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FASES DE ORGANIZAÇÃO DO DOSSIÊ GENÉTICO

3. PLURALIDADE DO OBJETO DE PESQUISA E SEUS ARCABOUÇOS TEÓRICOS

3.4 FASES DE ORGANIZAÇÃO DO DOSSIÊ GENÉTICO

As principais etapas de um estudo genético, e por conseqüência, desta pesquisa, são as seguintes:

 1) Foto-copiar ou micro-filmar os manuscritos. Nem sempre, de fato, os documentos são accessíveis ao pesquisador, por causa de seu estado precário de conservação ou por uma série de limitações de vários tipos, estabelecidas pelas diferentes instituições possuidoras dos suportes manuscritos autógrafos, sobretudo quando o autor já morreu. No caso desta pesquisa, por exemplo, o acesso aos documentos só foi possível graças à intercessão da herdeira universal de Virgillito, a Prof. a Sonia Giorgi, que concedeu os fac-símiles dos manuscritos de Virgillito por ela possuídos e que facilitou a consulta dos originais guardados no Arquivo Histórico de Florença, na Itália;

 2) Numerar os fólios para tornar sua ordem menos caótica, ou dar uma ordem cronológica aos fólios, buscando reconstituir o provável encadeamento das fases da redação; a numeração em ordem crescente é feita na frente de cada fólio, na margem direita, ao alto;

 3) Fixar os rascunhos, ou seja, fixar unidades redacionais, os agrupamentos de frases, mais raramente de palavras, que ocupam um espaço definido nos fólios dos manuscritos. Trata-se, em outras palavras, da transcrição da parte redigida, sobretudo, quando é pouco legível em sua distribuição na folha. Claramente, a transcrição implica em uma intervenção por parte do pesquisador, pois, de fato “[...] toda transcrição de manuscritos é modelada por um olhar, o qual, por sua vez, deve ser também modelado pela realidade de seu objeto, se deseja produzir dele uma representação adequada.” (SALLES, 1992, p. 56). Para efetivar a transcrição, o geneticista recorrerá a um código de transcrição, que deve dar conta de todas as ocorrências encontradas no texto, como acréscimos, supressões, deslocamentos, e substituições.

Existem vários tipos de transcrições: 1) a diplomática, que consiste na reprodução datilográfica de um manuscrito que respeita fielmente a topografia dos significantes gráficos no espaço, e em que cada unidade é transcrita no mesmo lugar da página que ocorrera no original; 2) a semidiplomática, que consiste na reprodução datilográfica do manuscrito, assim como está no original, mas desenvolvendo, por exemplo, abreviações e rasuras; e, enfim, 3) a linear, a que foi adotada nesta pesquisa, que consiste na reprodução datilográfica de um

manuscrito, que transcreve todos os elementos do original, mas sem respeitar a topografia da página. Por não existir ainda um consenso acerca do código a ser utilizado, ou uma padronização, no caso de nossa pesquisa foram adotados os seguintes operadores:

Tabela 1 - Operadores utilizados na transcrição # versão

/ /? leitura duvidosa

[/ /?] leitura duvidosa de parte ou palavra riscada /?/ palavra ou parte de palavra ilegível [/?/] palavra ou parte de palavra riscada ilegível < > acréscimo

>> acréscimo à direita << acréscimo à esquerda

* para comentários do pesquisador [ ] apagado

( ) substituem o circulado do manuscrito. ↓ substitui deslocamento para baixo. ↑ substitui deslocamento para cima. → substitui deslocamento para a direita. ← substitui deslocamento para a esquerda.

Segue, a título de ilustração, a transcrição linear de um dos fólios do dossiê de Virgillito:

757 caffè dell’Alberto

10/10/95

1 Le montagne - di nascosto crescono - le loro forme di viola ←(si levano) senza sforzo ↓ - stanchezza -

battimani - o soccorso - >> . >>

5 Nei loro volti eterni con giusta gioia - il sole -

< [guardava] >

↓ a lungo - d’oro - cerca < finalmente >

10 compagnia ↓- nella notte

______________________________

< [al venir notte] >* (FV, caixa 210, terceiro caderno, fol. 11).

3.4.1 Observação e interpretação do prototexto em busca de sua Metafísica evolutiva

Após a fase de organização do material a ser estudado, o geneticista passa à leitura dos rascunhos transcritos de que decorrem quatro tipos de informações referentes ao processo criativo do autor:

 Informações extratextuais: elementos que não têm nenhuma relação com a produção de enunciados literários. Por exemplo, comentários particulares, um desenho sem relação com a atividade poética;

 Indicações de inscrição: indícios da maneira de redigir circunstanciada. O conjunto das condições de redação (com qual estado de espírito foram feitas correções, rasuras, substituições.);

 Comentários relativos ao texto: registros sobre a própria maneira de escrever;

 Notas de regência: juízo do scriptor sobre o que ele está escrevendo, um ato de reflexão sobre si mesmo destinado ao próprio sujeito e tendo em vista a organização futura de sua obra. Tem valor de opção e são verdadeiras prescrições que o scriptor dirige a si mesmo, ou um metatexto.

Evidentemente, a análise do geneticista não se pode fundamentar somente no prototexto e nas informações de vários tipos que ele colhe, mas sim deve procurar “[...] em outras ciências, [...] instrumental teórico que o habilite a analisar e interpretar o material e, assim, poder falar em explicações ou leis.” (SALLES, 1992, p. 59). Precisa, de fato, lembrar, que o objetivo principal de qualquer estudo genético, e também descritivo da tradução, é exatamente encontrar as explicações e leis que direcionam todo processo de criação artística; por isso, porém, é necessário que as observações decorrentes da análise do prototexto sejam inseridas em um sistema interpretativo fundamentado em alguma teoria.

O semioticista americano Charles S. Peirce (1931-58) afirma ser necessário recorrer à

Metafísica evolutiva para poder entender um pouco sobre qualquer processo perceptivo. Cabe

lembrar, de fato, que o manuscrito constitui a forma física do fenômeno mental, da percepção, ou melhor, “[...] o manuscrito é um meio através do qual temos acesso ao fenômeno mental da criação.” (SALLES, 1992, p. 66). O estudo dos manuscritos pode revelar, então, esse percurso evolutivo da mente criadora do artista a partir, quem sabe, do primeiro sintoma do despertar artístico, da primeira imagem geradora, até o produto assim chamado de final. Esse processo com tendência é chamado de processo télico, que é nada mais que o desejo do artista de chegar àquela exata idéia de obra que ele tem em mente, e com aquelas determinadas

características que idealizou. A teoria desenvolvida por Peirce visa exatamente a facilitar a compreensão desse processo evolutivo que, segundo ele, aconteceria conforme três modos de evolução do pensamento: o tichismo, o ananquismo e o agapismo.

O tichismo é a evolução sem propósito por causa de circunstâncias externas ou por força da lógica; não existe uma causa específica para que se tome uma determinada direção, é uma evolução incontrolável. O ananquismo é a evolução determinada por uma força bruta que leva à adoção de novas idéias sem prever para aonde elas irão. Por causa disso, um habito até certo ponto adquirido pode ser substituído por outro completamente oposto, devido a causas externas, como uma doença, uma guerra, ou por causas internas de que não se conhece o rumo. A última, o agapismo ou amor criativo é a única evolução com propósito:

[...] é a adoção de certas tendências mentais, não totalmente sem propósito, como no ‘tichismo’, nem cegamente, isto é, por força da lógica ou das circunstâncias, como no ‘ananquismo’, mas por uma atração imediata pelas idéias cuja natureza é admirada antes da mente possuí-las (SALLES, 1992, p. 69-70).

No decorrer da gênese de uma obra pode haver, ao mesmo tempo, a passagem por essas três fases ou somente por algumas delas.

No caso desta pesquisa, a análise do prototexto será fundamentada não somente na metafísica evolutiva de Peirce, mas também na Teoria Descritiva da Tradução, em se tratando, o nosso objeto de estudo, de manuscritos de traduções. Pelo suposto até o presente, pode-se observar que a Crítica Genética e os Estudos Descritivos possuem o mesmo paradigma, ou seja, uma metodologia similar e, sobretudo, princípios teóricos que funcionam em perfeita sintonia. Ambas se servem de uma metodologia de investigação de caráter indutivo. A primeira, ao estudar o manuscrito, visa chegar a

[...] possíveis conclusões relativas a uma teoria da criação. Conclusões essas não mais baseadas em hipóteses desenvolvidas de forma dedutiva, a partir da obra acabada ou a partir de depoimentos de artistas. A crítica genética faz uso de inferências partindo de fatos concretos que funcionam como índices de suporte para uma teoria. Registra os dados de fato, da experiência viva, para corroborar dados teóricos, ou seja, é um processo de investigação experimental de suposições teóricas (SALLES, 1992, p.33-4).

Da mesma forma, os Estudos Descritivos da Tradução não partem de pressupostos a

priori, mas de dados empíricos das traduções para remontar, através da análise dos textos

editados, às leis e constrições sofridas pelo tradutor, ao longo de seu processo tradutório. Devido, então, à natureza dessas duas metodologias, pareceu lógico aproximá-las, pela

primeira vez, aplicando-as ao estudo de manuscritos tradutórios. Segundo Serge Bourjea, a Crítica Genética

[...] possibilita, de fato, duas coisas importantes no campo da Tradução: 1) ela pode constituir uma nova tarefa, (impossível), quanto à tradução dos manuscritos

literários [...]; 2) a Genética deve permitir, através de um melhor conhecimento do

processo da inventividade literária, um trabalho de leitura/ re-escritura mais fino

ou mais adequado para o tradutor da poesia (O negrito é do autor) (1998, p. 48).

De fato, nesta pesquisa quer se mostrar que um estudo genético pode, então, não somente desvelar, até certo ponto, o processo de criação do artista, mas também, o processo de tradução de uma obra. Quanto ao trabalho do tradutor, este é um trabalho consciente, pois através das escolhas que faz na tradução, deixa como rastro aquilo que a Crítica Genética procura, que é mostrar um pensamento em evolução, presente também no caso de um processo tradutório.

Quais são, de fato, as etapas que levam um tradutor a escolher ou considerar como aceitável determinada versão de um texto? Quais as justificativas dessas escolhas e qual o material de referência que o tradutor usa? Estas são perguntas às quais a Crítica Genética pode responder com sua metodologia. Neste caso, também, o objeto de estudo da Crítica Genética é o caminho percorrido pelo tradutor para chegar à obra entregue ao público. Estuda-se o processo criativo a partir das marcas deixadas pelo tradutor.

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