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1. As pequenas memórias

1.2. O espaço urbano

Em Lisboa, poder-se-á subdividir em dois o espaço físico das memórias mais recuadas do escritor: por um lado, o grande espaço da cidade, que conhece pelos diferentes lugares onde viveu ou o que percorre nas suas idas para a escola; por outro, o espaço da intimidade, da casa, tão importante na construção da afetividade – e nisso tão parecido com o da casa dos avós na Azinhaga -, mesmo se o ambiente familiar é merecedor de algumas críticas, mercê do comportamento do seu pai.

Comecemos pelo espaço aberto da cidade, pela rua, onde, depois das aulas, ocorriam as “batalhas à pedrada que por felicidade nunca chegaram a fazer sangue nem lágrimas, mas em que se não poupava o suor” (PM: 105), ou onde o autor viveu momentos de atrapalhação, humilhação e dor, como quando caiu na avenida Casal Ribeiro e se viu “a chorar por causa das dores no joelho, mas também por causa da humilhação que tinha sido cair aos pés de uma pessoa que não havia feito o menor gesto para […] [o] ajudar a levantar” (PM: 69), ou, pior

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Tradução livre do autor: “narrativa retrospetiva em prosa que alguém faz sobre a sua própria existência, quando coloca o foco principal sobre a sua vida individual, especialmente sobre a história da sua personalidade”. (Lejeune, 2010: 12)

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ainda, quando, bem pequeno, é vítima de uma tortura por parte de rapazes mais velhos, recordada nestes termos:

Um pouco afastado de casa [...] havia um monte de caliça abandonado de alguma obra. À força, […] três ou quatro rapazes crescidos levaram-me para lá. Empurraram- me, atiraram-me ao chão, despiram-me os calções e as cuecas e introduziram-me um arame na uretra.[…] Talvez o sangue abundante que começou a sair do meu pequeno e martirizado pénis me tenha salvo do pior.

(PM: 121-122)

Do espaço da cidade guarda também o autor memória dos cinemas: o Salão de Lisboa (a que chamavam o Piolho), mais tarde o Salão Oriente e o Royal Cine; as histórias horripilantes ali visualizadas e as invenções de outras histórias a partir dos cartazes expostos, as quais narrava, depois, aos colegas, terão constituído um treino iniciático na arte de criar situações e personagens, que a sua produção escrita, ao nível sobretudo do romance, vem, no futuro, confirmar. “Um pouco invejosos, os companheiros ouviam-me com toda a atenção, faziam de vez em quando perguntas para aclarar alguma passagem duvidosa” (PM: 112).

Para a construção do homem em que se tornou Saramago teve também influência um outro espaço ao qual o autor dedica alguma atenção durante As

pequenas memórias: a escola. Desde a memória da escola particular onde

aprendeu as primeiras letras até à escola industrial de onde saiu serralheiro mecânico, dos colegas ao professor Vairinho, cuja descrição demonstra a forma como a sua imagem ficou bem retida na memória do autor - “homem alto e magro, de rosto severo, que disfarçava a calvície puxando o cabelo de um dos lados e assentando-o com fixador” (PM: 101) -, até ao episódio da quebra do ponteiro da aula de mecânica, tudo é rememorado, transportando o leitor para aqueles anos da juventude do escritor e para aquele espaço da cidade de Lisboa de outros tempos.

Em Lisboa, as dificuldades de muitas famílias eram notórias e não eram diferentes as dificuldades económicas da família Saramago. O autor relata dois casos que delas dão conta. Um tem a ver com a penhora sazonal dos cobertores, a que a mãe se via obrigada:

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Para se ficar com uma ideia clara da situação, bastará dizer que durante anos, com absoluta regularidade sazonal, minha mãe ia levar os cobertores à casa de penhores quando o Inverno terminava, para só os resgatar, poupando tostão a tostão para poder pagar os juros todos os meses e o levantamento final, quando os primeiros frios começavam a apertar

(PM: 98)

O outro caso relatado que atesta igualmente as dificuldades tem a ver com as estratégias usadas para economizar na fatura da água, que eram as mais diversificadas, recuperando o autor uma artimanha, prática comum em muitos prédios da capital, para iludir a Companhia das Águas:

Com uma agulha fina fazia-se um furo na parte do cano de chumbo que se encontrava à vista e atava-se-lhe um trapo, ficando a outra parte dele pendurada para dentro do pote. Desta maneira, lentamente, gota a gota, ia-se enchendo o recipiente, e, como aquela água não passava pelo contador, o consumo não era registado. Quando o transvase terminava, isto é, quando o pote estava cheio, passava-se a lâmina de uma faca sobre o minúsculo orifício, e o próprio chumbo, assim repuxado, encobria o delito.

(PM: 116)

Os dois espaços axiais de As pequenas memórias são também importantes ao nível dos contactos humanos, que propiciam ao jovem Saramago o contacto com uma variedade considerável de pessoas com outras formas de vida, das quais colherá excelentes aprendizagens e não menos importantes modelos para os seus romances. Também aqui relevam as relações familiares, os pais, os avós e um primo, de quem são conhecidas mais caraterísticas do que sobre as demais figuras referenciadas, mesmo não sendo todas as outras desprezíveis na consolidação de uma personalidade em construção.

Não pretendendo aqui fazer uma análise detalhada do retrato que nos é dado dessas personagens reais, uma vez que não é esse o propósito deste estudo, parece, contudo, pertinente deixar algum registo nesta parte dedicada aos espaços da memória, uma vez que é o próprio autor que reconhece a força do ato de lembrar o que foi vivenciado:

Muitas vezes esquecemos o que gostaríamos de poder recordar, outras vezes, recorrentes, obsessivas, reagindo ao mínimo estímulo, vêm-nos do passado imagens,

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palavras soltas, fulgurância, iluminações, e não há explicações para elas, não as convocamos, mas elas aí estão.

(PM: 141)

Desse tempo da infância, vêm-lhe, pois, à memória, as imagens dos mais próximos da família, sendo a do irmão Francisco, que morreu aos quatro anos de idade (tinha o autor entre dois e três), a mais antiga que diz conseguir recuperar. Halbwachs diz que “a memória se enriquece de bens alheios” (Halbwachs, 2006: 70), pretendendo significar que, muitas vezes, a nossa memória se consolida com as lembranças de outros. É o caso da memória que o autor tem de Francisco - “Esta é, pois, a minha memória mais antiga. E talvez seja falsa” (PM: 121). Certamente lhe contaram como era e como se comportava, pois a tenra idade de Saramago não lhe permitia fixar pormenores. Por isso, fala do irmão, de si e da mãe, referindo-se à altura da morte dele, com algumas incertezas. Fisicamente recorda-o pelo retrato que dele ficou - “um rapazinho alegre, sólido, perfeito” (PM: 121); recorda como o irmão trepava acima dos móveis pelo que viu ou pelo que foi ouvindo contar; mas recorda, sem dúvida, as lágrimas no momento da sua morte: “Falsa, porém, não é a que vem agora. A dor e as lágrimas, se pudessem ser aqui chamadas, seriam testemunhas da violenta e feroz verdade. O Francisco já morreu” (PM: 121). A dor e a morte marcam, desta forma, o espaço mais recôndito das memórias de Saramago – espaço de negatividade que, pela intensidade com que ficou marcado, nunca virá a dissipar-se. Depois vem a figura da mãe, Maria da Piedade, com a lida da casa, o trabalho de lavar escadas para ajudar monetariamente a família, e a relação pouco afetuosa com o marido. Surge também a figura do pai, José de Sousa, de quem Saramago não parece ter guardado qualquer gesto de ternura: é um homem de temperamento frio, agressivo e rude, caraterizado, em parte, nesta passagem:

Não teria sido natural que meu pai, antes vulgar cavador de enxada e agora servidor público, agente policial de fresca data com uma cesta cheia de novidades para contar, se deixasse ficar por Lisboa durante os seus períodos de licença, quando o que lhe daria prestígio seria luzir-se perante antigos companheiros de trabalho, falando fino, ou pelo menos apurando o melhor que podia a dicção para não parecer demasiado provinciano, e, na intimidade da taberna, entre dois copos, regalá-los com histórias de gajas, alguma prostituta que pagava com o corpo uma certa proteção

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policial, mas isso nunca o confessaria ele, ou alguma vendedeira fácil do mercado da Praça da Figueira.

(PM: 79)

Também tios, tias e primos ocupam lugar na memória do autor, mas as personagens mais marcantes são, como anteriormente já ficou dito, o avô materno, Jerónimo, e a avó materna, Josefa. O vínculo afetivo com estes avós marcou de tal forma o autor que, no discurso proferido aquando da cerimónia de entrega do prémio Nobel, ele não omite a importância determinante que eles tiveram na sua formação de homem. Inteligência, dedicação, afetividade, humanismo e capacidade de sonhar são as principais caraterísticas que Saramago lhes reconhece e deles guarda na memória:

O homem mais sábio que conheci em toda a minha vida não sabia ler nem escrever. Às quatro da madrugada, quando a promessa de um novo dia ainda vinha em terras de França, levantava-se da enxerga e saía para o campo, levando ao pasto a meia dúzia de porcas de cuja fertilidade se alimentavam ele e a mulher.

[…] Enquanto o sono não chegava, a noite povoava-se com as histórias e os casos que o meu avô ia contando: lendas, aparições, assombros, episódios singulares, mortes antigas, zaragatas de pau e pedra, palavras de antepassados, um incansável rumor de memórias que me mantinha desperto, ao mesmo tempo que suavemente me acalentava. Nunca pude saber se ele se calava quando se apercebia de que eu tinha adormecido, ou se continuava a falar para não deixar em meio a resposta à pergunta que invariavelmente lhe fazia nas pausas mais demoradas que ele calculadamente metia no relato: "E depois?". Talvez repetisse as histórias para si próprio, quer fosse para não as esquecer, quer fosse para as enriquecer com peripécias novas. Naquela idade minha e naquele tempo de nós todos, nem será preciso dizer que eu imaginava que o meu avô Jerónimo era senhor de toda a ciência do mundo.

[…] Foi só muitos anos depois, quando o meu avô já se tinha ido deste mundo e eu era um homem feito, que vim a compreender que a avó, afinal, também acreditava em sonhos. Outra coisa não poderia significar que, estando ela sentada, uma noite, à porta da sua pobre casa, onde então vivia sozinha, a olhar as estrelas maiores e menores por cima da sua cabeça, tivesse dito estas palavras: "O mundo é tão bonito, e eu tenho tanta pena de morrer". Não disse medo de morrer, disse pena de morrer, como se a vida de pesado e contínuo trabalho que tinha sido a sua estivesse, naquele momento quase final, a receber a graça de uma suprema e derradeira despedida, a consolação da beleza revelada.

(Saramago, 1999)

Transcrevemos esta longa passagem de As pequenas memórias, porque, para além da beleza literária que encerra, ela mostra, muito claramente, de que forma aquelas figuras dos avós constituem, para o escritor, um pilar mestre na sua

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formação de homem. No primeiro excerto, Saramago valoriza o conhecimento, não como conhecimento académico de que o avô não poderia dispor em abundância, mas enquanto sabedoria construída com o tempo e as agruras da vida, que levam a um respeito pela mesma vida e pelo próximo; no segundo excerto, valoriza a imaginação fantasiada do avô, contador de histórias, que terá estado na base da sua própria imaginação e criatividade de escritor; no terceiro excerto, é referida a admiração pela avó, o amor que esta tem à vida, mesmo quando vivida em simplicidade e grande pobreza – mas é também referido o sonho, a bênção que vem de cima, o que, metaforicamente, pode remeter para um espaço de harmonia possível (de utopia, como o nomeamos neste estudo), que seja corolário da vida de pesado e contínuo esforço.

O espaço da memória dos tempos idos projeta-se, através da figura dos avós, na existência do homem e do escritor Saramago – e este sente-se honrado e privilegiado por ter podido colher daquele espaço da infância toda a riqueza humana que ali lhe foi proporcionada.