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MÉRITO PROCESSUAL NAS AÇÕES COLETIVAS

3 DA CONCEPÇÃO INDIVIDUALISTA DO MÉRITO NO CPC 73 A UMA NOVA VISÃO DO CPC

O delineamento de toda teoria geral do processo civil brasileiro decorre da ideologização de que o processo é uma sucessão lógica de preclusões9, cuja análise e

enfrentamento do mérito da pretensão condiciona-se à observância e ao preenchimento dos requisitos legais extrínsecos e que tangenciam a noção de mérito processual (condições da ação e pressupostos processuais10).

9 O fenômeno da preclusão, estudado e sistematizado por Giuseppe Chiovenda, assume função muito relevante no processo civil. A partir da classificação do mestre italiana, considerada sob os aspectos temporal, lógico e consumativo, Antônio Alberto Alves Barbosa a definiu como o instituto que impõe a irreversibilidade e a auto-responsabilidade no processo e que consiste na impossibilidade da prática de atos processuais fora do momento e da forma adequados, contrariamente à lógica, ou quando já tenham sido praticados válida ou invalidamente. A preclusão, assim, garante ordem, coerência e direcionamento aos atos processuais, impedindo avanços e recuos que tumultuem a seqüência das fases procedimentais. É o impulso que movimento o encadeamento dos atos processuais e assegura celeridade na resolução dos conflitos. Incide tanto em relação às faculdades e ônus processuais das partes como em relação às questões decididas pelo juiz (CPC, art. 471). Há, ainda, a preclusão pro iudicato, que produz efeitos externos ao processo (LUCON; GABBAY, 2007, p.83).

10 As matérias de processo e de ação, na lei brasileiro, quando ausentes, levam a resultados diversos, pois a matéria de processo, se ausente e inconvalidável em qualquer um de seus aspectos, provoca a extinção do processo, enquanto a matéria de ação, em igual circunstância, enseja a carência da ação com extinção do processo. O certo é que, quando o juiz aprecia o mérito, porque presentes os elementos formativos ou funcionais do procedimento, fala-se que a sentença que julgou o pedido é de procedência ou improcedência (sentença de mérito) e, se transitada em julgado, é sentença. definitiva, enquanto a

O mérito processual decorre de uma construção de natureza individual que perpassa pelas alegações fáticas e jurídicas apresentadas pelo demandante na petição inicial e pelo demandado na defesa. Verifica-se que a construção do mérito no processo civil depende da atuação das partes que se encontram em juízo, especificamente da atuação do demandante e do demandado, que se legitimam na delimitação da matéria de mérito até o momento processual do despacho saneador, que é quando o magistrado aprecia as suas alegações e define qual das questões postas comporá a matéria de mérito a ser discutida em juízo. Importante destacar que o despacho saneador no CPC/1973 era um ato solitário do magistrado, pois a definição dos pontos controversos a serem debatidos no processo era uma exclusividade do julgador. O CPC/2015 traz uma nova proposta de contraditório, visto sob o viés do sistema participativo, relativizando esse protagonismo judicial e permitindo que os sujeitos afetados pelos efeitos do provimento final sejam seus coautores. A isonomia processual material é o fundamento central da formação participada do mérito no CPC/2015.

No CPC/1973 a participação do demandante e do demandado na construção do mérito processual era indireta ou praticamente inexistente, tendo em vista que não possuía a garantia de que todas as questões postas em juízo comporão a matéria de mérito que delimitará os contornos jurídicos da pretensão e da decisão a ser proferida; o despacho saneador era um ato processual de exclusividade do julgador, que evidenciava seu protagonismo. O magistrado era o legitimado exclusivo a definir as questões alegadas pelas partes e que considerava relevantes para integrar a matéria de mérito. Não era possível vislumbrar a possibilidade de construção participada do mérito processual, tendo em vista que a atuação do magistrado excluía qualquer forma de participação direta das partes interessadas na construção do mérito processual, haja vista que a delimitação da matéria e das questões que compunham o mérito era uma prerrogativa inerente ao conceito de jurisdição, considerada o poder-dever do Estado Juiz de dizer o direito mais adequado ao caso concreto. È nesse sentido que se manifesta Ernane Fidélis dos Santos

Estabelecidas, assim, as finalidades específicas do Estado, no exercício da jurisdição, podemos defini-la como o poder-dever do Estado de compor os litígios, de dar efetivação ao que já se considera direito, devidamente sentença transitada que só julgou matéria de processo e (ou) matéria de ação é sentença terminativa –

extingue o processo ou profere a carência da ação e extingue o processo. (LEAL, 2009, p. 136) (grifo

acertado, e de prestar cautela aos processos em andamento ou a se instaurarem, para que não percam sua finalidade prática11.

Verifica-se, na citação acima mencionada, a intrínseca relação estabelecida entre jurisdição, lide e mérito processual. A fundamentação teórica de origem romano- germânica do processo civil brasileiro parte da pressuposição de que a matéria de mérito a ser apreciada pelo julgador decorre de uma relação jurídica litigiosa entre as partes. É por isso que temos a dificuldade de identificar a matéria de mérito nos procedimentos especiais de jurisdição voluntária, haja vista a ausência de questões litigiosas entre as partes a ensejar a definição da controvérsia suficiente ao entendimento e a visualização da matéria de mérito no âmbito processual.

Sanear o processo12no CPC/1973 era momento processual de evidenciar

protagonismo judicial, pois o juiz declara inexistir quaisquer irregularidades ou nulidades que venham a comprometer a apreciação do mérito, além de definir unilateralmente as matérias e pontos controversos que integravam o debate meritório. “Por pontos controvertidos devemos entender as alegações fáticas e jurídicas sustentadas por uma das partes e negadas pela parte contrária”13. É importante ressaltar

que a fixação dos pontos controvertidos era uma prerrogativa exclusiva do magistrado14

a partir do que o autor alegou na inicial e o demandado sustentou em sua defesa.

O despacho saneador no CPC/1973 era a demonstração mais clara de que o processo civil brasileiro se estruturava na sistemática jurídica de uma sucessão lógica de preclusões, em que o magistrado era o sujeito legitimado para delimitar solitariamente a matéria de mérito e os pontos controvertidos da demanda a partir do que as partes alegavam.

11SANTOS, Ernane Fidélis dos. Curso de Direito Processual Civil. v. 1. 12. ed. São Paulo: Saraiva,

2007, p.09.

12 O saneamento é a ocasião em que o juiz resolve as questões processuais pendentes (pressupostos processuais e condições da ação) e determina as provas a serem produzidas, designando audiência de instrução e julgamento, se necessário (Cód. Proc. Civil, art. 331, §2º). Nesse momento, são fixados os pontos controvertidos objeto de comprovação. Como referido ato de fixação é meramente auxiliar do desenvolvimento da instrução, o juiz pode revê-lo no curso desta. Daí ser desprovido de conteúdo decisório, tendo natureza ordinatória. Já o saneamento, propriamente dito, tem caráter decisório, recaindo sobre as questões processuais, alegadas ou não, e sobre as provas requeridas pelas partes SANTOS, Ernane Fidélis dos. Curso de Direito Processual Civil. v. 1. 12. ed. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 276).

13 MONTENEGRO FILHO, Misael. Curso de Direito Processual Civil:teoria geral do processo e

processo de conhecimento. v. I. 7. ed. São Paulo: Atlas, 2011, p. 408.

14 O magistrado, quando fixa os pontos controvertidos, limita a instrução probatória, apenas permitindo sejam feitas indagações às partes e às testemunhas, no momento da realização da audiência de instrução e julgamento, se coincidentes com os pontos fixados anteriormente MONTENEGRO FILHO, Misael.

Curso de Direito Processual Civil: teoria geral do processo e processo de conhecimento. v. I. 7. ed. São

A participação de qualquer parte juridicamente interessada na discussão e na construção do mérito no processo civil brasileiro condicionava-se à anuência do julgador, uma vez que era o juiz quem analisa a existência dos requisitos formais e indispensáveis a análise do mérito, assim como era quem definia unilateralmente as questões consideradas por ele relevantes a integrar a matéria de mérito.

A concepção vigorante no CPC/1973 acerca do mérito no processo civil brasileiro decorria de proposições teóricas que preconizavam o processo como um recinto de prevalência da autoridade do julgador (tal como ocorre no processo coletivo15), em que a realidade vigorante consiste na exclusão de qualquer participação

das partes juridicamente interessadas na construção do provimento.

Certamente as proposições teóricas advindas pelo direito processual civil do século XIX causam reflexos diretos no entendimento do mérito no processo coletivo, tal como trabalhado e desenvolvido pela Escola Paulista de Processo, haja vista que o protagonismo judicial impossibilita a participação dos interessados difusos e coletivos na construção participada do mérito nas ações coletivas. O CPC/2015 ressignifica o modelo de processo autocrático proposto pelo CPC/1973 no momento em que retira do magistrado a exclusividade na definição das questões de mérito debatidas no processo. As partes interessadas passam a ter legitimidade na definição dos pontos controversos da demanda, possuindo a garantida de que todas as questões suscitadas deverão ser analisadas pelo julgador no ato de decidir, tal como explicita o artigo 489 CPC/2015.

A interpretação extensiva e sistemática dos princípios do contraditório (paridade de armas), primazia do mérito e isonomia processual material, trazidos pelo CPC/2015, são fontes que, quando utilizadas, democratizam o entendimento do processo coletivo, assegurando-se a todos os interessados difusos e coletivos o direito de participar na construção discursiva do mérito processual.

15 Para a Escola Paulista de Processo o magistrado exercerá sua autoridade de julgador tanto no âmbito

do processo civil quanto no contexto do processo coletivo. Nesse sentido se posiciona Paulo Henrique dos Santos Lucon: [...] o juiz assume funções de direcionamento e gerenciamento importantes no Anteprojeto do Código Brasileiro de Processos Coletivos. As preclusões, que não deixaram de existir, são apenas atenuadas, notadamente no que se refere à fixação do objeto litigioso do processo, submetido à interpretação extensiva do juiz, nos limites da necessidade de proteção do bem jurídico coletivo subjacente, considerando a relevância do contraditório, como dinamizador da relação processual, ao permear todo o procedimento LUCON, Paulo Henrique dos Santos; GABBAY, Daniela Monteiro. Superação do Modelo Processual Rígido pelo Anteprojeto do Código Brasileiro de Processos Coletivos, à luz da Atividade Gerencial do Juiz. Direito Processual Coletivo e o anteprojeto de Código Brasileiro de Processos Coletivos.Ada Pelegrini Grinover; Aluisio Gonçalves de Castro Mendes; Kazuo Watanabe

A sistematização do processo coletivo no Brasil decorre das premissas trabalhadas pela Teoria Geral do Processo desenvolvida em bases privatísticas e individualistas, o que leva alguns estudiosos a defender a existência do direito processual civil individual e o do direito processual civil coletivo16. Trata-se de uma

concepção de processo coletivo enraizada ainda na vertente civilista. Por isso, não se pode afirmar efetivamente a existência de uma autonomia do direito processual coletivo, tal como proposto pela Escola Paulista de Processo, tendo em vista que o respectivo ramo da ciência jurídica se desenvolve a partir da concepção unitarista de processo, cuja ideologia central é o processo civil. Pensar o processo coletivo a partir do processo individual autocráticoproposto pelo CPC/1973 é não admitir a existência de um modelo de processo coletivo democrático, pelo fato de limitar substancialmente a participação dos interessados na construção do provimento.