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Capítulo 4: Autonomia ou rigidez orçamentária municipal?

5. Conclusão final da Dissertação

Em países regidos pelo Estado democrático de direito, a concretização dos direitos fundamentais é assegurada no orçamento público daquela nação. Porém, nossa história nos mostra que os direitos universais foram submetidos a uma sucessão de arranjos fiscais com objetivos conflitantes com o texto constitucional de 1988, que contribuíram para tencionar as relações federativas e ampliar o descontrole da gestão das políticas públicas, com reflexo no desequilíbrio social.

No período estudado, 1995 a 2010, as estratégias empreendidas, mais que tudo, contribuíram para reduzir a participação das transferências constitucionais no orçamento corrente dos governos capitais, alterou a distribuição vertical das receitas a favor do governo central, e permitiu a ausência dos governos superiores nas competências comuns aos três entes federativos.

O Estado brasileiro a partir de uma nova agenda fiscal em curso desde o ano 90, suprimiu parte da autonomia da arrecadação das 26 capitais, e comprometeu a capacidade de planejamento local, em detrimento das inúmeras regras fiscais impostas. Interferências que ocorreram dentro da mais pura legalidade.

Diante disso, os centros urbanos mais populosos, sede de regiões metropolitanas, endividados e polos provedores dos principais programas nacionais, sofreram com os efeitos desse modelo. E planejar ações locais, necessárias para assegurar uma infraestrutura mínima, que somado aos efeitos da desindustrialização e da guerra fiscal, e, sobretudo, das imposições fiscais e contrapartidas exigidas do orçamento próprio, ficaram impedidos de estabelecer um diálogo federativo.

Sob o âmbito das exigências da LRF, por exemplo, os limites estabelecidos para a realização de despesas com pessoal forçaram muitos governos a alterarem, em boa medida, a forma de efetivarem suas ações constitucionais e as ações municipalizadas, que se deram, minimamente, através das disputas por recursos discricionários.

Mecanismo que desencadeou certa fragilidade e incertezas para o ciclo orçamentário municipal, o que, por um lado, aumentou as responsabilidades municipais no âmbito das políticas descentralizadas e, por outro, os valores financeiros recebidos dos governos superiores eram defasados e ou insuficientes para os acordos celebrados.

Circunstância que de alguma forma, criou o cenário perfeito para que se promovessem relações federativas obscuras, confusas, abrindo espaços para

subestimarem a capacidade legítima da agenda da constituição cidadã, e os déficits sociais e urbanos se agravaram.

A prerrogativa da experiência internacional sobre o processo da descentralização fiscal era de que governos mais autônomos, necessariamente, deveriam honrar as responsabilidades exclusivas competentes e construir uma relação fiscal sustentada pelo princípio da solidariedade, cooperação financeira, e técnica entre as esferas de poder, a partir de mecanismos justos e harmônicos para distribuir recursos.

Porém, nossa experiencia nos mostra que o orçamento municipal foi submetido aos objetivos e desejos das esferas de governos superiores, exigindo a participação de contrapartidas financiadas com os recursos próprios municipais. A partir da imposição de um conjunto de instruções normativas e portarias que regulamentaram as transferências discricionárias, que interferiram na autonomia municipal e subtraíram parte substancial do orçamento próprios de livre alocação, fundamental no financiamento do desenvolvimento urbano.

Nesse sentido, as ações locais foram sendo abatidas da estrutura orçamentária, enquanto as ações que deveriam ser sustentadas pelo financiamento tripartite ganharam espaços orçamentários crescentes.

A redução dos recursos livres na estrutura orçamentária municipal ocorreu sem nenhum diálogo federativo democrático e articulado com a sociedade, e, na maioria das vezes, desprovidos de mecanismos e instrumentos de controle que prejudicaram a atuação dos grandes centros, como principais polos provedores das políticas públicas nacionais.

Sabemos que outros instrumentos fiscais limitaram o financiamento da agenda local. As imposições do Programa de Reestruturação e de Ajuste Fiscal, promoveram o reescalonamento das dívidas municipal, que inseriu os orçamentos dos centros urbanos com mais autonomia para arrecadar, em um modelo de restrição orçamentária, restando pouco espaço para realizar ações de programas de responsabilidade exclusiva municipal.

Conforme abordado no capítulo 3, e sob o argumento de que os municípios não se encontravam em condições de resgatar as suas dívidas no prazo determinado, o governo federal impôs medidas87 aos municípios endividados, nos mesmos moldes das negociações com os estados, com o objetivo de garantir um fluxo de pagamentos futuros do estoque de dívidas passadas.

Ou seja, a partir da renegociação da dívida pública no final da década de 90, a federação brasileira não encontrou um caminho que permitisse pensar na redistribuição de recursos necessários para desenvolver os espaços urbanos e as competências constitucionais de cada esfera de governo.

Lembrando que, o pagamento das parcelas do acordo de renegociação deveria ocorrer não apenas por meio da tributação, mas por meio da limitação dos gastos. Constrangimentos fiscais que causaram uma eclosão de dificuldades econômicas, com pressões sociais que culminaram na mais grave crise social e fiscal do País.

Nossa experiência tem nos mostrado que o Estado tem persistido em um único objetivo, a redução das despesas primárias para se apurar um superávit primário88. Fica a sensação de que o Estado assumiu o compromisso apenas com o mercado financeiro especulativo, em detrimento das garantias sociais asseguradas no texto constitucional e em função da perda do controle da gestão das políticas públicas.

As características da nossa descentralização e do ajuste fiscal, a meu juízo, comprometeram a autonomia municipal, pois a cada dia as demandas urbanas foram preteridas na estrutura orçamentária.

Desde então, com pactuação confusa, a federação brasileira passou a conviver com disputas de recursos; com a falta de regulamentação de setores e omissão de responsabilidades nas ações metropolitanas; com atrasos nos repasses financeiros necessários para assegurar as ações de programas nacionais descentralizados, além das inúmeras restrições fiscais. Os desequilíbrios ocasionados são incalculáveis, e comprometeram os direitos à cidadania.

Dessa forma, torna-se essencial pensar a gestão local, a partir de uma combinação de esforços entre as três esferas, com políticas redistributivas e com estratégias não excludentes, que acolham as necessidades locais. E, acima de tudo, a política nacional precisa assegurar condições para a implantação e o funcionamento dos programas que incorporem as necessidades metropolitanas das cidades mais populosas do País. Não há dúvida de que a federação precisa de um ajuste urgente nas relações federativas.

Acredito que o Estado precisa de fato selar os compromissos constitucionais, esclarecer e delimitar as confusas tarefas, a partir de regulamentações cristalinas a cada esfera de governo, que nos permitissem fiscalizar, acompanhar e cobrar a realização de

88 A esse respeito, ver Ministério da Fazenda (2007), Anexo de Metas Fiscais e Relatório Resumido da

Execução Orçamentária aplicada à União, aos Estados, Distrito Federal e Municípios. 7ª edição atualizada.

cada direito e dever; e, retomar o debate sobre as competências exclusivas definidas no texto constitucional e do papel da região metropolitana no enfrentamento das complexidades urbanísticas dos grandes centros urbanos do País.

Além disso, existe a necessidade de revermos as metodologias da distribuição dos recursos que tem gerado muitas assimetrias nos valores per capitas entre os municípios brasileiros, com prejuízos para o contingente populacional residente nas capitais.

Os encaminhamentos dessas questões, certamente, poderiam ajudar a desfazer a rigidez orçamentária vigente, permitindo um equacionamento federativo integrado e cooperativo, que nos permitissem enfrentar e garantir o acesso à universalidade dos direitos aos mais de um quarto da população brasileira que ali residem.

A partir dessas questões estudadas, posso concluir que a atual crise federativa tem identidade clara, e o hiato estabelecido entre necessidade e capacidade de investimento são perceptíveis, assim como o próprio formato das políticas públicas, contribuíram para a degradação e a precarização dos serviços, sem nenhum controle, fiscalização e gestão quanto à qualidade da política pública.

Parece-me urgente a necessidade de uma repactuação que acolha as questões urbanas e devolva a capacidade de investimentos às capitais que, atualmente, dispõem de um volume de investimento por habitantes inferior à média do País, e dos municípios menos populosos e mais dependentes de transferências intergovernamentais.

As informações estudadas nos ofereceram pistas que asseguram a necessidade de realizarmos uma repactuação federativa. Apesar da importância da arrecadação tributária própria, as metrópoles brasileiras permaneceram sujeitas às limitações fiscais que comprometeram a realização de suas responsabilidades, determinantes na melhoria da qualidade de vida de milhões de pessoas residentes nessas cidades.

Precisamos legitimar o conceito de autonomia na arrecadação própria e o aumento da descentralização fiscal, para que os governos locais possam exercer sua autonomia federativa e, por sua vez, orçamentária. Cumpre lembrar que analisamos os municípios com as maiores capacidades de gerar receita própria, acima de média nacional e, que, portanto, deveriam, naturalmente, ter autonomia financeira para assegurar as necessidades dos investimentos locais, mas, de fato, isso pouco refletiu na performance dos programas orçamentários e nas melhorias na provisão de bens e serviços oferecidos à população residente nas capitais.

O desafio consiste em “como tratar dos interesses das partes, preservando os valores do conjunto” (AFFONSO, 2001). As escassas políticas públicas locais voltadas

para os interesses coletivos, somadas às políticas monetária e fiscal restritiva, não conseguiram oferecer de forma adequada os serviços sociais e urbanos essenciais para grande parte da população que os grandes centros urbanos reúnem.

Precisamos de uma combinação de esforços entre as três esferas, com políticas redistributivas e de estratégias não excludentes, que representem as necessidades locais e de cada região, e assegurem um fortalecimento institucional do município no quadro federativo do País.

Para tanto, é preciso não apenas de recursos financeiros e orçamentários, mas de uma “coordenação federativa” por parte dos governos federal e estadual, que permitam a esfera municipal assumir seu papel de provedor das suas responsabilidades constitucionais.

Podemos dizer que o atual estágio do federalismo fiscal brasileiro manteve o poder e o controle político e operacional do manejo dos recursos financeiros de forma centralizada, bem como criou empecilhos para viabilizar qualquer ação que pudesse se traduzir em redução do poder central. Enquanto isso, a situação atual sobrecarrega as capitais de atribuições, e nos coloca em uma crise de funções, onde todos na federação brigam e ninguém parece ter razão.

Embora se reconheça que a descentralização fiscal tem sido um processo aclamado e defendido, desde o final dos anos 1970, de forma quase unânime pelas três esferas federativas, legislativos, oposição e sociedade, as mudanças promovidas foram insuficientes para fortalecer, de fato, a autonomia federativa e orçamentária dos governos municipais, mesmo diante do amplo processo da descentralização fiscal.

As decisões federativas realizadas de forma centralizada reproduziram inúmeras incertezas e sobreposições de papéis que não contribuíram em nada para garantir a autonomia federativa de cada esfera e muito menos assegurou a realização e ou universalidade dos direitos a todos os brasileiros. Perguntas como “Quem é que faz o que na federação? ”; “Com quais recursos? ”; “E para quem? ” permanecem sem respostas, no atual desenho federativo.

Enquanto isso, o modelo mostra-se impotente para edificar uma sociedade em outras bases, comprometida com princípios do federalismo cooperativo, acompanhados dos compromissos sociais democráticos.

Os propósitos da agenda do Estado brasileiro, comprometidos com as exigências da nova disciplina fiscal, nos permitiram uma experiência com poucas oportunidades para superarmos o atraso econômico e social, intra e enter regiões do País. E, ainda

permitiu que as economias urbanas mais populosas e economicamente mais consolidadas do País, permanecessem mergulhadas em sua fragilidade fiscal.

Não há dúvidas que o momento exige uma considerável revisão da pactuação das políticas descentralizadas, bem como uma reforma fiscal. Acredito que o custo e as restrições do ajuste fiscal para os centros urbanos mais endividados do País, são acontecimentos que configuraram a deformação do pacto federativo.

Diante disso, a maioria das capitais permanece inserida em uma encruzilhada: enfrentar o dilema entre o aumento da participação dos recursos próprios na estrutura orçamentária e, em paralelo, a multiplicidade de restrições fiscais e as regulamentações que cercam a municipalização das políticas públicas, causando severa rigidez orçamentária, mesmo diante do esforço realizado para o aumento da arrecadação dos recursos próprios.

Os resultados têm um custo social e econômico nefasto para todas as regiões do País. Um cenário da mais completa ausência e abandono de muitas políticas públicas de investimento urbano. E, claro, a fatura do descaso é remetida para a população mais vulnerável e desassistida pelo Estado.

Dessa forma, sem cooperação e integração federativa, todos os dias, milhares de demandas batem à porta municipal. Entretanto, as ações realizadas têm sido insuficientes. Torna-se inadiável uma discussão ampla e profunda sobre a necessidade de promovermos uma reforma fiscal que seja capaz de discutir o papel do Estado brasileiro nas políticas públicas.

As 26 capitais, com autonomia orçamentária restringida, têm sido forçadas a colocarem em segundo plano uma parte das suas atribuições constitucionais, sem que isso traga à baila a urgência do revigoramento do pacto federativo.

Estas observações nos indicam a urgência com que é preciso discutir o processo da descentralização fiscal do País, que explicitamente padece de padrões mínimos na prestação de determinados serviços. Na medida em que o nível mínimo de gasto seja definido, os governos superiores deveriam ser forçados a buscarem alguma forma de ajustamento, como por exemplo, transferir mais recursos e auxiliá-los tecnicamente no tratamento dos setores descentralizados.

Acredito que é necessário repensar a pactuação federativa vigente, criar de fato instrumentos que possam fazer a gestão das políticas públicas, e retomar o debate que dê conta de discutir a partilha dos recursos, e a divisão de funções mais clara de cada esfera de governo na prestação dos serviços públicos, sem sobreposição de tarefas, sem

omissão e, acima de tudo, com ações integradas e cooperativas necessárias, com o cuidado de legitimar o papel das agências metropolitanas. Só então, será possível enfrentar, em bases firmes, os principais problemas federativos, que hoje, parecem ter ficado no discurso e na aprovação formatada no texto constitucional de 1988.