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3. PLURALIDADE DO OBJETO DE PESQUISA E SEUS ARCABOUÇOS TEÓRICOS

3.5 UM OBJETO DE PESQUISA MULTIFACETADO

O objeto desta pesquisa poderia ser comparado a um prisma com três faces: um lado estaria ocupado por um manuscrito, o segundo por uma tradução e o terceiro por um processo de criação. Trata-se dos manuscritos de 114 poemas de Emily Dickinson traduzidos pela poeta e tradutora italiana Rina Sara Virgillito. Os cinco cadernos manuscritos foram encontrados em agosto de 1996, após a morte da poeta, na sua casa em Bergamo, na Itália, pela amiga e herdeira universal, Sonia Giorgi.

A tradução dos poemas de Dickinson foi o último empreendimento literário da poeta que, por causa da morte, ficara inacabado. Os cinco cadernos foram estudados durante cinco anos, período em que se realizou também a análise filológica e a transcrição dos cadernos, em vista de uma possível publicação, o que finalmente ocorreu em 2002, em Milão, pela editora Garzanti.

Os poemas em questão já foram objeto de estudo da pesquisa de Mestrado De poeta a

poeta: a única tradução possível? O caso Dickinson/Virgillito. Naquela ocasião,

fundamentando-se na Teoria Descritiva da Tradução, buscou-se analisar as traduções das poesias da americana Emily Dickinson feitas por Rina Sara Virgillito, uma poeta reconhecida pelo cânone, bem como, por outros sete tradutores não reconhecidos pelo cânone. Por poeta

potencial ou poeta não reconhecido pelo cânone se entende um tradutor que lida com poesia,

mas pode não ter publicado coletâneas de versos na língua materna ou tê-las publicado, sem, contudo, ser reconhecido socialmente como poeta.

Portanto, utilizando a metodologia dos Estudos Descritivos, procurou-se retornar das traduções às estratégias e às normas não somente lingüísticas que condicionaram os vários tradutores. No caso em questão, analisaram-se textos poéticos, visando a ilustrar se realmente existe uma diferença significativa entre as estratégias adotadas por poetas reconhecidos pelo cânone e as daqueles não reconhecidos e, se possível, poder-se-ia remontar às razões que originaram esses diferentes comportamentos.

Levantaram-se as hipóteses de que o poeta e os tradutores costumam optar por diferentes procedimentos. O primeiro não seria influenciado no ato tradutório somente pelo sistema de chegada, que inclui, como disse Lefevere (1992), editoras, padrões poéticos, etc.; mas, como sustenta Benjamin (1992), estaria mais preocupado com a realização de uma certa poeticidade do texto de chegada (e por isso estaria mais influenciado pela própria poética, que resultaria no texto a ser traduzido). Mediante a análise dos textos e das suas ocorrências,

queria-se mostrar como os tradutores não reconhecidos pelo cânone sofrem as restrições dos polissistemas de chegada (sobretudo das editoras) e das normas poéticas, ou como estão direta e forçosamente preocupados, pelas devidas razões, em tornar o texto o mais comunicável possível - sobretudo em se tratando de textos de um poeta, como no caso de Emily Dickinson. Esses textos tanto se afastam dos padrões lingüísticos e culturais, quer do próprio sistema de partida, quer do sistema de chegada.

Um outro fator considerado foi a questão da motivação. De fato, o poeta reconhecido pelo cânone, geralmente escolhe traduzir um outro por razões de mera afinidade, enquanto os poetas não reconhecidos pelo cânone, por sua vez, raramente têm esse privilégio, já que devem sujeitar-se aos ditames do mercado. A tradução de textos e, conseqüentemente, o tradutor, encontrar-se-iam, assim, no meio de dois processos conflitantes: um originário (a motivação) e um de chegada (as normas do sistema receptor), que dariam origem a diferentes produtos conflitantes entre si, como o próprio sistema de chegada e, enfim, os textos de partida.

Na dissertação de Mestrado, as versões de Virgillito foram comparadas com as de sete tradutores. Consideraram-se as traduções mais recentes, editadas de 1990 até hoje, sendo também um período representativo do crescente interesse pela poeta americana por parte do ambiente literário e acadêmico italiano, o que registra um maior número de edições. Escolheram-se, além das traduções dos mais conceituados especialistas e estudiosos de Emily Dickinson e da literatura americana, também as de tradutores que já publicaram prosa ou poesia e lidam, de alguma forma, com a tradução poética. Foram estudadas todas as sete coletâneas contendo as poesias em apreço, seguindo os princípios do método utilizado pelos teóricos dos Estudos Descritivos. Utilizou-se, especificamente, o esquema hipotético idealizado por Gideon Toury e aperfeiçoado por José Lambert e Van Gorp.

O primeiro passo foi o de colher informações sobre as traduções, ou melhor, colher indícios graças aos quais se poderia estabelecer que aquelas eram traduções do ponto de vista do sistema de chegada. Inicialmente, analisaram-se as sete coletâneas que contêm as 125 poesias escolhidas como o corpus a ser estudado, nos seus níveis preliminar e macro- estrutural; em seguida, analisaram-se as 125 poesias no nível micro-estrutural. Segundo a Teoria Descritiva, uma análise preliminar dos vários níveis, macro e micro-estrutural, deveria revelar uma certa homogeneidade nas estratégias adotadas pelo(s) tradutor(es).

Em suma, o objetivo da pesquisa foi o de abordar, de forma não prescritiva, a questão da traduzibilidade de textos poéticos. Partiu-se do pressuposto de que, à luz da evolução, por um certo ângulo até revolucionária, dos estudos sobre tradução, não se justificaria mais uma

concepção da análise do processo tradutório somente do ponto de vista lingüístico. De fato, um texto não se constitui somente de signos lingüísticos, por sinal, nem facilmente transferíveis de um código para o outro, mas também de signos literários, ou com valor literário, cultural, social. Seria, pois, impossível não considerar esses aspectos na análise de qualquer texto, sobretudo de um texto traduzido. Além disso, compartilhou-se a exigência questionada pelos teóricos dos Estudos Descritivos, de dar uma fundamentação empírica e não somente ideológica aos estudos sobre tradução. Isso levou a considerar como ponto de partida da pesquisa o corpus e os dados obtidos, e não as teses e os postulados estabelecidos a

priori.

Buscou-se, sobretudo, demonstrar a falácia da crença de que só um poeta poderia traduzir outro poeta, afirmando-se que, ao contrário, um poeta pode até traduzir outro poeta melhor do que qualquer outro tradutor, mas que esta presumível melhor qualidade, quando existe, não depende só de um dom e de uma competência implícita. Contudo, depende das várias influências que o processo e as escolhas do tradutor-poeta sofreriam por parte dos padrões literários e sócio-políticos do polissistema de chegada, inclusive considerando ou não o seu espaço de cânone nesse polissistema.

De fato, tentou-se mostrar, mediante a análise do corpus escolhido, que existe uma diferença grande entre as traduções de poetas reconhecidos pelo cânone e as dos não reconhecidos. Essa diferença, porém, não seria só resultante da competência poética de cada um dos autores, mas também, e, sobretudo, conseqüente das constrições de tipo literário, estilístico, econômico e temporal que os tradutores, por várias razões, sofreriam por parte das editoras, dentre as quais o escasso prestígio literário e social.

Espera-se, dessa forma, ter dado com essa pesquisa uma contribuição para uma maior clareza acerca dos processos tradutórios e uma maior visibilidade ao papel do tradutor, que mais uma vez se revelou limitado, não no que diz respeito à sua competência, mas no que diz respeito à sua liberdade de ser um profissional reconhecido e livre para assumir as escolhas necessárias ao trabalho que, ele só, melhor conhece.

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