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2. Memorial do convento

2.2. Outro macroespaço – Mafra

Passemos agora a um outro espaço importante no Memorial do convento, que é Mafra, local onde se constrói o convento cujo memorial é anunciado no título da obra. Segundo Adriana Martins, reside no espaço de Mafra um dos fundamentos que leva a que o autor tenha feito a incursão pela história ao decidir escrever sobre a construção do convento. Dá conta a autora das intenções de Saramago ao escrever este romance:

[…] o romance assume um compromisso com o público leitor que, para além de ser cognitivo e didático (o revisitar o passado para avaliá-lo e para dar a conhecer uma outra versão da história), é, sobretudo, ético-político e ideológico, pois, através da opção do escritor pela caraterização dos trabalhadores de Mafra e das suas histórias

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de vida, o romance chama a atenção para aquele que é talvez o pior dos abusos da memória pública enquanto representação do passado, ou seja, o esquecimento.

(Martins, 2006: 275)

Esse esquecimento refere-se aos milhares de trabalhadores anónimos que deram vida ao sonho do rei, tornando o projeto numa realidade. Nesse sentido, o espaço que vamos encontrar em Mafra está muito para além de um espaço físico, sendo valorizada a sua dimensão humana, pois Mafra é palco da movimentação de muitos milhares de homens que foram afetados direta ou indiretamente pela construção do convento, que vieram de todas as partes do reino. Para levar a cabo aquela obra mastodôntica, toda a força masculina válida foi convocada, com alterações dramáticas a nível pessoal e familiar, e mesmo os que já viviam no espaço da vila viram igualmente alterada as suas vidas em função das obras do convento – insere-se, neste grupo, a família de Balasar.

Antes ainda de nos dedicarmos à parte humana, vamos ver de que forma o espaço físico de Mafra sofreu alterações que causam espanto a Baltasar. Depois de breves referências à localização da casa dos Sete-Sóis, “muito perto da igreja de Santo André e do palácio dos viscondes, […] na parte mais antiga da vila” (MC: 211), Baltasar vai encontrando trabalhadores que se dirigem para as obras do convento, conforme lhe explicam, dado que ele não estava em Mafra desde há anos. Álvaro Diogo explica-lhe as dificuldades que estes trabalhadores, que vêm de longe, sentem para chegar ao local de trabalho, porque os caminhos foram atulhados pelos lixos dos aterros da grande obra do convento que dura já há sete anos. Só então Baltasar se apercebe da verdadeira dimensão da construção, tanto em termos materiais como em recursos humanos implicados, e “abre a boca de espanto”:

A obra é grande diz Álvaro Diogo, quando estiveres ao pé saberás, e Baltasar, que está desdenhando de canteiros e pedreiros, mete a viola no saco, não tanto pela pedraria já levantada, mas pela multidão de homens que cobrem o terreiro, é um formigueiro de gente que acorre de todos os lados, se tudo isto veio para trabalhar, então mordo a língua, falei antes do tempo. O rapazito já os deixou, foi ao serviço, acarretar cochos de cal, e os dois homens atravessam o terreiro para a banda da esquerda, vão à vedoria, dirá Álvaro Diogo que este aqui é meu cunhado, natural e morador em Mafra, que em Lisboa viveu muitos anos, mas agora voltou de vez à casa de seu pai, e quer trabalho, não que sirvam de muito recomendações, mas enfim, Álvaro Diogo está cá desde a primitiva, é operário capaz e cumpridor, uma

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palavrita sempre conforta. Baltasar abre a boca de espanto, vem duma aldeia e entra numa cidade, bem está que Lisboa seja o que é, […] aquela desmedida e confusão, porém, este ajuntamento enorme de telheiros e casas de muitos e variados tamanhos, é coisa que só vendo ao perto se acredita.

(MC: 211-212)

A importância desta visão de Baltasar sobre um espaço que lhe é familiar, mas que vê agora substancialmente alterado, reveste-se de grande significado na linha do que pretendemos confirmar neste capítulo. Por um lado, temos toda a alteração do espaço físico que é notória, decorrente de uma construção gigantesca que se estende pelo tempo. Por outro lado, temos o espaço humano também alterado: a azáfama dos trabalhadores que parecem formigas, a pluralidade de ofícios em laboração, a movimentação permanente dos homens, fazem experimentar em Baltasar uma sensação de perplexidade e de espanto, porquanto era inimaginável que viesse a encontrar um quadro assim na sua terra. Há, no entanto, um aspeto determinante na exposição deste cenário laboral. Trata-se do facto de se mostrar que a grande obra de construção está a ser erguida pela mão dos trabalhadores. É curioso que não seja feita qualquer alusão à figura do rei como mentor da construção e que toda a atenção se centre nos trabalhadores. Prosseguindo os seus propósitos de reescrever as memórias da história, Saramago vai, sobretudo a partir daqui, pôr em evidência o papel determinante do homem comum na construção das grandes obras que perduram. Tal evidência torna-se mais marcante quando nos lembramos que o rei, mesmo antes de ter feito a promessa de mandar construir um convento caso a rainha engravidasse, já se entretinha brincando com uma construção em miniatura da basílica de São Pedro, ficando, pois, a ideia de que, para o rei, edificar um convento seria feito com a mesma facilidade com que montava as pequenas peças já ajustadas nos seus encaixes. Ora, os homens, para fazerem crescer o convento, precisam de esforço, do qual o rei parece não ter a mínima consciência. De norte a sul do país, os mesmos homens de trabalho canalizam as suas forças para tornar possível a concretização de um sonho do rei. Atrevemo-nos a mais uma transcrição do texto, que parece complementar a visão que Baltasar teve quando foi confrontado com as obras junto ao convento. Desta vez, é o narrador

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que nos fornece uma perspetiva do envolvimento de todo o reino nestes trabalhos, reforçando, em jeito de síntese, o que tem vindo a expor sobre o trabalho dos homens.

Terra solta, pedrisco, calhau que a pólvora ou o alvião arrancaram ao pedernal profundo, esse pouco o transportam por mão de homem os carrinhos, enchendo o vale com o que se vai arrasando do monte ou extraindo dos novos caboucos. Para o entulho de maior porte andam os carros grandes, chapeados de ferro, que os bois e as bestas puxam sem mais pausa que o carregar e descarregar. Aos andaimes, pelas travejadas rampas de madeira, sobem homens as pedras suspensas do jugo que sobre os ombros e a nuca lhes assenta, para sempre seja louvado quem inventou o chinguiço, alguém a quem lhe doía. São trabalhos já ditos, mas que facilmente se recapitulam por serem de força bruta, porém, é causa da sua recapitulação não consentir que esqueçamos o que, por tão comum e de tão mínima arte, se costuma olhar sem mais consideração que distraidamente vermos os nossos próprios dedos escrevendo […].

(MC: 240)

E mesmo antes de se centrar em particular sobre algumas personagens, cujos destinos foram trágicos em virtude do seu trabalho no convento, o narrador fornece-nos uma visão aérea sobre o espaço, que complementa esta ideia de que todo o reino se encontra envolvido na obra.

[…] Mafra, o passeado monte, o conhecido vale, a Ilha da Madeira que as estações escureceram de chuva e sol, e alguns tabuados apodrecem já, o derrubamento das árvores no pinhal de Leiria e nos termos de Torres Vedras e Lisboa, os fumos diurnos e noturnos dos fornos de tijolo e cal que entre Mafra e Cascais são centenas, os barcos que outros tijolos trazem do algarve e de Entre-Douro-e-Minho e os vão descarregar, Tejo adentro, por um canal aberto a braço, ao cais de Santo António do Tojal, os carros que de Monte Achique e Pinheiro de Loures trazem estas e outras matérias ao convento de sua majestade, e aqueles outros que carregam as pedras de Pêro Pinheiro.

(MC: 239-240)

O espaço de Mafra vai ser, pois, dedicado às gentes que trabalham na construção do convento. Delas conhecemos as famílias, as histórias, as desgraças, enfim, as vidas humildes que contrastam com a opulência e o fausto da vida na corte. Nesta dimensão humana que se sobrepõe ao espaço físico, parece oportuno deslocar o nosso olhar para a vida simples daqueles que trabalham na edificação do convento. Impossível não referir um espaço particular, a Ilha da Madeira, espécie de bairro construído de madeira (umas quinhentas barracas, o que, comparativamente às cinquenta casas da vila de Mafra, permite imaginar a

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dimensão enorme desse bairro), para albergar os trabalhadores que vinham, quase sempre forçados, das mais diversas regiões do país. Esta gente anónima -

homo faber, cuja epopeia vai ser narrada pelas atividades que desenvolve na

construção, constitui, como sabemos, um das principais motivações do escritor para a escrita do romance em questão.

Sabia já Baltasar que o sítio onde se encontrava era conhecido por Ilha da Madeira, e bem posto lhe fora, porque, tirando umas poucas casas de pedra e cal, todo o mais era de tabuado, mas construído para durar. Havia oficinas de ferreiros, […] e outras artes […], mais tarde se juntarão as dos latoeiros, dos vidraceiros, e quantas mais. Muitas das casas de madeira tinham sobrados, em baixo acomodavam-se as bestas e os bois, em cima as pessoas de muita ou alguma distinção, os mestres da obra, os matriculadores e outros senhores da vedoria-geral, e oficiais da guerra que governavam os soldados. A esta hora da manhã estavam saindo das lojas os bois e as mulas, outros teriam sido levados mais cedo, o chão empapava-se de urina e excrementos […].

(MC: 213)

A descrição da Ilha é complementada com a indicação de que em cada uma das barracas dormem cerca de duzentos homens, um número excessivamente elevado, que deixa antever as más condições a que são sujeitos os trabalhadores. Saramago tenta mostrar, de uma forma muito realista, que os trabalhadores são pessoas, que deixaram o seu espaço de residência e as suas famílias para, obrigados, virem participar das obras do convento. São pessoas que têm histórias de vida, as quais vão dando a conhecer nos serões, quando se reúnem para falar de si e das suas terras. Em Mafra, contava-se, na altura, entre as dificuldades encontradas, as privações de mulheres. Perante essa realidade, os trabalhadores procuram satisfazer-se da forma que lhes é possível, recorrendo a prostitutas. A seguir à Ilha, fica o campo militar, onde milhares de militares se instalam em tendas, colaborando no rebentamento de pedra ou na manutenção da ordem. E há ainda uma “fiada de casas de pasto, barracões quase tão grandes como os dormitórios, com mesas e bancos compridos, fixados ao chão, e compridos mostradores” (MC: 215), onde, por volta do meio-dia, hora do jantar (a refeição equivalente ao almoço do tempo atual), os trabalhadores, sujos e barulhentos, tomam a refeição. Se nos debruçamos sobre estes pequenos detalhes, é porque o autor faz questão de no-los fornecer ao pormenor, de modo a que seja possível caraterizar com precisão aquele espaço envolvente do

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convento, com a massa humana que o povoa. É um vastíssimo conjunto de gente anónima, que vai precisar de ser nomeada para que seja resgatada do esquecimento a que foi votada durante séculos. Reescrever a história é, desta forma, conseguido.

[…] tudo quanto é nome de homem vai aqui, tudo quanto é vida também, sobretudo se atribulada, principalmente se miserável, já que não podemos falar-lhes das vidas, por tantas serem, ao menos deixemos os nomes escritos, é essa a nossa obrigação, só por isso escrevemos, torná-los imortais, pois aí ficam, se de nós depende, Alcino, Brás, Cristóvão, Daniel, Egas, Firmino, Geraldo, Horácio, Isidro, Juvino, Luís, Marcolino, Nicanor, Onofre, Paulo, Quitério, Rufino, Sebastião, Tadeu, Ubaldo, Valério, Xavier, Zacarias, uma letra de cada um para ficarem todos representados.

(MC: 242)

A homenagem a estes homens estende-se para além de Mafra e dirige-se, conforme nos diz o narrador, a todos os que, de futuro, executem empresas do género e se vejam ignorados pela história. Assim se cumpre o propósito do escritor e assim toma o leitor consciência da necessidade de se manter mais atento ao mundo à sua volta.