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3. A caverna

3.4. Conclusão sobre A caverna

A caverna faz a denúncia de um tipo de sociedade anti-utópica, pelo seu caráter

desumanizador. Uma sociedade utópica tenderá a um sentido humanista, que falha na sociedade atual, pautada por valores de conforto e de consumismo que se sobrepõem à própria pessoa. O Centro, em A caverna, é o protótipo de uma sociedade consumista, pós-moderna, que Lipovetsky (2007) carateriza como típica nas últimas décadas do século XX. De acordo com este autor, o hiperconsumismo está associado ao prazer imediato e torna-se, atualmente, muito difícil estabelecer a diferença entre o necessário e o supérfluo, pelo que as pessoas priorizam o objeto em detrimento das relações pessoais, em suma, dos valores éticos e da dignidade humana.

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O que Saramago parece decidido a mostrar é que há uma necessidade premente de mudar o sentido das relações humanas, fazendo com que o homem olhe para si e para quem o rodeia e relegue para segundo plano o prazer imediato conferido pelos bens materiais. Humanismo e ética deverão prevalecer, mas uma ética verdadeira e não a deturpada de que se valem no Centro para justificar comportamentos e atitudes. Basta lembrar o telefonema que Cipriano recebeu do subchefe do departamento de compras, informando que o Centro iria pagar as estatuetas que ali tinham sido entregues para o inquérito, isto apesar do prejuízo que tal negócio deu ao Centro. “Fique desde já sabendo que ainda quando um pagamento represente um prejuízo de mais de cem por cento, como aconteceu neste caso, o Centro liquida sempre as suas contas, é uma questão de ética” (AC: 322). Cipriano, quando depois fala do assunto com Marta, não sendo dotado de grandes estudos, percebe que não há qualquer ética naquele procedimento, mas sim uma atitude que visa, de alguma forma, tentar iludir Cipriano e deixar limpa a imagem do Centro, quando sabemos a falta de ética que o mesmo Centro teve anteriormente para com o oleiro, começando pelo contrato de exclusividade que com ele celebrou e terminando na recusa em aceitar mais da sua mercadoria. Cipriano sabe o que é a ética, conforme se depreende da resposta que dá ao subchefe: “Eu poderia […] invocar também os meus próprios escrúpulos éticos para me recusar a receber por um trabalho que as pessoas se recusaram a comprar, mas o dinheiro faz-me arranjo” (AC: 323).

Efetivamente, sob uma aparente capa de respeito pelos direitos humanos, a ideologia do Centro contraria os mais elementares princípios, sejam éticos, sejam morais. A liberdade é, naquele espaço, completamente controlada, com todo o tipo de mecanismos de vigilância sobre as pessoas (lembremos que quem ali circula sem ser para consumir é observado de forma particular, pois contraria os princípios do Centro), e a política de obediência às normas é severamente imposta, como se o Centro representasse o poder máximo na organização social. Foucault (1987) apresenta uma explicação sobre um sistema de segurança denominado panótico, que em muito se aplica ao tipo de controlo sobre as

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pessoas que é exercido no Centro e que, por extensão, se aplica à generalidade dos cidadãos numa sociedade moderna atual, ocidentalizada e capitalista.

Um indivíduo qualquer, quase tomado ao acaso, pode fazer funcionar a máquina […]. Do mesmo modo que é indiferente o motivo que o anima: a curiosidade de um indiscreto, a malícia de uma criança, o apetite de saber de um filósofo que quer percorrer esse museu da natureza humana, ou a maldade daqueles que têm prazer em espionar e em punir. Quanto mais numerosos esses observadores anónimos e passageiros, tanto mais aumentam para o prisioneiro o risco de ser surpreendido e a consciência inquieta de ser observado. O Panótico é uma máquina maravilhosa que, a partir dos desejos mais diversos, fabrica efeitos homogéneos de poder.

(Foucault, 1987: 178)

Sendo o panótico um sistema de segurança usado fundamentalmente em prisões, não quisemos deixar de o associar ao Centro de A caverna, na medida em que Marçal teve o cuidado de explicar ao sogro quais os procedimentos que este deveria seguir nas suas deambulações por aquele espaço, pois estava a ser observado de todos os lados, mesmo que disso não se apercebesse.

Esta forma de organização do Centro contribui para a criação de um espaço fechado sobre si mesmo, como se não existisse mundo exterior e as pessoas fossem obrigadas a viver ali, debaixo de uma artificialidade que as levava a considerarem-se felizes.

A organização do Centro fora concebida e montada segundo um modelo de estrita compartimentação das diversas atividades e funções, as quais, embora não fossem nem pudessem ser completamente estanques, só por canais únicos, não raro difíceis de destrinçar e identificar, podiam comunicar entre si. É claro que um simples guarda de segunda classe, tanto pela natureza específica do seu cargo como pelo seu diminuto valimento no quadro pessoal subalterno, uma coisa derivada da outra por inapelável consequência, não está apetrechado, geralmente falando, de discernimento e percetibilidade suficientes para captar subtilezas e matizes desse caráter, na verdade quase voláteis.

(AC: 39-40)

Debaixo desta organização favorável ao Centro e que não é questionada por quem dele usufrui (veja-se que, no excerto, é o narrador que tece o juízo sobre a incapacidade de Marçal Gacho questionar as regras a que está sujeito), as pessoas vivem sob uma aparente felicidade, nunca se interrogando acerca dos mecanismos de controlo que sobre elas são exercidos e que acabam por levar à

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sua aparente satisfação. É quem vem de fora do Centro, com outro olhar e outra forma de estar na vida, como é o caso de Cipriano e da filha, que se apercebe do ridículo que é a vida no interior daquele espaço e da forma como os residentes perderam a lucidez relativamente ao real. Quando, para se ambientarem ao Centro, as personagens vão conhecer alguns dos espaços de diversão ali existentes, como a praia artificial ou a Sala das Sensações, concluem forçosamente que tudo aquilo “é um bocado triste” (AC: 314).

Depois voltamos para trás e logo começou a cair neve, ao princípio uns flocos dispersos que pareciam fiapos de algodão, depois mais e mais grossos, caíam na nossa frente como uma cortina que mal deixava ver os colegas, alguns continuavam com os guarda-chuvas abertos […], finalmente chegamos ao vestiário e ali havia um sol que era um resplendor, Um sol no vestiário, duvidou Marçal, Messa altura já não era vestiário, mas assim como uma campina, E essas foram as sensações naturais, perguntou Marta, Sim, Não é nada que não se veja todos os dias lá fora, Esse foi precisamente o meu comentário quando estávamos a devolver o material, mas teria sido melhor deixar-me ficar calado, Porquê, Um dos veteranos olhou para mim com desdém e disse Tenho pena de si, nunca poderá compreender.

(AC: 313-314)

É assim que acreditamos que Saramago cumpre, com mais este romance A

caverna, a sua intenção de mostrar que há caminhos alternativos que podem

conduzir o homem a um maior bem-estar. Há outros espaços, de utopia (ou de concretização no amanhã, como ele prefere), que o intelectual, na linha de Said (2005), deve ajudar a traçar. O intelectual deve, pois, assumir a condição de testemunha, para, ao dar conta das situações, sugerir outras possibilidades, outras formas – outros espaços – de maior harmonia.

Testemunhar um estado lamentável de coisas quando não se está no poder não é, de jeito nenhum, uma atividade monótona e monocromática, envolve o que Foucault certa vez chamou de “erudição implacável”, rastrear fontes alternativas, exumar documentos enterrados, reviver histórias esquecidas (ou abandonadas).

(Said, 2005:17)

Nessa sua valorização do intelectual, Said releva a sua importância como “alguém que, ao considerar-se um membro pensante e preocupado de uma sociedade, se empenha em levantar questões morais no âmago de qualquer atividade” (Said, 2005: 86). Saramago, na pluralidade da sua obra, vai tocar em assuntos da mais

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diversa índole, precisamente com vista a essa mudança de paradigma social. A sua assunção como intelectual, na linha de Said, pode deduzir-se das suas próprias palavras, quando reflete sobre a sua atividade de escrita e o impacto que a mesma possa ter no mundo à sua volta.

Acrescentaríamos, como conclusão desta reflexão sobre o caminho da negatividade rumo à utopia em Saramago, uma reflexão de Abdala Júnior (2003):

José Saramago situa-se, assim, entre os escritores motivados pela utopia literária, onde a vontade de felicidade não repousa sobre o sacrifício da individualidade, em função de interesses mais universais. Pela imaginação procura construir passarolas, acreditando num mundo mais humano a partir da perda de amarras individuais, num mundo libertário, que ultrapasse os labirintos que a sociedade construiu em função (e por ordem) das forças sociais hegemónicas.

(Abdala Júnior, 2003: 28)

Num texto que intitulou “Balanço”, o próprio Saramago questiona-se sobre o valor do seu trabalho específico num blogue, mas que pode ser estendido a todo o seu trabalho de escritor e de intelectual.

Valeu a pena? Valeram a pena estes comentários, estas opiniões, estas críticas? Ficou o mundo melhor que antes? E eu, como fiquei? Isso esperava? Satisfeito com o trabalho? Responder «sim» a todas estas perguntas, ou mesmo a só algumas delas, seria a demonstração clara de uma cegueira mental sem desculpa. E responder com um «não» sem exceções, que poderia ser? Excesso de modéstia? Resignação? Ou apenas a consciência de que qualquer obra humana não passa de uma pálida sombra de outra obra sonhada?

(Saramago, 2009: 153)

Estas questões, aparentemente retóricas, encontram em si mesmas a resposta. O escritor é um insatisfeito, que não se pode demitir da sua função. Em Saramago, grandes são a inteligência, a lucidez e a preocupação na construção de um espaço mais equilibrado socialmente e, por consequência, mais humano, que possa albergar todos os homens – poderá ser essa a outra obra sonhada que refere.

Fazendo uso das palavras de Roland Barthes (2007) sobre o papel da literatura que chama de realista, no sentido em que parte sempre do objeto do real, mas que é sobretudo irrealista, já que se projeta também sempre para além do real e,

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sensatamente, deseja o impossível, diríamos que esse papel, “essa função, talvez perversa, portanto feliz, tem um nome: é a utopia” (Barthes, 2007: 22). Assim se confirma, uma vez mais, o sentido utópico lançado a partir de um espaço real ficcionado em A caverna, espaço esse, idealista, para o qual o autor deseja que se caminhe.

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PARTE II

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Com base na ideia comummente aceite e que temos vindo a confirmar à luz da teoria literária, a literatura tem uma relação estreita com a realidade. Não pretendendo abordar aqui as diferentes conceções sobre esta relação, por ser outro o nosso propósito neste estudo, vamos apenas debruçar-nos sobre a visão de Antonio Candido (2000), que, na sua obra Literatura e Sociedade, afirma que a arte “produz sobre os indivíduos um efeito prático, modificando a sua conduta e conceção do mundo ou reforçando neles o sentimento dos valores sociais” (Candido, 2000: 19). Deste modo, os artistas – e, no caso concreto, o escritor - não se comportam como seres apáticos face aos problemas da sua época, vindo a obra de arte a assumir um caráter disciplinador, que passa pela construção de uma forma ou um modelo representativo da estrutura do mundo social. Acrescenta ainda o mesmo autor:

A criação literária corresponde a certas necessidades de representação do mundo, às vezes como preâmbulo a uma praxis socialmente condicionada. Mas isto só se torna possível graças a uma redução ao gratuito, ao teoricamente incondicionado, que dá ingresso ao mundo da ilusão e se transforma dialeticamente em algo empenhado, na medida em que suscita uma visão de mundo

(Candido, 2000: 49)

A literatura encontra, pois, o seu fundamento nesta necessidade de expressão da sociedade, de problematização do mundo real. Para Antonio Candido, as manifestações artísticas, entre as quais se encontra o romance (que, na literatura, é uma das formas privilegiada para esse fim), assumem a função de atuar sobre o mundo:

A arte, e portanto a literatura, é uma transposição do real para o ilusório por meio de uma estilização formal, que propõe um tipo arbitrário de ordem para as coisas, os seres, os sentimentos. Nela se combinam um elemento de vinculação à realidade natural ou social, e um elemento de manipulação técnica indispensável à sua configuração, e implicando uma atitude de gratuidade.

(Candido, 2000: 47)

Esta ideia de relação entre a literatura e a realidade é válida em sentido global. Mas é acentuadamente marcante em Saramago, como já foi verificado ao longo

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da parte I deste estudo, pelas caraterísticas neorrealistas e pós-modernas da sua produção literária em geral. Nalguns romances em particular, é de enorme relevância essa relação, como é o caso dos selecionados como basilares para esta parte II, permitindo um aprofundamento do estudo do espaço em estreita relação com a violência e verificando de que forma a arquitetura do espaço penetra no interior das personagens, se inter-relaciona com elas e as afeta na sua forma de estar e de agir.

Temos consciência de que a obra do autor José Saramago apresenta uma multiplicidade de espaços nem sempre carregados de negatividade, mas, tal como desenvolvemos anteriormente, não parece possível dissociar o espaço ou os espaços de uma carga negativa globalizante, que acaba por envolver as personagens, arrastando-as a estados de depressão e transformando-as, em associação ao espaço, em seres de pensamentos labirínticos, confusos ou mesmo caóticos, julgando, frequentemente, que a recuperação da crise é impossível. No entanto, com o estudo da obra de Saramago, temos vindo a provar (e manter-nos-emos na mesma linha de pensamento) que essa negatividade do espaço se revela intencional e persegue o objetivo do escritor, que, na sua visão humanista, deixa em aberto o vislumbrar de um outro espaço alternativo ao que começa por nos apresentar e nos vai oferecendo ao longo da obra, reservando a dimensão mais positiva ou o gizar do caminho até ela, quer de forma mais explícita quer sugerida, no final dos seus romances.

No caso do tratamento do espaço de violência, selecionamos dois romances que nos parecem emblemáticos no que respeita a esta redenção do espaço negativo inicial: Ensaio sobre a cegueira e Levantado do chão. Quando se lança um olhar sobre eles, é notória a sensação de violência que paira sobre ambos – violência física sobre as personagens, mas também (e, porventura, sobretudo) psicológica. Veremos de que forma o espaço em que decorrem as ações destes dois romances contribui para, gradativamente, acentuar essa violência, apoiando-nos em premissas que consideramos válidas: por um lado, a literatura não pode ser entendida como um fenómeno exterior ao homem, porquanto ela o representa no que há de mais profundo e caraterístico da sua existência; por outro lado, esta

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literatura em concreto é criada num determinado contexto (espacial, temporal, social) e espelha a visão que o escritor detém sobre o seu mundo no momento da escrita, visão que Saramago foi construindo com a sua atenção ao que o rodeia e a sua vontade de uma intervenção pessoal e social construtiva.

Os romances selecionados refletem esse conhecimento profundo do autor sobre a violência do mundo em que vive, exercida em contextos diferentes. É certo que, ao situarmos cronologicamente os romances, ou melhor, ao verificarmos os seus referenciais temporais, podemos afirmar que as respetivas ações decorrem num período de tempo comum ao da existência física do autor: Ensaio sobre a

cegueira pode entender-se refletir um mundo “contemporâneo” do momento em

que o autor o escreveu e Levantado do chão estende-se por um período de tempo que o autor bem conheceu e vivenciou, e que esteve nos alvores da revolução de Abril de 1974. Mas não é apenas pelo facto de a sua cronologia acional ter paralelismo com a cronologia da vida de Saramago que afirmamos a relação existente (neste caso, de expressão de violência) entre as experiências do autor e o universo ficcional recriado. Memorial do convento, por exemplo, que foi objeto de análise na parte I deste estudo, cuja ação se passa no século XVIII, atesta, de igual forma, a existência de vários espaços de violência, dos quais ressalta, por exemplo, a violência física a que são sujeitos os trabalhadores da construção do convento de Mafra, ou a violência psicológica na relação íntima da rainha com o rei D. João V, ou, ainda, a violência social que a Inquisição exerce sobre mentalidades revolucionárias como a do Padre Bartolomeu Lourenço de Gusmão. A violência na literatura tem um historial que se perde nos tempos. Sendo o homem violento na sua condição (Freud explica essa necessidade de violência como uma forma de autopreservação do homem e de defesa perante a ameaça do outro), sempre a literatura representou o ser humano impregnado dos sentimentos ditos nobres, como o amor, a amizade, a compaixão, o carinho, mas nela predomina a exploração de sentimentos negativos, como o ódio ou a agressividade. São disso exemplos a história bíblica, com a violência de Deus sobre homens e animais, os quais extermina, salvando apenas os da sua preferência na Arca de Noé; ou a história bíblica de Caim e Abel - quando Caim

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mata o irmão, 57 parecendo inaugurar, com esse fratricídio, a violência primordial

do homem. Outras histórias, como a dos filhos de Édipo rei, que se ferem mortalmente em disputa pelo trono do pai exilado, podem ser apenas alguns casos de conhecimento universal de presença da violência nas narrativas ao longo dos tempos.

No prefácio da sua obra Violência e Literatura, Ronaldo Lima Lins (1990) nega a ideia de sociedade como um corpo coeso e unificado, sendo ela, ao invés, organizada sobre conflitos. Desde as tribos nómadas até à formação das nações e dos impérios, a violência sempre foi uma constante, norteada por objetivos não muito diversificados: dominar, escravizar, aumentar território; e se a violência pode surgir de forma espontânea, a sociedade do homo violens - expressão utilizada por Roger Dadoun (1998) - tem mostrado, com o decorrer da civilização, que ela pode ser bem controlada, planificada e justificada para atingir os seus instintos, tal como acontece, por exemplo, com os homicídios premeditados ou as guerras a que continuamos a assistir, mesmo nos nossos dias. Diz Dadoun que há uma “caraterística do homem, que consideramos primordial, essencial, e até mesmo constitutiva do seu ser, a saber: a violência. Homo violens […] é um ser humano definido, estruturado, intrínseca e fundamentalmente pela violência” (Dadoun, 1998: 8). Também René Girard (1998), na sua obra A violência e o

sagrado, sustenta o caráter intestino da violência, que motiva o homem a todo o

tipo de desavenças, ciúmes, rivalidades e lutas, considerando ainda que o homem vai ficando tanto mais violento quanto mais se julga civilizado. Mais, considera Girard que, para eliminar a violência, é sempre necessário recorrer a mais violência, pelo que ela se torna persistente, devendo abandonar-se, assim, a ideia de uma sociedade paradisíaca em que o homem venha a encontrar a paz plena. Ambos os autores comungam da mesma ideia de que, quanto mais os homens procuram controlar a violência, mais a estão a fomentar, sendo impossível erradicá-la plenamente.

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Saramago apresenta-nos uma outra visão da história bíblica de Caim, no romance homónimo, editado em 2009. Já em 1991 o autor havia publicado O evangelho segundo Jesus Cristo, que apresenta também uma imagem, para alguns controversa, da figura de Jesus Cristo e que lhe mereceu severas críticas, designadamente por parte da Igreja católica.

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Não gostaríamos de iniciar o estudo das duas obras de Saramago referidas sem fazer uma prévia, ainda que breve, referência à pós-modernidade, designadamente na interpretação do filósofo Jean Baudrillard (1991), uma vez que cremos trazer uma mais-valia em matéria de análise do espaço e da violência a ele associada, ideia que aqui pretendemos confirmar. Segundo este autor, o homem contemporâneo parece ter perdido o sentido de si, uma vez que os valores que orientam a sua vida em sociedade estão cada vez menos estáveis, num mundo que se encontra, também ele, em constante mutação. E isso gera uma forte desumanização, pois o quotidiano do ser humano é norteado pelo consumo e pela vertigem. Baudrillard considera que a pós-modernidade criou “um mundo da simulação, da alucinação da verdade, da chantagem com o real, do assassino de toda a forma simbólica e da sua retrospeção histérica, histórica” (Baudrillard, 1991:16) - e esta atitude da sociedade de anulação dos referenciais