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1. As pequenas memórias

1.1. O espaço da aldeia

O livro As pequenas memórias abre, precisamente, com uma marca de espaço físico, a aldeia da Azinhaga, na qual o autor nasceu e a qual viria a ser o palco das suas férias escolares durante vários anos da sua infância e juventude. Apesar de ser a sua terra, cedo teve de deixar a aldeia e de se mudar para Lisboa com os

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Ainda que não o tendo referido explicitamente, parece ser possível projetar espaços rurais da Azinhaga, referidos em As pequenas memórias (com as dificuldades do trabalho agrícola, a fome, as más condições de vida), em espaços e situações similares descritas, por exemplo, em

Levantado do chão. Mas é o próprio autor que refere a forma como os espaços reais – não apenas

físicos, mas com tudo o que com eles se relaciona -, são utilizados na sua ficção. Este aspeto é explorado no presente estudo.

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seus pais: “Foi nestes lugares que vim ao mundo, foi daqui que meus pais, migrantes empurrados pela necessidade, me levaram para Lisboa, para outros modos de sentir, pensar e viver, como se nascer eu onde nasci tivesse sido um equívoco do acaso” (PM: 12).

É breve a descrição da aldeia, mas dela é feita menção a algo que lhe é indissociável e que será cenário de alguns dos eventos marcantes na vida do autor, o rio Almonda, que, próximo do casario, se junta ao Tejo, outro cenário das suas aventuras de criança. O leitor apercebe-se de imediato da forte ligação visceral do escritor àquele espaço rural, força telúrica que Saramago guardará ao longo da vida.

Sem que ninguém de tal se tivesse apercebido, a criança já havia estendido gavinhas e raízes, a frágil semente que então eu era havia tido tempo de pisar o barro do chão com os seus minúsculos e mal seguros pés, para receber dele, indelevelmente, a marca original da terra.

(PM: 12)

Ora, se essa ligação primária à terra ocorrida ao nascimento parece ter marcado o autor, a verdade é que ele afirma que estava destinado a retomar e reforçar essa ligação à ruralidade, não apenas em atitude contemplativa, mas embrenhado em mundividências que lhe permitem conhecer o verdadeiro estigma da vida dos agricultores e a sua pobreza material, de que os seus avós eram um bom exemplo. “Só eu sabia, sem consciência de que o sabia, que nos ilegíveis fólios do destino e nos cegos meandros do acaso havia sido escrito que ainda teria de voltar à Azinhaga para acabar de nascer” (PM: 13).

O retomar daquele espaço de crescimento físico e interior para o autor acontecerá, como se disse, de forma cíclica, nas férias escolares, e desse contacto retomado terá o autor aprendido, sobretudo por via do avô (o homem que não sabia ler, mas o mais sabedor de todos os homens que disse ter conhecido), muito do que constitui a realidade da vida no campo, tanto as tarefas sazonais, como o vocabulário vastíssimo e as expressões de cunho popular que enriquecerão a sua mente e serão úteis para a criação de romances, como é o caso de Levantado do chão, do qual nos ocuparemos a seu tempo.

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No vaivém entre o passado e o presente, o autor denota, em certos momentos, o seu conhecimento do espaço atual da Azinhaga, tão diferente daquele que a sua memória guarda. Na linha de pensamento de Tulving, o revisitar do espaço terá avivado a memória do autor sobre aquele espaço de outrora e terá impelido a uma reflexão crítica sobre a mudança operada. É o caso da destruição dos olivais de “pelo menos, dois ou três séculos […] impiedosamente rasoirados há alguns anos” (PM: 14), por decisão da Comunidade Europeia. Lamenta o autor o facto de as oliveiras, que, “durante gerações e gerações, haviam dado luz às candeias e sabor ao caldo” (PM: 14), terem sido substituídas por um “monótono, um interminável campo de milho híbrido, todo com a mesma altura, talvez com o mesmo número de folhas nas canoilas, e amanhã talvez com a mesma disposição e o mesmo número de maçarocas, e cada maçaroca talvez com o mesmo número de bagos” (PM: 14). Este olhar sobre o espaço revela uma profunda tristeza face à transformação acontecida e potencia, simultaneamente, uma forte crítica à situação política e social a que o país foi arrastado com a sua adesão à atual União Europeia. Conhecedores que somos da ideologia política de Saramago, é fácil entender estes implícitos nas suas afirmações.

Num artigo publicado em 2010, intitulado “La mémoire: thématique maîtresse de

la littérature et de l’histoire”,35

Lu Jiandong refere a mudança recente das relações entre o homem e a natureza, a que não fica alheia a literatura. Segundo Jiandong, o homem nunca foi, como hoje, tão atormentado pela angústia e pela dúvida - e a destruição massiva do meio ambiente é, para o autor, um exemplo perfeito dessa angústia. Perante esta situação, os escritores introduzem, na sua temática, as questões ambientais, ainda que tentem serenar os espíritos, não deixando, contudo, de mostrar o caminho que deve ser seguido rumo a um mundo melhor:

[os escritores] poursuivent leur recherche d’absolu et leurs idéaux, en consolant les

âmes malheureuses, en essayant d’apporter de la quiétude, de la sérénité aux âmes bien agitées et en inspirant au public un avenir qui devrait être meilleur. Étant donné la complexité du monde d’aujourd’hui en pleine mutation, il est plus difficile que dans

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le passé pour la littérature d’assumer la responsabilité d’ange gardien de l’âme de l’humanité.36

(Jiandong, 2010: 89)

O mesmo olhar de tristeza sobre o espaço e a mesma atitude crítica surgem em diversas ocasiões, de entre as quais destacamos os seus sentimentos face ao rio junto ao qual brincou e que se encontra, agora, poluído. Enumerando um conjunto de elementos da paisagem e da vida rural, que o autor, sem que disso na altura tivesse consciência, considera hoje terem sido uma “joia” na sua formação de homem, enfatiza o rio, sobre o qual, já quando adolescente, escreveu um longo poema, que transcreve. Simplesmente o rio é uma “humilde corrente de água hoje poluída e malcheirosa – em que se tinha banhado e por onde havia navegado” (PM: 16). Esse mesmo rio, que constituía o espaço de eleição nas saídas do autor - “Não tenho muito por onde escolher: ou o rio, e a quase inextricável vegetação que lhe cobre as margens, ou os olivais e os duros restolhos do trigo já ceifado, ou a densa mata de tramagueiras, faias, freixos e choupos que ladeia o tejo para jusante” (PM: 19) -, era sempre uma importante fonte de prazer e, no futuro, viria a ser fonte de inspiração.

O olhar sobre o espaço, de que nos ocupamos – e em particular este espaço da

Azinhaga -, merece, por parte do autor, uma reflexão, na medida em que se entrecruzam nele três visões: a que a criança e o jovem guarda desse espaço de tempos passados, a que o homem adulto tem dele atualmente e, talvez a mais importante, que não é visível, mas resulta, no imaginário do escritor, do cruzamento entre essa realidade memorizada e a sua interpretação pelo adulto de hoje, pelo confronto com uma realidade nova, na ausência da realidade anterior: “A criança que eu fui não via a paisagem tal como o adulto em que se tornou seria tentado a imaginá-la desde a sua altura de homem. A criança, durante o tempo

36 Tradução livre do autor: “

prosseguem a sua busca de absoluto e os seus ideais, consolando as almas infelizes, tentando trazer a paz, a serenidade às almas agitados e inspirando no público o desejo de um futuro que deverá ser melhor. Dada a complexidade do mundo de hoje em plena mudança, é mais difícil do que no passado para a literatura assumir a responsabilidade de anjo da guarda da alma da humanidade”. (Jiandong, 2010: 89)

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que o foi, estava simplesmente na paisagem, fazia parte dela, não a interrogava” (PM: 15).

Não tendo acesso senão através da memória à realidade onde viveu em anos idos, o autor não lamenta esse facto, já que pode sempre, virtualmente, recuperar essa realidade. Refere-o concretamente a propósito do desaparecimento de alguns espaços que lhe foram íntimos, um deles a casa: “o lar supremo, o mais íntimo e profundo, a pobríssima morada dos meus avós maternos, Josefa e Jerónimo se chamavam, esse mágico casulo onde se geraram as metamorfoses decisivas da criança e do adolescente” (PM: 18). A uma adjetivação valorativa que denota a importância daquele espaço para si (supremo, íntimo, profundo, mágico), contrapõe-se o superlativo “pobríssima”, apontando para uma dimensão material do espaço, que em nada quebrava a força do mesmo a nível humano, onde se aplicaria facilmente a adjetivação antónima de riquíssimo. Esse espaço físico da casa agora já inexistente é recuperado “pelo poder reconstrutor da memória” (PM: 18).

Em relação a esse espaço do lar, se é verdade que a descrição das casas de Lisboa onde viveu não é muito detalhada – ficando clara, no entanto, a noção de que se tratava de espaços sempre exíguos, normalmente em águas furtadas partilhadas por mais do que uma família, o que implicava muita falta de privacidade e alguns conflitos -, a casa dos avós na Azinhaga, sendo exígua e pobre, merece uma descrição mais detalhada:

A construção era do mais tosco que então se fazia, térrea, de um único piso, mas levantada do chão cerca de um metro por causa das cheias, sem nenhuma janela na frontaria cega, nada mais que uma porta em que se abria o tradicional postigo. Tinha dois compartimentos espaçosos, a casa de fora, assim chamada por dar para a rua, onde havia duas camas e umas quantas arcas, três se a memória não me falha, e logo a seguir a cozinha, uma e outra de telha vã por cima e chão de terra por baixo. À noite, apagado o candeeiro de petróleo, sempre se podia distinguir pelas frinchas do telhado o cintilar de uma estrela vagabunda”.

(PM: 91)

Neste espaço de extrema simplicidade e pobreza, que era a casa dos avós no Ribatejo, encontram-se objetos (os móveis, os enfeites), que surgem descritos como se se tratasse de verdadeiras preciosidades, mesmo não tendo,

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efetivamente, grande valor “comercial”: é assim, com afeto, que Saramago os recorda, porque também era esse o sentimento que os habitantes da casa por eles nutriam na altura (na pobreza da casa, uma cómoda ou uma moldura eram consideradas valiosas).

Associado a estes espaços íntimos do lar, quer de Lisboa quer da Azinhaga, não podem deixar de ser relevados aspetos que a memória do autor evidencia e que se referem a situações hoje inexistentes, mas que foram reais e que não poderão ser esquecidas, até porque serão determinantes para a reconstrução histórica e sociológica de um espaço temporal não muito afastado. Apresentamos, tanto para a casa dos avós como para a casa dos pais, em Lisboa, situações que traduzem as contingências da vida pobre daquele tempo e que em muito contribuirão para que, hoje e no futuro, haja um maior conhecimento das formas de vida na primeira metade do século XX.

Na casa da Azinhaga, a avó “embarrava” a casa de fora várias vezes por ano. Trata-se de uma atividade comum entre as gentes pobres do campo, cujas habitações, sobretudo no Ribatejo e no Alentejo, obedeciam à planta atrás referida pelo autor: a casa de fora (a sala) e a cozinha – algumas tinham ainda um quarto, por norma também sem janela, designado de quarto escuro. Embarrar a casa era uma forma de tornar o chão mais agradável à vista e de permitir que o mesmo se varresse sem levantar tanta poeira. O autor descreve a operação naquele espaço da casa:

A intervalos irregulares, talvez de dois ou três meses, minha avó embarrava a casa. Dissolvia a quantidade de barro apropriada num balde de água, e depois, de joelhos, utilizando um pano que ia empapando na mistura, e movendo-se às arrecuas, de diante para trás, fazia com ele, de um lado a outro, grandes movimentos de braço que iam cobrindo o chão com uma nova camada. Enquanto o barro não estivesse completamente seco, todos estávamos proibidos de passar por ali. Ainda tenho no nariz o cheiro daquele barro molhado e nos olhos a cor vermelha do chão que empalidecia pouco a pouco, à medida que a água se ia evaporando.

(PM: 91)

Refira-se que todas as marcas que o autor guarda dos momentos da infância acabam por ser recuperadas, com maior ou menor grau de transformação, e

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aplicadas em personagens dos seus romances: imagens, sons, sabores e cheiros vão ser utilizados no universo ficcional, como adiante veremos, mais em concreto. O livro As pequenas memórias prossegue com relatos de pequenos episódios ocorridos naquele espaço ribatejano, terra dos avós; são histórias de familiares ou de pessoas conhecidas, histórias ouvidas pelo autor ou por ele presenciadas. Porventura digno de referência aqui, pela transposição do espaço físico para um espaço imaginário, é o episódio do regresso a casa, na noite em que saiu para ir a um baile, e onde terá experimentado, pela primeira vez, o sentimento do amor. Nesse regresso, noite fechada, o autor encontra uma “árvore isolada, alta, escuríssima no primeiro momento contra a transparência noturna do céu.” (PM: 22). E, ao soprar de uma brisa, aquele espaço que o autor bem conhecia transfigurou-se e criou nele uma ilusão fantástica que o marcou profundamente: “Foi um instante, nada mais que um instante, mas a lembrança dele durará o que a minha vida tiver de durar” (PM: 23). Nesse espaço dormiu e acordou à luz da manhã, sentindo que tinha “acabado de nascer”, expressão que aponta uma espécie de ritual de transição para a idade adulta e o início da vida amorosa que o serão da véspera lhe havia proporcionado. Curioso o facto de o próprio autor, à distância do tempo, não ter bem consciência se o que guarda dos sentimentos experimentados nesse momento é mesmo uma memória ou uma invenção atual, o que demonstra, como atrás referimos a propósito do espaço, o cruzamento que existe ao nível da memória, entre o efetivamente vivido e o recuperado no presente.

Mergulhar na infância comporta estas oscilações entre o vivido e o recordado, este frequentemente adulterado. Escrever sobre a infância é ter a capacidade de deixar o mundo real e viajar para um mundo de sonho, para sonhar com um renascimento desejado, pois a infância é uma espécie de mundo fechado a que se tenta abrir as portas através da recordação. Não sendo certo que a intenção de Saramago fosse, ao escrever As pequenas memórias, a de construir uma autobiografia de um período da sua vida, a verdade é que, de acordo com Philipe Lejeune (2010), parece ser o que acaba por suceder. Segundo este autor, a autobiografia é um “récit rétrospectif en prose que quelqu’un fait de sa propre

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existence, quand il met l’accent principal sur sa vie individuelle, en particulier sur l’histoire de sa personnalité” (Lejeune, 2010: 12);37 esta definição pode aplicar-se

ao texto das memórias de Saramago, na medida em que com ele se complementa o conhecimento que é dado ao leitor sobre a personalidade do escritor, estrutura de um homem construída sobre vários pilares, porventura o mais marcante este que aqui comentamos sobre as suas vivências no espaço rural da Azinhaga.

Na obra aqui em apreço, sem que haja uma separação vincada entre os dois espaços predominantes, a Azinhaga e Lisboa, o espaço citadino vai ganhando terreno, pois é lá que, de facto, o autor vive, em permanência, com os seus pais.