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I’M NOBODY! AS IMPOSSÍVEIS DEFINIÇÕES DE UM AUTOR

4. A PRÉ-GÊNESE: O AUTOR TRADUZIDO

4.4 I’M NOBODY! AS IMPOSSÍVEIS DEFINIÇÕES DE UM AUTOR

Eu não sou ninguém! Quem é você? Você è ninguém também? [...] como é monótono ser alguém! [...](Tradução nossa) (DICKINSON, 1997, p. 304).88

Esses são alguns dos versos da poesia n. 288 de Emily Dickinson. Certamente as palavras da própria autora valem mais do que qualquer análise crítica que busque expressar o desinteresse da autora americana em ser definida por algum crítico literário. Como vimos no decorrer deste capítulo, desde cedo, Emily Dickinson teria escapado a ser rotulada dentro de qualquer padrão, fosse como a perfeita mocinha da América vitoriana, ou como a filha devota e submissa, ou a virgem solitária.

O fato é que Dickinson fugiu sistematicamente da fama, recusando a padronização de seus poemas e de seu pensamento aos modelos literários da época. Se ela mesma quis fugir a qualquer classificação, é uma tarefa inútil a dos críticos que tentaram e tentam ainda, catalogar sua gramática desviante, sua pontuação rebelde, sua poética desafiante, e que, acabaram moldando sua personalidade e poética para que pudessem servir, em cada época, a fins diferentes. Assim, na Nova Inglaterra, Dickinson tornou-se um baluarte do espírito da comunidade puritana. Por outro lado, críticos literários de diferentes países, em diferentes polissistemas literários, definiram a sua poesia, às vezes, como metafísica; outras como pré- feminista, tendo sido, primeiramente, considerada como uma obra periférica em relação ao cânone literário; para, afinal, ser inserida dentro do círculo dos maiores poetas de todos os tempos. Essas múltiplas interpretações da autora Emily Dickinson levam à inexistência de

uma Emily Dickinson e confirmam o que sustenta Michel Foucault, ao falar da questão

delicada da autoria, pontuando que a função do autor comporta uma pluralidade de egos:

[...] a função autor [...] ela não se exerce uniformemente e da mesma maneira sobre todos os discursos, em todas as épocas e em todas as formas de civilização; ela não é definida pela atribuição espontânea de um discurso ao seu produtor, mas por uma serie de operações específicas e complexas; ela não remete a um individuo real, ela pode dar lugar simultaneamente a vários egos [...] (FOUCAULT, 1969, p. 278-9).

Enfim, todas essas definições não conseguiram evitar o que tanto preocupara Emily Dickinson e que pertence, como ela disse, à fama: a monotonia. De fato, não lhe interessava ser um autor, fazer literatura, pertencer a uma escola, estar engessada dentro de um paradigma, mas sim transcrever a palavra poética da forma mais fiel possível. Vivia num espaço geográfico limitado, o do seu quarto; e num espaço intelectual todo seu, o do seu pensamento, cujo ponto central era a palavra, sendo a poesia o seu diâmetro. Ela mesma se anulara, de certa forma, apagara o seu aspecto físico, a aparência de sua pessoa para que só o seu poema sobressaísse. Da mesma forma, ela não estava interessada em publicar os seus poemas, mas deixou vestígios de sua poética, de sua criação, do seu percurso intelectual, especialmente nos manuscritos, que organizou para que testemunhassem para si mesma e talvez para os outros, aquela comunicação privilegiada que constituía a sua arte.

A atitude de Dickinson e as diferentes, múltiplas e discordantes teorias sobre a autora americana somente confirmam, ainda uma vez, que não existe autor que se possa definir a partir somente de sua obra editada. Sobretudo, nos casos em que, como no de Dickinson, o autor não teve parte nenhuma nas opções que levaram à obra assim chamada de definitiva que, por sinal, sofreu alterações e manipulações de editores e copistas, ao longo dos anos.

Se for possível encontrar um caminho para conseguirmos aproximações de sua obra e de sua poética, só poderá ser feito através de seus manuscritos, os únicos vestígios que deixou de seu pensamento, de seu processo criativo, de suas dúvidas. Lá e somente lá, naquele espaço fisicamente limitado, mas intelectualmente ilimitado da folha branca, é que ficaram registradas hesitações lexicais marcadas na marginália; só lá é que se pode chegar a aproximações para desvelar um pouco da poética de Dickinson. Ou, então, na interseção entre biografia, poesia, criatividade, filologia, mistério e competência, é que talvez, se possa tentar alcançar uma definição aproximada do que seria um Autor?

Mas não seria mais interessante questionarmos acerca do processo de criação em si? Não seria, talvez, melhor falar do processo criativo de Emily Dickinson, mais do que da

autora Emily Dickinson? Se a imagem do autor e a apropriação que delas fazem os vários

críticos é algo absolutamente variável, não seria mais conveniente concentrar-se no percurso intelectual revelado pelos manuscritos, ou nos caminhos de uma criação artística que perpassa correntes literárias de varias épocas? Será que, na verdade, não existe um Autor, mas o que há é o aspecto tangível de uma criação, cujos índices se pode perceber no processo empírico revelado pelos manuscritos poéticos?

Da mesma forma, acredita-se que se possa estender essa proposta de aproximação ao trabalho poético do tradutor, através do estudo dos seus manuscritos. O fato é que será possível compreender um pouco das estratégias, normas, influências, constrições, escolhas, dúvidas que caracterizam cada processo tradutório.

Tendo em mente que, se não existe autor, também não existe obra, porque, como dizia Benjamin, não há um leitor específico; e partindo da premissa de que nenhuma obra de arte foi concebida para um leitor e para um receptor específico, mas pressupõe “[...] somente a existência e a essência de um homem em geral [...]”;89 então, nenhuma obra de arte nasce para um receptor. Por que deveria, então, a tradução servir a um leitor? Se não existe obra, também não existe tradução, mas sim o processo tradutório específico de um tradutor.

O que se deseja, portanto, neste trabalho, é desvendar o processo criativo de Rina Sara Virgillito ao traduzir o processo criativo de Emily Dickinson. E reconhece-se que existe uma publicação de Virgillito, que é foco de análise desta pesquisa; que não é o resultado final de um processo estético, mas somente uma etapa considerada final de um percurso sempre inacabado. Logo, existe a Emily Dickinson lida, escolhida, traduzida por Virgillito; existem leis e normas que nortearam esse processo e que podem revelar algo acerca do fenômeno da

criação. Aliás, um fenômeno que vai além de qualquer autor particular.

5. A FASE PRÉ-REDACIONAL EXPLANATÓRIA: AS APROXIMAÇÕES ENTRE

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