• Nenhum resultado encontrado

O DESASTRE AMBIENTAL DE MARIANA

4 PARA QUE SERVE A CONSTITUIÇÃO

A falta de atuação do Estado faz com que o mesmo não venha a corresponder com a Constituição, que consequentemente passa a ser entendida como mera “folha de papel”. Ou

7 LOPES, Raphaela de Araújo Lima. Caso do desastre socioambiental da Samarco: os desafios para a responsabilização de empresas por violações de direitos humanos. In: Desastre no Vale do Rio Doce:

seja, conforme doutrina de Ferdinand Lassale, a Constituição só é legitimada quando representa o efetivo poder social e reflete as forças sociais que constituem o poder8. Nesse

contexto, não podemos dizer que a Constituição Federal de 1988 tenha correspondência com a realidade. Lassale prossegue:

Os problemas constitucionais não são problemas de direito, mas do poder; a verdadeira Constituição de um país somente tem por base os fatores reais e efetivos do poder que naquele país vigem e as constituições escritas não têm valor nem são duráveis a não ser que exprimam fielmente os fatores do poder que imperam na realidade social; eis aí os critérios fundamentais que devemos sempre lembrar9.

Assim, o poder que emana do povo tem previsão apenas no papel. Os fatores reais de poder não são compatíveis com o texto constitucional. E aqui passamos a analisar, pois, o papel dos cidadãos, ou melhor, a perspectiva dos cidadãos diante da tragédia ambiental e humana operada em conjunto pela Samarco e pelo Estado.

Vimos que a parceria entre a Samarco e o Estado na violação dos direitosde comunidades atingidas ocorreu em grande parte pela justificativa dodesenvolvimento econômico e a perspectiva de que apenas com grandes projetos seria possível garantir o progresso e a prosperidade de uma região e deum país.

Tendo em vista a situação acima, em que medida os cidadãos poderiam participar a fim de impedir que uma tragédia como a que ocorreu envolvendo a empresa Samarco não voltasse a ocorrer? Qual papel o cidadão poderia desempenhar para mitigar o poderio econômico, jurídico e financeiro do Estado e da empresa mineradora? Haveria algo a ser feito?

Os direitos fundamentais, que surgiram com as revoluções burgueses, tiveram grande evolução desde então; e, nesse sentido, atualmente é correto afirmar que o cidadão deve ser protegido não apenas perante o Estado, mas também diante dos particulares, conforme nos informa José Emílio MedauarOmmati:

(...) os direitos fundamentais não nasceram de uma única vez. Foram sendo afirmados a partir de necessidades históricas e em função da cada vez maior complexidade da sociedade moderna.

Quando surgiram com as revoluções burguesas, os direitos fundamentais eram pensados em seu aspecto negativo, ou seja, sua função primordial era a defesa do cidadão contra possíveis arbitrariedades do Estado. Assim, os direitos fundamentais eram pensados e exercitados em relações verticais, já que, nessa perspectiva, o cidadão era a parte mais fraca da relação, ocupando o Estado uma posição de supremacia e superioridade.

Todavia, após a Segunda Guerra Mundial, começou-se a perceber que não apenas o Estado poderia violar direitos fundamentais. Particulares também poderiam violar direitos fundamentais de outros particulares sob a desculpa do exercício da autonomia privada. A partir desse momento, fundamentalmente na Europa, passa-se a discutir a possibilidade de aplicação dos direitos fundamentais não mais apenas quando um dos lados da relação fosse o Estado, é dizer em relações verticais, assimétricas, mas também em uma relação jurídica envolvendo particulares, ou seja, em relações de suposta simetria de poder, em relações horizontais.

(...) os direitos fundamentais nas relações entre particulares devem ser aplicados da mesma forma em que são aplicados quando em um dos polos da relação se encontra o Estado10.

Parte-se, portanto, da premissa de que foram violados diversos direitos fundamentais dos cidadãos no desastre ocorrido no município de Mariana, independentemente do responsável direto pela tragédia (Estado ou Samarco). Ou seja, uma vez violados os direitos à vida, à saúde, à higiene, ao lazer, à educação e à moradia dos cidadãos, enfim, uma vez que aqueles diretamente atingidos pela lama de rejeitos após o rompimento da barragem tiveram os rumos de suas vidas abruptamente ceifados, tais cidadãos são merecedores da devida proteção do Estado.

Uma atividade industrial danosa ao meio ambiente não pode servir apenas aos interesses dos acionistas das empresas envolvidas e também aos arranjos políticos de uma minoria que supostamente representaria os cidadãos. O meio ambiente não é uma questão estética e que interessa apenas aos mais abastados, ao contrário do que pensa Lawrence Summers, economista chefe do Banco Mundial em 1991, conforme relatado abaixo:

Em 1991, Lawrence Summers, o então economista chefe do Banco Mundial, redigiu um documento elencando os motivos pelos quais os países periféricos deveriam ser destino dos ramos industriais mais danosos ao meio ambiente. O primeiro dizia sobre a “estética” do meio ambiente, que segundo ele é uma preocupação apenas dos ricos. O segundo argumentava que as pessoas mais pobres viveriam menos de qualquer forma; assim, não estariam vivos para sentir os efeitos da poluição ambiental. Por fim, o terceiro argumento apontava que mortes em países pobres custam menos que mortes em países ricos. O documento ficou conhecido como Memorando Summers e nos esclarece o papel das elites mundiais no processo de desenvolvimento11.

Embora seja teoricamente deplorável, a prática exposta acima infelizmente ocorre. Ou seja, países periféricos a exemplo do Brasil e até mesmo regiões pobres dos países desenvolvidos, por serem mais vulneráveis, estão mais aptas a aceitarem a desigualdade

10 OMMATI, José Emílio Medauar. Uma teoria dos direitos fundamentais. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2017. p. 55-58.

11 DORNELAS, Rafaela Silva; LIMA, Laísa Barroso; ZANOTELLI, Ana Gabriela Camatta; AMARAL, João Paulo Pereira do; CASTRO, Júlia Silva de; DIAS, Thaís Henriques. Ações civis públicas e termos de ajustamento de conduta no caso do desastre ambiental da Samarco: Considerações a partir do Observatório de Ações Judiciais. In: Desastre no Vale do Rio Doce: antecedentes, impactos e ações sobre a destruição. Rio de

ambiental e tem como justificativa o desenvolvimento econômico. Quanto à desigualdade ambiental,

O conceito de desigualdade ambiental permite apontar o fato de que,com a sua racionalidade específica, o capitalismo liberalizado fazcom que os danos decorrentes de práticas poluentes recaiam predominantementesobre grupos sociais vulneráveis, configurando umadistribuição desigual dos benefícios e malefícios do desenvolvimentoeconômico. Basicamente, os benefícios destinam-se aos grandes interesseseconômicos e os danos a grupos sociais despossuídos12.

Em síntese: recaem sobre os cidadãos mais vulneráveis (e pobres) os efeitos danosos da atividade industrial. Aos menos vulneráveis, ou melhor, aos mais ricos, recaem os benefícios da atividade industrial, que vão desde o recebimento dos lucros e dividendos da atividade até a utilização dos melhoramentos agregados aos produtos proporcionados pela indústria. Infelizmente é essa a perspectiva dos cidadãos.