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Capítulo 3: Os percalços dos 1990: ajuste fiscal combinado com descompromisso social

3.3 A construção da nova Ordem Fiscal: equilíbrio ou observa-se o aprofundamento dos

3.3.1 A crise econômica e o seu impacto nas finanças públicas municipais

Posteriormente à obsessão fiscal, assistimos nas duas últimas décadas um período de baixo crescimento, alinhado com uma agenda nacional completamente caótica e comprometida apenas com os interesses da liberalização econômica.

Permanecemos mergulhados em um desequilíbrio fiscal crescente, cristalizado na fragilidade financeira e fiscal dos governos subnacionais. Desequilíbrios que adoeceram as relações federativas. Como bem apontou Fiori (1995:30):

(...) o que parece ter maior importância para a discussão federalista são as novas regras e tendências que vêm manifestando-se no plano de competição intercapitalista, no plano de gestão das políticas macroeconômicas nacionais, e, finalmente no plano da polarização social que vem se agigantando-se à sombra da globalização”.

A mais profunda crise federativa do País, políticas predominantes do salve-se quem puder, fez ressurgir conflitos horizontais e verticais. Os compromissos decorrentes do processo da nova ordem econômica, causou prejuízos para as relações intergovernamentais, e impossibilitou que os governos subnacionais exercessem de fato sua autonomia federativa para planejar e atender às demandas que permitissem uma coesão social, conforme estabelecido no texto constitucional de 1988.

A falta de cooperação entre os entes federativos na oferta dos bens e serviços públicos resultou em prejuízos enormes para autonomia do planejamento e execução do orçamento público nas 26 capitais.

A necessidade de financiamento para investimentos per capita permaneceu superior à capacidade de financiamento, e o direito à cidadania58 permaneceu assegurado apenas no texto constitucional.

Em 1988 partíamos de um cenário que reunia condições estratégicas para o enfrentamento das desigualdades socioeconômicas do País, por meio da garantia da universalização da proteção social. Entretanto, a partir do receituário de austeridade fiscal, nos tornamos uma nação caracterizada pela recessão econômica e desemprego, aumento da miséria e da desigualdade social.

Ao mesmo tempo, em pleno processo de descentralização fiscal, esse cenário de crise econômica e social gerava externalidades negativas nas relações federativas.

Ou seja, praticamente 85% das capitais estudadas, que reuniam mais de 93,52% da população da amostra, sofreram com o desemprego dos anos 90. Os dados do censo demográfico do IBGE, anos 1991 e 2000, mostram que as pessoas ocupadas urbanas59

versus população economicamente ativa60 (PEA), em apenas 4 capitais essa relação teve saldo positivo (tabela 8).

58Para Maria de Lourdes Manzine Covre (1995), ser cidadão significa ter direitos e deveres e ser soberano. Cidadania significa que homens são iguais, ainda que perante a lei, sem discriminação de raça, credo ou cor. E ainda: a todos cabem o domínio sobre seu corpo e sua vida, o acesso a um salário condizente para promover a própria vida, o direito à educação, à saúde, à habilitação, ao lazer. E mais: é direito de todos poder expressar-se livremente, militar em partidos políticos e sindicatos, fomentar movimentos sociais, lutar por seus valores. Enfim, o direito de ter uma vida digna de ser homem. 59 Para o IBGE, pessoa ocupada é quem trabalhou nos últimos 12 meses anteriores à data de referência

do Censo, ou parte deles. A pessoa que não trabalhou nos últimos 12 meses anteriores à data de referência do Censo, mas que, nos últimos 2 meses, tomou alguma providência para encontrar trabalho, foi considerada como desocupada.

60 PEA são pessoas que, durante todos os 12 meses anteriores à data do Censo do IBGE, exerceram

trabalho remunerado, em dinheiro e/ou produtos ou mercadorias, inclusive as licenciadas, com remuneração, por doença, com bolsas de estudo etc. e as sem remuneração que trabalharam habitualmente 15 horas ou mais por semana em uma atividade econômica, ajudando a pessoa com quem residiam ou a instituição de caridade, beneficente ou de cooperativismo ou, ainda, como aprendizes, estagiárias etc. Também foram consideradas nessa condição as pessoas de 10 anos ou mais de idade que não trabalharam

Cabe observar que a queda da população ocupada na maioria das capitais, contribuiu para piorar os índices de violência, da informalidade, da inadimplência tributária, enfim, questões que nos ajudam a explicar a piora do desequilíbrio fiscal.

As informações da tabela foram classificadas em ordem decrescente pela variação em percentual da relação entre população ocupada urbana versus população economicamente ativa.

Tabela 8 -População Ocupada Urbana versus PEA: 2000/1991

Ou seja, enquanto o desemprego se alastrava, a pressão social crescia nos centros urbanos mais populosos, e os compromissos da democracia com a cidadania, de certa forma, permaneciam limitados às políticas fiscais restritivas.

nos 12 meses anteriores à data de referência do Censo, mas que, nos últimos dois meses, tomaram alguma providência para encontrar trabalho.

26 Capitais População Ocupada

Urbana X PEA 1991 População Ocupada Urbana X PEA 2000 Variação 2000/1991 São Luís 32,16% 75,68% 43,52% Boa Vista 67,52% 83,81% 16,29% Belém 64,41% 80,54% 16,12% Palmas 77,63% 81,90% 4,27% Macapá 79,97% 78,46% -1,50% Rio Branco 82,22% 77,40% -4,82% Florianópolis 90,29% 84,94% -5,35% Goiânia 94,55% 87,51% -7,04% Porto Velho 77,19% 70,00% -7,19% Maceió 84,12% 76,46% -7,66% Teresina 87,68% 79,31% -8,38% Rio de Janeiro 92,80% 84,13% -8,67% Curitiba 94,73% 85,92% -8,81% Cuiabá 92,57% 82,69% -9,88% Natal 92,22% 81,92% -10,30% Fortaleza 93,70% 83,08% -10,63% João Pessoa 93,20% 82,09% -11,12% Campo Grande 95,30% 84,10% -11,20% Recife 89,88% 78,60% -11,28% Vitória 95,19% 83,73% -11,46% Porto Alegre 94,63% 83,14% -11,49% Belo Horizonte 94,80% 82,97% -11,82% Manaus 87,65% 75,72% -11,94% Aracaju 91,77% 78,94% -12,84% Salvador 88,78% 75,20% -13,57% São Paulo 91,57% 77,80% -13,77%

E, mais grave, as imposições fiscais adotadas contribuiram para piorar do perfil da dívida pública interna, ocasionando uma deterioração das finanças públicas e nas relações federativas. A dívida interna líquida do governo federal com relação ao PIB em 1993 era da ordem de 7%, uma situação favorável para o governo brasileiro.

A partir do plano Real, com altas taxa de juros e âncora cambial, o aumento da dívida mobiliária interna passou a ser crescente, com desdobramentos deletérios para a estrutura produtiva da economia brasileira e para as relações federativas. Ou seja, o governo federal priorizava cada vez mais, a participação das despesas financeiras no orçamento fiscal.

A trajetória do estoque de endividamento interno líquido, conforme mostra os dados da tabela 09, nos permitiu identificar que existe um descontrole de endividamento interno brasileiro, responsável pela deterioração das finanças públicas do País.

Tabela 9 - Evolução Dívida Interna Líquida do Setor Público em relação ao PIB:1995 a 2010 – em %

Evolução que, segundo Oliveira (2012), pode ser sentida nas despesas correntes. No ano de 1994, as despesas correntes representaram 66 pontos percentuais das despesas

Ano Dívida Liquida do Setor Público (*) em R$ (milhões) (A) PIB - preços de mercado ref. 2010 em R$ (milhões) (B) (A/B) em % 1995 208.460,27 705.991,5529 30% 1996 269.193,43 854.763,6078 31% 1997 308.426,25 952.089,1961 32% 1998 385.869,63 1.002.351,0192 38% 1999 516.578,67 1.087.710,4561 47% 2000 563.163,14 1.199.092,0709 47% 2001 677.430,83 1.315.755,4678 51% 2002 892.291,84 1.488.787,2552 60% 2003 932.137,53 1.717.950,3964 54% 2004 982.508,81 1.957.751,2130 50% 2005 1.040.046,12 2.170.584,5034 48% 2006 1.120.052,63 2.409.449,9221 46% 2007 1.211.762,25 2.720.262,9378 45% 2008 1.168.238,34 3.109.803,0890 38% 2009 1.362.710,72 3.333.039,3554 41% 2010 1.475.820,18 3.885.847,0000 38% Fonte: IPEADATA; Banco Central do Brasil; e IBGE. (*) Dívida líquida do setor público: Compreende governo federal e Banco Central, governos estaduais, governos municipais e empresas estatais (federais, estaduais e municipais).

totais. Em 2007, ultrapassaram 80 pontos percentuais. O aumento se traduz pelo custo dos juros da dívida pública, um dos principais pilares de sustentação do Plano Real. No orçamento federal, as despesas com os juros e encargos, somadas à amortização do principal da dívida pública fundada, ultrapassam mais 50 pontos percentuais do orçamento total.

Considerando o aumento do passivo, mediante o estoque de endividamento interno a partir da emissão extra orçamentária de novos papeis, usados para a rolagem do principal da dívida interna, os denominados títulos do Tesouro, somos remetidos a uma das piores condições das taxas de juros e do grau de desigualdade social.

O mecanismo tem favorecido uma minoria privilegiada, os detentores da riqueza, pois a elite financeira ganhou e permanece auferindo lucros extraordinários a partir desse modelo de financiamento do setor público, que seguramente tem contribuído para acentuar a concentração de renda e a riqueza, eampliar a tensão social. Em um mundo globalizado, enterromper essa engenharia fiscal não será tarefa fácil.

Dessa forma, esse programa tem comprometido a agenda nacional e o futuro das próximas gerações, sem criar oportunidades para que as relações federativas possam ser revigoradas. Enquanto isso, o contigenciamento das despesas decorrentes do processo da descentralização fiscal e ou municipalização tem sido justificada pela necessidade de equilibar as finanças públicas, e os direitos dos cidadão aguardam na fila, sem saber quando – e se – será realizado, algum dia, um profundo e amplo contrato de renegociação que possa de fato efetivar a cidadania dos brasileiros.

Isso nos permite dizer que o custo do endividamento interno tem sido compartilhado com todos os cidadãos, pois estamos pactuados com os compromissos que atendem apenas aos interesses do capital, a partir da oferta das generosas de taxa de juros. Nos acostumamos a conviver com possibilidades e precarização dos bens e serviços públicos.

Fomos submetidos a diversas reformas, sem nenhuma discussão com a sociedade. A bem da verdade, o projeto minimalista liberal não permitiu que as demandas sociais e urbanas fossem legitimadas, enquanto as despesas financeiras exercem a soberania na estrutura orçamentária.

De forma recorrente construímos e ofertamos políticas de educação que pouco conseguem desenvolver e estimular o conhecimento dos nossos professores e crianças; temos uma assistência social com pouca regulamentação e acesso; as políticas de saúde

e saneamento, gestão ambiental, transporte e habitação permanecem com recursos insuficientes perante à agenda nacional61.

A realidade hoje é que temos uma federação com atribuições governamentais descentralizadas e desacompanhadas de recursos financeiros e orçamentários capazes de garantir a cidadania; e, ao mesmo tempo, um governo central que legalizou a apuração das metas fiscais em detrimento da universalização dos direitos62.

3.3.2 O desfecho: Crise Federativa

Por meio de um olhar federativo atento, os acontecimentos dos anos 90 não nos revelou uma oportunidade para garantir a cidadania, nem tampouco revigorar o pacto federativo e revertermos as patologias do passado.

Os encaminhamentos de imediato favoreceram a ascendente disputa de recursos financeiros e orçamentários entre os governos subnacionais, em um ambiente de verdadeiro leilão de vantagens fiscais oferecidas, e eliminou qualquer perspectiva de aperfeiçoamento nas relações do pacto federativo, mediante o favorecimento de um jogo de disputas verticais e horizontais entre as unidades federativas.

Guerreando entre si, muitas unidades federativas passaram a renunciar receitas ou reduzir as alíquotas dos seus tributos para atrair o capital. Um exemplo que trouxe prejuízos significativos para toda a federação, e que comprometeu o volume arrecadado e a partilha dos recursos enviados para os grandes centros urbanos, que perderam participação no índice, e no volume dos recursos que deveriam compor o orçamento das políticas universais descentralizadas.

Ainda hoje, os grandes centros urbanos são um dos maiores responsáveis pela geração do valor adicionado. Entretanto, a guerra fiscal reduziu a geração de valor adicionado, variável fundamental da metodologia que apura o índice que distribuiu os recursos da cota parte do ICMS.

Rever a importância da variável do valor adicionado na formula de apuração, e considerar outras variáveis, como a importância da arrecadação do ICMS no município, torna se fundamental para os municípios capitais, que sofreram perdas expressivas a partir da desindustrialização e guerra fiscal.

61A esse respeito, ver Anexo 2. 62 A esse respeito ver Pinto (2017).

Lembrando que o princípio da partilha dos recursos do ICMS não teve o caráter distributivo. Sendo assim, essa correção torna-se necessária na atual economia de serviços, pois permitirá uma distribuição mais equilibrada dos recursos da Cota parte do ICMS, fundamentais para compensar e assegurar o desenvolvimento da econômica local, e reduzir as disparidades de valor per capita entre as cidades, permitindo que os municípios sede de regiões metropolitanas e polos provedores de serviços tenham condições de exercer suas responsabilidades, e de assegurar a infraestrutura exigida pela própria dinâmica econômica local.

Atualmente, com menos recursos disponíveis, as capitais estão inseridas em um ambiente de aberta regressão social. A carência de bens e serviços está espalhada por todas as áreas urbanas, e qualquer tentativa de resolver os problemas sociais por meio de programas específicos tornou-se um esforço inválido.

As medidas fiscais andaram na contramão da agenda consagrada pela Constituição Cidadã, das lutas políticas e sociais travadas desde o final dos anos 1970. E a extensa agenda de reformas democráticas, comprometidas com o desenvolvimento social, e que tinham como condições principais a retomada do crescimento econômico e do emprego, melhoria nas condições de trabalho, avanços na previdência social, políticas de saúde, de educação, de abastecimento popular, reforma agrária, políticas urbanas para habitação popular, saneamento básico e transporte coletivo entre outras, foram suprimidas da agenda nacional, por meio de contingenciamentos de recursos orçamentários e omissão federativa.

Acredito que esse capítulo nos ajudou, em parte, a sustentar a principal hipótese desta pesquisa: que os orçamentos fiscais das 26 capitais se deparam com uma estrutura orçamentária rígida e com pouca autonomia federativa, mediante as imposições do ajuste fiscal e da ausência dos governos central e estadual na prestação das suas responsabilidades, a partir do movimento de reenquadramento dos compromissos sob o âmbito da ordem econômica liberal.

Passados quase 30 anos da promulgação do texto constitucional, a única reposta que temos é que a agenda fiscal dos anos 1990, com o discurso de que seria temporária, assumiu caráter permanente, e os efeitos indesejáveis permaneceram encrustados na economia nacional, com baixo crescimento econômico, aumento da dívida pública, altas taxas de juros e mínimos resultados sociais. E, o pressuposto de que a universalidade aumentaria a permeabilidade às demandas sociais e de investimentos em infraestrutura não alcançou os anseios da Nova República.

Capítulo 4: Autonomia ou rigidez orçamentária municipal?