramento depende das instituições sociais, onde as práticas de leitura e escrita estão inseridas, pois a ideologia11 lhes é inerente, e não podem ser isoladas ou tratadas como neutras ou meramente como técnicas. Configuração que ressalta a necessidade da escola considerar a realidade dos sujeitos e proporcionar-lhes condições para os usos e as funções sociais da leitura e da escrita.

Referente ao tratamento do ensino da leitura e da escrita, Street (2000, p. 20) faz a distinção entre eventos de letramento e práticas de letramento, sugerindo ser útil tanto para situações de pesquisa como de ensino. Barton (1994 apud STREET, 2000) observou que a expressão eventos de letramento derivou da ideia sociolinguística de eventos de fala. O termo foi utilizado pela primeira vez por Anderson et al. (1980) que o definiram como uma ocasião durante a qual uma pessoa "tenta compreender sinais gráficos". Heath12 (1982, p. 93) caracterizou evento de letramento, como “qualquer ocasião na qual um texto escrito é integral à natureza das interações entre os participantes e de seus processos interpretativos”.

Em relação ao evento de letramento, Street (1993a, p. 82) explica que:

[...]. Um evento de letramento, então, é qualquer evento no qual a leitura ou escrita tem um papel. Se você está tentando fazer pesquisa sobre letramento, você não pode pesquisar ‘o letramento’ – você tem que encontrar algo para realmente examinar e isto é o que o conceito de ‘evento de letramento’ possibilita.

10 No original, em inglês: “literacy can only be known to us in forms which already have political and ideological

significance and it cannot, therefore, be helpfully separated from that significance and treated as though it were an autonomous thing” ,[…] “it assumes that the meaning of literacy depends upon the social institutions in which it is embedded” (p. 8).

11 Neste trabalho, o termo tem o sentido concebido por Street (1993b, p. 8): “como o lugar de tensão entre autoridade e poder,

de um lado, e a resistência e criatividade, de outro lado”.

12 No original, em inglês: “Barton (1994) notes that the term 'literacy event' derived from the sociolinguistic idea of 'speech

event'. It was first used in relation to literacy by A.B. Anderson and Stokes (1980) who defined it as an occasion during which a person "attempts to comprehend graphic signs" (1980, p. 59-65). Shirley Brice Heath further characterised a 'literacy event' as “any occasion in| which a piece of writing is integral to the nature of the participants' interactions and their interpretative processes" (HEATH, 1982, p. 93 apud STREET, 2000, p. 20).

Por considerar que essa expressão não explica “o fato de que todos nós temos modelos em nossas mentes do que qualquer evento de letramento significa” (ZANOTTO, 2014, p. 215), Street13 (2000, p. 20) emprega a expressão práticas de letramento (1984/1995) para focar o próprio evento e as concepções de leitura e de escrita que os participantes trazem para os eventos, imprimindo sentido. Assim, as práticas de letramento podem ser entendidas como conceitos, modelos sociais respectivos à natureza do evento.

Marcuschi (2008, p. 37) explica resumidamente que “eventos de letramento são eventos comunicativos mediados por textos escritos” e, apoiado em Street (1984/1995, p. 133), frisa que “práticas de letramento são modelos que construímos para os usos culturais em que produzimos significados na base da leitura e escrita”. Um exemplo ilustrativo: “a carta pessoal é um evento de letramento, mas a sua leitura e comentário entre amigos etc. é uma prática de letramento que envolve mais do que a escrita” (MARCUSCHI, 2008, p. 38). Referindo-me a esta pesquisa, utilizamos textos nas vivências do Pensar Alto em Grupo, para atingir um determinado fim, as situações organizadas são consideradas como eventos de letramento, e ao lermos e discutirmos, realizamos práticas de letramento.

Apoiada nos posicionamentos dos autores, afirmo que os eventos de letramento são todas as atividades que têm como base textos escritos e/ou oralizados a serem discutidos por um grupo de pessoas e as práticas de letramento é o desenvolvimento das atividades de leitura, a ação propriamente de interpretar e interagir, independentemente do número de participantes. Em outras palavras, as práticas de letramento se pautam num diálogo, no qual os participantes apresentam suas vozes a partir do texto, de outros participantes, de sua própria voz e da voz do professor, numa construção coletiva de sentidos, resultante de um trabalho colaborativo na interação.

Pela configuração exposta, posso inferir ser um modelo sustentado numa epistemologia que mostra uma relação entre o sujeito participante da prática e o artefato14, permitindo na interação um espaço para a sua voz, o que significa um reconhecimento de ele ser um sujeito ativo diante do texto. Essa seria a visão epistemológica do professor que atua como “agente de letramento” na perspectiva de Kleiman (2006b, 2009) e coaduna o pressuposto básico da prática do Pensar Alto em Grupo, ou seja, a perspectiva de letramento

13 No original, em inglês: “I have employed the phrase 'literacy practices' (STREET, 1984/1995, p. 1) as a means of focussing

upon ‘social practices and conceptions of reading and writing’, although I later elaborated the term to take account both of 'events' in Heath’s sense and of the social models of literacy that participants bring to bear upon those events and that give meaning to them (STREET, 1988 apud STREET, 2000, p. 20).

14Daniels (2003, p. 25), no capítulo 1 da obra “Vygotsky e Pedagogia”, esclarece que o termo é substituído em grande parte

na literatura por ferramenta. Ele ainda explica “artefato como algo impregnado de significado e valor por sua existência num campo de atividade humana”.

do PAG está relacionada à construção social, a que compreende mais do que processos individuais da prática de leitura e escrita.

Abordo as práticas de letramento, sob o enfoque dos Novos Estudos do Letramento (NEL/NLS), compreendendo que essas práticas na sociedade não podem ser investigadas apenas no âmbito linguístico nem no aspecto da competência individual, por isso, foco a perspectiva de leitura como “um ato de cognição, de compreensão, que envolve conhecimento de mundo, conhecimento de práticas sociais e conhecimentos linguísticos, muito além de fonemas e grafemas” (ROJO, 2009, p. 77).

O letramento é uma prática social construída na interação com o outro. Implica a participação ativa do indivíduo na sociedade, pois vive imerso em diversas situações nas quais lhe exigem ações e tomadas de decisão de cunho pessoal ou social. Em relação a esse aspecto, um exemplo de práticas e eventos de letramento, apoiada em Rojo (2009), ao citar as tarefas de uma brasileira chamada Naná.

 Naná é uma professora, mora sozinha e tem que realizar várias tarefas do cotidiano, como: na esfera doméstica - deixar orientações para a diarista, acessar seu banco, via computador, e fazer depósito on-line etc., e na esfera do trabalho – fazer chamada, ler textos, corrigir avaliações e atribuir nota e outros.

Essas tarefas exemplificam eventos e práticas de letramento e mostram que a maioria delas está presente na vida cotidiana do indivíduo, o que significa um sujeito letrado, ainda que não reconheça os sinais gráficos, e reforça que as práticas sociais não são exclusivas do ambiente escolar.

A escola, a mais importante das agências de letramento, tem como um dos objetivos fundamentais oportunizar a participação dos alunos nas práticas sociais que envolvem as habilidades de leitura e escrita, para tanto, precisa afastar-se de práticas tradicionais de ensino arraigadas, há muito, nesse ambiente, uma vez que, nela, “convivem letramentos múltiplos e muito diferenciados, cotidianos e institucionais, valorizados e não valorizados, locais, globais e universais, vernaculares e autônomos, sempre em contato e em conflito” (ROJO, 2009, p. 106-107).

Consequentemente, é preciso atentar para as práticas de leitura e escrita vivenciadas nas escolas e para os textos que transitam nesse espaço, pois o mundo contemporâneo reclama por novos conceitos, novas formas, novas posturas de se tratar o letramento na sala de aula. Já não basta um formato de letramento escolar como práticas de leitura e escrita de textos de gêneros escolares (anotações, resumos, resenhas, ensaios, dissertações, descrições, narrações e relatos, exercícios, instruções, questionários e outros), é necessário ampliar esse campo para

outros gêneros oriundos de contextos literários, jornalísticos, publicitários, bem como democratizar as práticas e eventos de letramento (MOITA LOPES e ROJO, 2004).

Como um dos objetivos da escola é propiciar a inserção de alunos em várias atividades, envolvendo a leitura e a escrita, de forma ética, crítica e democrática, não podemos desconsiderar a relação existente entre o homem e o mundo, visto que ele é um ser situado, faz parte de um contexto social com fortes contradições aprofundadas com choques entre valores emergentes e os valores passados, em que o primeiro, busca afirmação e o segundo a preservação (FREIRE, 1983/1986).

As abordagens dos Novos Estudos do Letramento (NEL/NLS) enfatizam o letramento como prática social (STREET, 1984/1995), que é uma perspectiva possível para as instituições de ensino exercerem um papel significativo para a formação dos alunos e para os professores desenvolverem práticas pedagógicas visando à formação de indivíduos críticos e reflexivos. Em suma, abordamos os conceitos e as implicações do letramento, bem como a naturalização das expressões prática de letramento e práticas de sociais e a distinção entre evento e prática de letramento.

A próxima subseção trata do Letramento Crítico (LC) como uma abordagem que pode ampliar a visão de mundo e possibilitar a conscientização do aluno, levando-o a questionar as relações de poder, as representações nos discursos e as suas implicações para o indivíduo e/ou para a sociedade.