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1. As pequenas memórias

1.3. O espaço e o despertar da consciência

Estes retalhos que formam as memórias da infância e da adolescência de Saramago na aldeia e na cidade, expostos em As pequenas memórias, incluem a abordagem de um tema que, para Saramago, não será de menor importância relativamente às recordações da família ou às pequenas aventuras vividas. Porque sabemos que o autor não recorda apenas para que outros o conheçam melhor (isso mesmo referiu em entrevista no dia do lançamento deste livro de memórias), mas tem consciência que a sua escrita tem sempre uma finalidade, outra que não seja a de procurar entender-se a si próprio e entender o mundo, não será por acaso que, também no espaço da sua memória, se encontrem imagens que se reportam à situação política do país, a encaminhar-se para a ditadura salazarista, da qual o jovem tinha, na altura, uma consciência pouco profunda, mas em relação à qual sabemos ter desenvolvido uma atitude política de forte oposição, que se estenderia até ao 25 de abril de 1974 - isto para além

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da atitude pedagógica que mantém, ao mostrar, posteriormente a essa data, através dos seus romances, conforme ainda neste estudo será explorado, o que foram as provações sentidas pelos mais frágeis da sociedade durante esse período de ditadura.

Consta, pois, de As pequenas memórias, a referência à forma como o adolescente Saramago começa por tomar consciência do totalitarismo de Salazar, ou como se apercebe da guerra civil espanhola, no final dos anos 30, ou como a ascensão de Hitler ao poder não lhe é indiferente.

Para além de uma consciência expressa de recusa em pertencer à Mocidade Portuguesa, que apoiava o ditador, a qual Saramago manifesta não usando a farda nas formaturas, merecem referência as notícias da ascensão do nazismo e o progressivo conhecimento da oposição ao regime salazarista, a que não eram alheios certos jornais da época.

Sobre o nazismo, recorda o autor uma fotografia do chanceler austríaco Dolfuss, pouco tempo depois assassinado pelos nazis, fotografia essa surgida no jornal “O Século”, sensivelmente na altura da tomada do poder por Hitler. Sobre Salazar, recorda um jornal que vê numa tabacaria, apresentando “uma mão em posição de preparar-se para agarrar algo. Por baixo, lia-se o seguinte título: «Uma mão de ferro calçada com uma luva de veludo». O jornal era o semanário humorístico

Sempre Fixe, […] a mão figurava ser a de Salazar” (PM: 141). Sem que encontre

explicação para tal, mas certamente fruto da intuição, como diz, e da sua atenção perspicaz a tudo o que o rodeava, o autor afirma que aquelas “duas imagens – a de Dolfuss que sorria vendo passar as tropas, quem sabe se já condenado à morte por Hitler, a da mão de ferro de Salazar escondida por baixo da macieza de um veludo hipócrita – nunca […] [o] deixaram ao longo da vida” (PM: 141). Foi possível ao autor confirmar as suspeitas de que “Hitler, Mussolini e Salazar eram colheres do mesmo pau, primos da mesma família, iguais na mão de ferro, só diferentes na espessura do veludo e no modo de apertar” (PM: 141-142).

As “pequenas” grandes memórias que o autor partilha no seu livro, de uma variedade tão surpreendente que vai desde o retrato físico à caraterização

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psicológica de personagens, da descrição de espaços físicos à contemplação a que esses espaços conduzem, da atenção ao pequeno pormenor ao olhar para o infinito da paisagem, dos medos e desventuras do jovem adolescente às suas escassas alegrias (e seria exaustiva a listagem de todos os espaços a que a memória fez apelo no pequeno livro), todas merecem um comentário quanto à sua pertinência e ao sentido que assumem para um escritor consagrado, como é Saramago no momento em que as dá a lume. O livro, como dissemos, não segue uma estrutura linear38

, no sentido em que, diacronicamente, ainda que se inicie com a descrição do lugar onde o narrador veio “ao mundo” (PM: 12) e termine na fase de transição para a idade adulta, quando o narrador já compreende os comportamentos humanos e sabe a melhor maneira de reagir perante eles - como se nota, por exemplo, no caso da história do “lagarto verde”39

(PM: 149), com a qual, curiosamente, o livro termina – (e lembremos que não era intenção do autor fazer do livro a sua biografia, mas apenas recordar um período delimitado da sua vida), o livro, dizíamos, segue uma estrutura desordenada, percorrendo, alternada e aleatoriamente, espaços e momentos, num relato em tom coloquial que Saramago diz apreciar: “Imagino-me muito mais como alguém que está a falar do que alguém que está a escrever. Isso explica as digressões, as interrupções, o deixar coisas em suspenso para as retomar mais à frente” (Aguilera, 2010: 235). Reconhecemos, contudo, que, no meio da explicada miscelânea, um olhar sobre

As pequenas memórias traz, a qualquer leitor, a imagem de uma criança ou de

um adolescente movendo-se em dois espaços determinantes, aos quais demos enfoque, e onde são narradas aventuras e desventuras.

Lisboa é o espaço da sua residência, não apenas na infância, mas também na idade adulta. É nessa cidade que vai contrair os seus vínculos literários e políticos, mas é essa mesma cidade que o faz distanciar-se progressivamente de

38 Fernando Gómez Aguilera refere o que a este propósito podemos considerar adequado: “Nos

seus romances, o autor-narrador torna-se uma figura central, vigorosa e totalizadora. É capaz de reordenar subjetivamente a temporalidade amalgamando a sua própria circunstância com o ciclo dos factos narrados, interferir no decurso da narrativa mediante digressões […]”. (Aguilera, 2010: 233)

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De facto, a reação do autor, na altura já com dezasseis anos, perante a situação que presenciou, denota uma maturidade que o leva a não reagir ao comentário do homem acerca da mulher casada com quem se havia encontrado.

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um meio que se revela propiciador a intrigas e a invejas, a nível político e cultural: Lisboa é “uma espécie de cerco por vontades, forças, poderes e dinheiros que têm outros critérios que não são, designadamente, aqueles a que nos tinha habituado uma certa maneira de viver em Lisboa” (Aguilera, 2010: 71).40

Mesmo sendo esta uma visão da cidade posterior à que da mesma cidade nos é apresentada em As pequenas memórias, não deixa de ser, de certa forma, também negativa a imagem da Lisboa que diz ser sua: “A Lisboa que vejo como uma coisa minha, não tem nada a ver com a de agora. […] a Lisboa que trago dentro de mim é a Lisboa dos anos 30” (Aguilera, 2010: 74).41

Dessa cidade, com tudo o que de positivo ela representou na sua educação e que As pequenas

memórias relatam em boa parte (a escola, os estudos secundários, a ida à

biblioteca), fica também – e sobretudo, como já foi exemplificado – o estigma da já referida pobreza das sucessivas casas partilhadas com outras famílias e a consequente falta de privacidade, da dureza do pai e do seu comportamento de infidelidade para com a mãe, das violências de que foi alvo – elementos cruciais na construção da pessoa José Saramago.

Mas o espaço de referência para Saramago é, para todos os efeitos, a sua aldeia natal. É o espaço emblemático do imaginário da origem e a ele estão associados, apesar das dificuldades das gentes, a simplicidade, o bucolismo e a liberdade. As aprendizagens adquiridas no espaço da aldeia da Azinhaga, no contacto com as suas gentes, são determinantes na formação da personalidade do autor, o qual, não obstante ter passado a maior parte da sua vida na cidade, acaba por ir buscar ao campo e às pessoas a este ligadas a parte mais contemplativa da vida. A cidade ensina-lhe outras coisas. E o contraste entre as duas realidades propicia- lhe uma visão privilegiada e uma análise mais aprofundada da realidade daquele tempo e é, em boa medida, a génese de uma consciência cívica e política que o autor vem a adotar como postura para o resto da sua vida.

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«Saramago: O escritor não quer ser cercado», in O Jornal Ilustrado, Lisboa, nº739, 21-27 de abril de 1989 (entrevista de João Garcia).

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«Eu não rompi com Cuba», in Rebelión, Cuba, 12 de outubro de 2003 (entrevista de Rosa Miriam Elizalde).

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Na cidade de Lisboa, a tal Lisboa de outrora a que o autor se sente apegado, aconteceram as primeiras abordagens no plano político, que haviam de deixar no autor o fermento para uma consciencialização e uma intervenção permanentes ao longo da sua vida adulta. Refere Saramago, em As pequenas memórias, embora sem ser muito preciso relativamente ao episódio, que, menino ainda, ouviu o assobiar dos tiros de artilharia que eram lançados do Castelo de São Jorge contra os revoltosos instalados no parque Eduardo VII, naquela que terá sido uma das intentonas revolucionárias contra o Estado Novo. Como dissemos, é pontual a referência ao episódio, mas foi marcante para a criança que Saramago era, e foi-o de tal forma que guardou na memória a imagem fiel do espaço onde se encontrava, ponto intermédio na linha imaginária traçada entre a parte atacante e a revoltosa.

Creio que no mês de fevereiro de 1927 ainda estaríamos a viver na Mouraria, uma vez que conservo a recordação vivíssima de ouvir assobiar por cima do telhado os tiros de artilharia que eram disparados do Castelo de S. Jorge contra os revoltosos acampados no Parque Eduardo VII. Uma linha reta que fosse traçada a partir da esplanada do castelo e tomasse como ponto intermédio de passagem o prédio em que morávamos iria topar infalivelmente com o tradicional posto de comando das insurreições militares lisboetas. Acertar ou não acertar no alvo já seria uma questão de pontaria e justa alçada.

(PM: 38)

A referência a esta memória, que o autor chega a questionar, pela idade que tinha em 1927, tratar-se da insurreição ocorrida nesse ano ou noutro posterior,42

não deixa de ser interessante do ponto de vista das marcas deixadas na personagem, que terá tomado a consciência possível na altura – e amadurecida com os anos – da tensão política vivida em Portugal na época. E se guarda desta situação pontual particular memória pelo silvar dos tiros a passarem sobre o telhado da casa onde vivia, essa consciência parece tê-lo acompanhado durante o período

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Na sequência do golpe militar de 28 de maio de 1926, que instaura uma ditadura militar, pondo fim à experiência republicana e liberal conseguida a 5 de outubro de 1910 com a queda da monarquia, os partidos da esquerda organizam-se de forma a tornar possível o derrube da ditadura instaurada. A primeira grande manifestação de revolta ocorre no Porto, em fevereiro de 1927, mas é seguida em vários pontos do país. A intentona a que se refere Saramago terá ocorrido a 20 de julho, mas de 1928, pois foi nessa data que se instalou uma unidade de metralhadoras no Castelo de S. Jorge, que daria início a uma operação em que estiveram implicadas outras forças localizadas de norte a sul do país, estando previstos atos de sabotagem diversos.

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das frequentes revoltas ocorridas na altura contra o Estado Novo, independentemente de estar ou não a viver naquela zona da Mouraria. O seu pai era militar da Polícia de Segurança Pública e não será difícil supor que esse assunto fosse abordado em casa e que Saramago, desse como doutros assuntos que refere, tenha podido “deduzir e imaginar de umas quantas meias palavras” (PM: 40) que ia ouvindo, que a situação do país polarizava entre as forças do poder recentemente instituído, que dava já mostras de prepotência e de violência, e as forças de reação a esse regime.

No seu deambular por várias residências na cidade de Lisboa, Saramago volta a ficar marcado por um acontecimento que fará parte do seu património de memórias. Trata-se da guerra civil espanhola, que ele recorda do período em que vive na Rua Padre Sena Freitas. Tal como sobre a situação de revolta atrás relatada, também a guerra civil espanhola é apenas uma referência, que, contudo, não terá sido fortuitamente recordada e mencionada no livro. O autor diz-nos mais tarde, noutra das suas memórias, quando recorda a amizade com o vizinho Chaves, casado com uma espanhola, áspera e de caráter agressivo (assim lhe ficou dela a imagem), que era em casa desse casal que ouvia a Rádio Sevilha e através das suas emissões seguia o curso da guerra, colocando até alfinetes num mapa a registar o avanço das tropas. Importante neste registo da memória é o facto de Saramago “ter deitado para o lixo, poucos meses depois, esse mapa de Espanha em que vinha espetando alfinetes de cores” (PM: 55), consciente já de que a informação que captava da Rádio Sevilha em casa dos Chaves ou da imprensa portuguesa da época era toda ela tendenciosa e, portanto, pouco tradutora do que estava, efetivamente, a acontecer: “Escusado será dizer que a minha única fonte informativa só podia ser a censurada imprensa portuguesa, e essa, tal como a Rádio Sevilha, jamais daria notícia de uma vitória republicana” (PM: 55).

É a propósito da referência à guerra civil espanhola que o autor vai contar um episódio em que ele próprio intervém, juntamente com o seu pai e um outro agente de autoridade, este da Polícia de Investigação Criminal, episódio que no subconsciente do autor estará num patamar de violência muito semelhante ao da

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guerra – daí que a memória lho avive quando refere a guerra civil. A propósito de um jogo a simular futebol, usual, na época, na classe baixa, o narrador deixa transparecer a sua já então elevada maturidade intelectual, quando comenta a insensibilidade do pai ao impedir a criança Saramago de ganhar, pretendendo marcar a sua posição de adulto (e de autoridade) junto ao filho. O outro agente, o Barata, amigo da família, que assistia à disputa entre o pai e o filho, exercia sobre a criança uma autêntica tortura psicológica, repetindo sarcasticamente que a criança estava a perder, o que levou o Zezito (Saramago), humilhado, a reclamar, com respeito, que o tal agente Barata estivesse quieto – face ao que o pai reage violentamente, agredindo a criança.

Ainda a frase mal tinha terminado e já o pai vencedor lhe assentava duas bofetadas na cara que o atiraram de roldão no cimento da varanda. Por ter faltado ao respeito a uma pessoa crescida, claro está. Um e outro, o pai e o vizinho, ambos agentes da polícia e honestos zeladores da ordem pública, não perceberam nunca que haviam, eles, faltado ao respeito a uma pessoa que ainda teria de crescer muito para poder, finalmente, contar a triste história. A sua e a deles.

(PM: 46)

Todos estes retalhos da ainda curta vida de José Saramago vão ser evocados em

As pequenas memórias, fazendo deles o escritor uma análise à luz da sua

condição de homem adulto, mas revelando ao leitor que, desde criança, a sua consciência está bem desperta para questões que hoje incluímos no âmbito social e político, ou no foro da pedagogia e da psicologia, entre outros. Os espaços da infância e da adolescência, evocados através da memória, revelam a diversidade de aspetos sobre os quais vai ser aprofundada a relação do escritor com o seu mundo.