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III Competências de Avaliação

V. Conceptualização e Dinâmica do Caso

O André apresenta um quadro clínico de Enurese Nocturna Primária, bem como algumas dificuldades sócio-afectivas associadas, sendo que estas foram as principais dificuldades que motivaram a vinda ao departamento.

Na base das Perturbações do Controlo Esfincteriano está a noção de controlo dos esfíncteres, o qual corresponde a um processo de desenvolvimento que implica maturação fisiológica, desenvolvimento cognitivo, sócio-afectivo, bem como competências de auto- regulação e auto-controlo comportamental (Ajuriaguerra, 1974; Barros, 2004).

A Enurese é uma derivação latina do termo grego enourein, o qual significa “urinar em” e é considerada uma das queixas mais comuns nos consultórios de pediatria e psicologia clínica (Barros, 2004; Bragado, 2005). Ela é a emissão voluntária ou involuntária de urina na cama ou na roupa, por parte de crianças que possuem maturidade suficiente (5 anos de idade mental/cronológica é a idade limite aceite), na ausência de uma etiologia orgânica que explique aqueles episódios mictóricos (Ajuriaguerra, 1974; Oyola, Sacristán & Andaluz, 2000).

A Enurese pode ser caracterizada como Primária ou Secundária (segundo a classificação do DSM-III), consoante aconteça antes ou depois de um período de controlo de cerca de 6 meses (Ajuriaguerra, 1974; Bragado, 2005; Oyola, Sacristán & Andaluz, 2000; Nield & Kamat, 2004). A Enurese Primária ocorre antes de um período de continência, isto é, antes da criança controlar o seu esfíncter (Ajuriaguerra, 1974; Bragado, 2005; Oyola, Sacristán & Andaluz, 2000; Nield & Kamat, 2004), é o caso em questão.

A perturbação pode ainda ser classificada por Diurna ou Nocturna, de acordo com o período do dia em que ocorra (subtipos contemplados no DSM-IV) (Barros, 2004; Bragado, 2005; Marques, 2003; Oyola, Sacristán & Andaluz, 2000).

A EN pode causar grande infelicidade e distress, particularmente se os pais culpam ou punem a criança, provocando efeitos negativos nas crianças ao nível da sua auto- percepção e da sua relação com os pares e restringindo o seu envolvimento social (Bragado, 2005; Ullom-Minnich, 1996, citado por Geroski & Rodgers, 1998; Young, Brenner, Baker & Baker, 1995, citados por Geroski & Rodgers, 1998).

Em termos de dinâmica do caso, é possível colocar algumas hipóteses em relação aos factores envolvidos no surgimento e na manutenção desta problemática.

67 Relativamente aos factores predisponentes, parece ter contribuído para o desenvolvimento do referido quadro uma predisposição familiar, pois que, o pai foi antigo enurético, sendo que, de acordo com a literatura, o risco é de 43% quando só um dos pais apresentou EN quando criança (cf. Thiedke 2003; Bragado, 200). Assim, o risco de Enurese é cinco a sete vezes maior na descendência de um progenitor com história de Enurese (APA, 2002). Os processos desenvolvimentais pouco equilibrados e adaptados, nos quais não se reuniram as condições necessárias para a concretização das tarefas de desenvolvimento nos primeiros anos de vida, nomeadamente a aprendizagem da higiene também se associam frequentemente ao desenvolvimento da problemática em questão (Barros, 2004; Collier & Butler, 2002 citados por Nield & Kamat, 2004). Dada a história de Enurese associada ao progenitor, parece ter havido uma maior tendência para o adiamento da aquisição do controlo esfincteriano por parte da criança e do proporcionar de oportunidades de aprendizagem por parte dos cuidadores. Outros factores que podem estar associados ao desenvolvimento e manutenção da problemática do André, parecem ser as experiências de aprendizagem inadequadas, especificamente, influências ambientais que interferiram numa correcta aprendizagem, como a aplicação de contingências de reforço inadequadas (castigo, repreensão) que interferiram e atrasaram a aquisição ou o próprio controlo esfincteriano. De salientar que a Enurese chegou a ser considerada como uma condição psicológica, no entanto, defende-se mais recentemente que alguns problemas psicológicos são a consequência e não a causa do transtorno (Thiedke, 2003). A maior incapacidade associada à Enurese prende-se com a limitação da criança no que diz respeito às actividades sociais (por exemplo impossibilidade de dormir fora de casa) ou com o seu efeito ao nível da auto-estima, ostracismo social por parte dos pares e a insatisfação ou mesmo rejeição por parte dos cuidadores (APA, 2002; Butler, 2002, citado por Nield & Kamat, 2004), sendo que os mesmos são consequência e factor de manutenção do quadro de ENP.

Os medos recentes acerca da morte sentidos pela criança parecem estar relacionados com o facto de ter assistido, no final do ano passado, a um velório. Este acontecimento parece ter sido o precipitante da ansiedade manifestada actualmente pela criança, contribuindo e exacerbando assim uma predisposição anteriormente manifestada para este tipo de problemática. O André era, previamente a este acontecimento, uma criança com muitos medos, auto-estima e auto-confiança baixas, relacionados com a problemática da ENP (como já foi explicado anteriormente), verificando-se maior número de acidentes nocturnos sempre que as preocupações estão aumentadas.

Parecem existir também dificuldades no desenvolvimento sócio-afectivo e no processo de autonomia, os quais podem estar relacionados com as relações familiares e a

68 própria família como grupo de suporte social, podendo esta não estar a ser suficientemente suportiva. É sabido que o factor familiar é um forte preditor do bem-estar psicológico das crianças (Harpaz-Rotem, Rosenheck & Desai, 2006; Luecken, 2006). Os tipos de contexto e cenários assim como a qualidade das interacções familiares estão relacionados com os resultados desenvolvimentais daquelas (Burchinal et al., 2000, Peisner-Feinberg & Burchinal, 1997 citados por Daunhauer, Bolton & Cermak, 2005), confirmando-se a importância da família funcional como promotora de segurança, de estabilidade e de respostas psicológicas adaptativas (Liu, Diorio, Day, Francis & Meaney, 2000 citados por Luecken, 2006). Verificaram-se na díade mãe-filho algumas dificuldades na relação, parecendo esta distante e demasiado assimétrica (por exemplo, o André trata a mãe por “você”). As próprias verbalizações negativas e o uso de expressões comparativas com a irmã, não favorecem o desenvolvimento positivo do sentimento de competência, bem como não potenciam a auto-estima da criança.

Todavia, o André possui alguns factores protectores, indicados no quadro seguinte (Quadro 4), que apontam para a possibilidade de uma evolução positiva do quadro.

Factores protectores e recursos identificados no

adolescente

-A motivação com que aderiu ao primeiro procedimento de intervenção (registo diário noites secas);

-A disponibilidade e a vontade de estar na sessão terapêutica que pareceu demonstrar, e a sua postura aceitante, de abertura e de colaboração.

Quadro 4. Descrição dos factores protectores do caso clínico André