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2. Memorial do convento

2.3. Conclusão sobre o Memorial do convento

A terminar este enfoque no Memorial do convento, que procuramos canalizar para a vertente do espaço e da memória, vamos sistematizar o que parece decorrer da análise aqui realizada.

No que ao espaço da memória diz respeito, cremos ter demonstrado a intenção de Saramago de recuperar a memória pública do convento de Mafra, não para a confirmar tal qual vem sendo vinculada ao longo dos últimos tempos, centrando a construção do convento de Mafra na figura do rei D. João V, mas para revelar algumas das fragilidades desse discurso oficial, designadamente quanto às lacunas de que o mesmo se reveste; no futuro, com a contribuição desta faceta do trabalho do povo para a obra do convento, a história estará mais completa e menos comprometida com uma visão intencionalmente distorcida. Na realidade, incomoda o escritor o facto de o discurso oficial conter lacunas intencionais, que

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se traduzem no silenciamento daqueles que foram os verdadeiros obreiros da construção do palácio. O romance passa, assim, por um processo de anamnese importante, no sentido em que o autor recupera a memória do passado para que

a mesma não se venha a perder – como Saramago referiu sobejamente, escreve

para que não se perca aquilo que fomos ou que somos -, mas escreve também para permitir uma outra interpretação dessa memória que, do seu ponto de vista, tem vindo a ser deturpada pela omissão intencional de uma parte da história e pela sobrevalorização de outra: quem é detentor do poder tem voz ativa; os mais fracos da sociedade são banidos da historiografia oficial.

Dar voz aos que foram esquecidos é pois “ reconfigurar a memória da nação sob o signo da justiça, da igualdade social, da dignidade humana, da capacidade do homem para ser sujeito da sua própria história” (Martins, 2006: 281).

Paralelamente à construção do convento, surge, como vimos, a construção da passarola voadora, acontecimentos que ocorreram, efetivamente, na mesma época. Para além de todo o secretismo de que se tinha de revestir a construção da máquina de voar, para evitar as perseguições do tribunal do Santo Ofício, que associaria a vontade humana de voar a um ato de heresia forçosamente punível com a fogueira – o que vai ser útil ao autor para, juntamente com a história da construção do convento, dar conta de um outro dado histórico que marcou o reinado de D. João V -, a construção da passarola vai, também ela, pôr em evidência duas personagens do povo, Baltasar e Blimunda, como obreiros de algo que também ficou para a história, atribuído, tal como a construção do palácio, a alguém que pertencia a um outro estrato social, o padre Bartolomeu Lourenço. Ainda assim, a comunhão destas três personagens na consecução do projeto é valorizada pelo autor, contrariamente ao que acontece com os trabalhos do convento, em que existe total distanciamento entre a figura do rei e os trabalhadores.

Relativamente ao espaço propriamente dito (dos macroespaços de Lisboa e de Mafra), do qual se procurou sustentar a importância da vertente física, mas apenas para a essa vertente associar o que, em nosso entender, prevalece em relevância - a dimensão social, psicológica e humana -, gostaríamos de concluir,

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convergindo para a linha ideológica que temos procurado defender, de consideração da dimensão negativa do espaço a caminho de uma dimensão de utopia. A passagem que vamos transcrever confirma um espaço de negatividade a todos os níveis, sobretudo no que respeita à condição humana. É o final de um capítulo, muito próximo já do fim do romance. Blimunda conta a Baltasar a passagem de homens a caminho da seleção para as obras do convento. Todos são chamados, mas nem todos escolhidos.

Para chegarem à obra, vindos donde vêm, têm de atravessar a vila, passam à sombra do palácio do visconde, rasam a soleira dos Sete-Sóis […]. As janelas do palácio não se abrem para ver passar o cortejo dos miseráveis, só o cheiro que deitam, senhora biscondessa. Abriu-se, sim, o postigo da casa dos Sete-Sóis e veio Blimunda olhar, não é nenhuma novidade, quantas levas já por aqui passaram, mas, estando em casa, sempre vem ver, é uma maneira de receber quem chegou, e quando à noite Baltasar regressa, ela diz, Por aqui passaram hoje mais de cem, perdoe-se a imperfeição de quem não aprendeu a contar rigoroso, foram muitos, foram poucos, é como quando se fala de anos, já passei dos trinta, e Baltasar diz, Ao todo ouvi dizer que chegaram quinhentos, Tantos, espanta-se Blimunda, e nem um nem outro sabem exatamente quantos são quinhentos, sem falar que o número é de todas as coisas que há no mundo a menos exata, diz-se quinhentos tijolos, diz-se quinhentos homens, e a diferença que há entre tijolo e homem é a diferença que se julga não haver entre quinhentos e quinhentos, quem isto não entender à primeira vez não merece que lho expliquem segunda.

(MC: 295-296)

Como os tijolos, os homens serão escolhidos e ficarão na obra, mesmo “os que não prestarem” para grandes serviços; os que de todo não servem são mandados embora, de volta às suas casas, onde “às vezes chegam” – a maior parte das vezes perdem-se, tornam-se vadios, roubam ou morrem na viagem. É assim que termina o capítulo.

Mas o excerto atrás transcrito merece ser explorado com vista à confirmação da nossa tese. Os “miseráveis” passam diante de dois espaços, um palácio e uma casa modesta. Um deles mantém-se fechado para evitar os maus cheiros; o outro abre-se, em gesto de receber quem chegou. Para os habitantes do primeiro espaço, aqueles “miseráveis” são como tijolos, matéria a ser usada na construção do convento; para Blimunda, são homens. É precisamente sobre a diferença entre tijolos e homens que o narrador vai encetar uma reflexão, que não esmiuça propositadamente para nos deixar a pensar. E é aqui que acreditamos ser

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possível, mais uma vez, confirmar que o espaço, não apenas o circunscrito à cena apresentada, mas, por extensão, o espaço onde ainda imperam estes preconceitos em relação ao valor de cada homem – espaço de negatividade, portanto -, deve ser objeto de reflexão, para que se torne progressivamente mais inclusivo e humanizado.

Estamos seguros de que Saramago, sempre que deixa no ar pistas de reflexão como a que foi apresentada, está a atualizar a história, querendo com isto significar que está a trazê-la para os nossos dias, pois continua a ver projetadas no presente situações muito próximas daquelas que, discriminatoriamente, separam os homens em duas categorias opostas: a dos que são detentores do poder, das influências e da riqueza, por um lado, e a dos que vivem miseravelmente e são subjugados, por outro. A utopia reside, assim, num espaço imaginário em que seja possível esbater estes preconceitos – é esse o rumo a tomar.

Ernst Bloch (2006) mostra de que forma, ao longo dos tempos, esse “não-lugar” da utopia tem procurado vislumbrar um espaço físico em que fosse possível reinarem valores como a felicidade, a harmonia e a não-alienação humanas, entre outros.

Os rostos que se voltam na direção da utopia foram, é verdade, diferentes em cada época, exatamente como aquilo que eles imaginaram ver nela no que diz respeito aos detalhes, de caso para caso. Em contrapartida, a direção é parecida em toda a parte, sim, é a mesma quanto ao seu alvo ainda encoberto; ela se manifesta como a única coisa inalterável na história. Felicidade, liberdade, não-alienação, idade de ouro, terra que mana leite, o feminino eterno, o sinal da trombeta no Fidélio e o cristomórfico do dia da ressurreição: são tantos e de peso tão diverso os testemunhos e as imagens, mas todos estão postados em torno daquilo que fala por si mesmo, enquanto ainda não está calado.

(Bloch, 2006: 461-462)

Veremos, no estudo apresentado a seguir sobre A caverna, de que forma ali se confirma, igualmente, este sentido de busca de um espaço humano de “felicidade, liberdade, não-alienação” (Bloch, 2006, 462).

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