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CONCLUSÃO – A DEFESA DO TRADUTOR E DA TRADUÇÃO

O objetivo, ou melhor, os objetivos desta pesquisa eram, primeiramente, abordar, de uma forma interdisciplinar, um objeto de pesquisa que, por sua natureza, já é híbrido. De fato, o objeto em questão constituía-se de manuscritos autógrafos de poemas de Emily Dickinson traduzidos para o italiano pela poeta e tradutora italiana Rina Sara Virgillito. Não se tratava, porém, simplesmente de manuscritos, ou não somente de manuscritos, mas do testemunho privilegiado e complexo de um processo de criação tradutório.

Para dar conta desse complexo objeto de estudo, foram utilizados princípios da Crítica Genética, dos Estudos Descritivos da Tradução e da Semiótica Peirceana que, harmonizadas a um pensamento sistêmico novo paradigmático, buscaram aproximar, analisar, descrever, conhecer e explicar esse objeto de estudo muito peculiar. Pela primeira vez, de fato, tentou-se uma parceria teórica e metodológica entre Crítica Genética e Estudos Descritivos da Tradução para se estudar o processo criativo do tradutor, a partir de seus manuscritos. Tentou-se reconstituir, então, de uma forma empírica, com base nos dados colhidos e no corpus delimitado, o processo criativo do tradutor, tendo em vista detectar as leis e as normas seguidas, bem como as razões, as influências de vários tipos que o teriam levado a determinadas escolhas dentro de seu procedimento tradutório.

Mas, o objetivo não consistia, simplesmente, em mostrar um processo de criação com as leis que lhe são inerentes ou com suas dúvidas, influências, constrições internas e externas, mas sim, colocar em relevo a qualidade e a validade do trabalho criativo do tradutor. Dar-lhe visibilidade, mostrar como seu labor se desenvolve ao longo de anos, encontrando-se, por vezes, no meio de um complexo processo de interações com outros sistemas de vários tipos e que também contribuem à realização do produto assim chamado final. E como esse produto, uma vez tenha entrado em um sistema, é capaz de influenciá-lo, por sua vez, ou enriquecê-lo e mudá-lo.

Esta pesquisa quis, de fato, ser uma defesa da tradução e do tradutor, ainda hoje vítimas de preconceitos que lhes destinam um espaço pequeno, isolado e limitado dentro do polissistema cultural mundial em que se insere e que hoje, por sua vez, é visto dentro de um espaço global. Nesse espaço o tradutor é, geralmente, criticado pela má qualidade de seu trabalho, não somente por parte dos leitores, mas, sobretudo, e infelizmente, por críticos literários ou de tradução que, por sua vez, pouco sabem desse árduo trabalho e da forma complexa como acontece. A maioria deles ignora simplesmente essa complexidade que a análise dos manuscritos de Virgillito, dentro da abordagem da Crítica Genética, quis ilustrar, pela primeira vez. Essa complexidade, inerente ao trabalho tradutológico, está presente, não somente na própria recriação do texto fonte, mas sim na escolha do autor a ser traduzido, nas razões que teriam levado um tradutor a optar por um determinado texto, sem contar as conseqüências que essas escolhas acarretam, ou nas pesquisas realizadas que, às vezes, duram decênios e que constitui o trabalho pré-redacional, em que o tradutor busca, pesquisa, lê, recusa, desiste, retoma, começa, dialoga, briga com os textos a serem traduzidos.

A análise dos manuscritos dos poemas de Dickinson traduzidos por Virgillito revelou, assim, um universo flutuante e complexo que inclui diálogos intertextuais e intratextuais com as outras traduções publicadas daquele mesmo autor, ou diálogos vários com o texto a ser traduzido (ao longo de 40 anos) e com a literatura referente àquele autor (prefácios, ensaios, coletâneas, etc.), ou, ainda, diálogos com textos sobre a teoria da tradução. Ou seja, o tradutor existe, aparentemente está sozinho, mas trabalha cercado por um mundo que se nutre por

inputs os mais diversos, que modificam, enriquecem e influenciam não somente o seu

processo de trabalho, mas também, a estética do seu objeto de estudo.

Os manuscritos revelaram um modus operandi de um tradutor de poemas, que é similar ao modus operandi do poeta. De modo que, as recorrências encontradas nos manuscritos das traduções de Virgillito eram as mesmas encontradas nos manuscritos de seus poemas editados ou inéditos, assim revelando um preciso método de criação artística, tanto na tradução quanto na composição de seus poemas.

Em suma, o tradutor é também criador de novos textos, de novas obras que, uma vez terminadas, entram no polissistema literário de uma determinada cultura, influenciando-a e enriquecendo-a com a sua contribuição. Não é possível aceitar, portanto, a idéia de que literatura traduzida não seja literatura, ou de que o tradutor não seja um escritor.

Se o objetivo principal, ou aquele ao redor do qual confluíram os outros objetivos desta pesquisa, foi o de defender o trabalho do tradutor, mas baseando-se em uma análise

precisa e detalhada das formas físicas do seu labor, por outro, se quis também questionar mitos ligados, de algum modo, ao processo tradutório ou criativo em geral.

O fato é que, embora ainda persista a idéia de que esse trabalho criativo seja algo espontâneo, ao se observarem os manuscritos do tradutor, depara-se com um outro tipo de abordagem.

O trabalho de criação que os manuscritos revelam é um oficio com regras, leis, etapas precisas que requerem conhecimento, disciplina, criatividade, esforço e paciência que não dependem somente do autor/tradutor. Pois, ele não domina, completamente, seu conhecimento e seu processo de criação, que se comporta como um sistema complexo, cuja aparente organização vê-se constantemente ameaçada e modificada pelo ruído, ou seja, pela chegada de novas informações que o autor e seu sistema criativo recebem dos polissistemas ao seu redor. São esses ruídos, que dão sempre um novo e imprevisível rumo a esse trabalho, por isso não faz sentido se falar em obra acabada, final, interpretável e compreensível, mas sim, de processo criativo instável, imprevisível e subjetivo. Por isso não faz sentido falar do autor de uma obra, mas sim de autores, desde que no processo de criação de um texto participam, freqüentemente, o escritor, a editora, os revisores e os organizadores. Todos eles deixam marcas precisas, mas não tão visíveis assim, a menos que se tenha o privilégio de estudar, como neste caso, os seus manuscritos. Por isso não faz sentido falar de fidelidade ao

original, de mensagem do autor, de equivalência entre original e texto final. Mas sim, prefere-

se falar de validade e dignidade dos originais ou do trabalho do tradutor e de seus textos nunca completamente acabados, que ajudam a compor um polissistema literário e o mantém vivo. Logo, um texto pode ser considerado literário, não enquanto texto acabado, mas sim enquanto texto portador de sentidos poéticos múltiplos.

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