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CAPÍTULO 1: A INDÚSTRIA DE BIODIESEL

1.8. Conclusões do Capítulo

A descrição técnica e histórica da indústria de biodiesel realizada nesse primeiro capítulo permite chegar a algumas conclusões que serão fundamentais para a análise da política brasileira de difusão do biodiesel, apresentada nos capítulos seguintes da Tese.

Em primeiro lugar, a produção de matérias-primas na atividade agropecuária é a principal diferença técnica entre o biodiesel e o petrodiesel. A substituição de matérias-primas minerais pelas agrícolas proporcionada pela produção e consumo do biodiesel é o que sustenta muitos dos argumentos favoráveis às políticas públicas de promoção do biodiesel, incluindo características positivas como a renovabilidade (“o petróleo que se planta”), a descentralização da matriz energética (“um poço de petróleo em cada propriedade”), ganhos ambientais decorrentes do ciclo fechado de CO2 estabelecido na

produção e consumo (“o combustível verde”) e geração de empregos agrícolas (“o combustível social”). Por outro lado, a produção agropecuária é responsável por muitos dos argumentos desfavoráveis a essas políticas: problemas ambientais e sociais típicos da agropecuária em larga escala (“monoculturas agroenergéticas”), competição com a

produção de alimentos e elevação dos preços das commodities agrícolas (“alimentos versus energia”).

Analisando-se pormenorizadamente as matérias-primas mais utilizadas para a produção de biodiesel percebe-se que uma série de fatores incorre para suas vantagens e desvantagens. Esses fatores incluem o tamanho e organização dos mercados de cada matéria-prima, os co-produtos gerados, as possibilidades de plantio consorciado e/ou em sistemas de rotação de culturas, o domínio das tecnologias de cultivo, a aptidão a diferentes condições de clima e solo, a produtividade em óleo ou gordura e as características físico-químicas próprias de cada óleo e gordura e suas implicações no processamento e especificações do biodiesel (Quadro 1.9.). Além disso, as características sociais e econômicas particulares dos diferentes produtores de matérias-primas cria um quebra-cabeças que desafia os gestores do Programa brasileiro e exige a análise das múltiplas variáveis envolvidas na definição da viabilidade de políticas públicas de estímulo à produção de matérias-primas específicas. Essa constatação evidencia o simplismo de propostas de política baseadas em critérios únicos como o teor de óleo das matérias- primas ou a intensidade de mão-de-obra nas lavouras.

Quadro 1.9. Características das matérias-primas para a produção de biodiesel Matéria-Prima Características agronômicas Produtividade

em óleo

(kg/ha)

Propriedades do biodiesel

Soja Temporária, ciclo curto, óleo é um sub-produto, mercado organizado

560 nd

Palma Permanente, ciclo longo, óleo é o produto principal, mercado organizado

4.000 Viscoso, resistente à oxidação, alto ponto de congelamento

Mamona Temporária, ciclo curto, óleo é o produto principal, mercado pequeno

1.000 Extremamente viscoso, solúvel em álcool

Algodão Temporária, ciclo curto, óleo é um sub-produto, mercado organizado

361 nd

Girassol Temporária, ciclo curto, óleo é o produto principal, mercado organizado

774 nd

Canola Temporária, ciclo curto, óleo é o produto principal, mercado organizado

880 Adequado às especificações européias

Pinhão-Manso Permanente, ciclo longo, óleo é o produto principal, muito pouco conhecida

3.000 a 4.000 nd

Gorduras animais

Subproduto da pecuária, mercado existente mas pequeno

75 kg/carcaça Viscoso, resistente à oxidação, alto ponto de congelamento

Óleos residuais Resíduo de ourtas indústrias, pequeno mercado, dificuldades logísticas

n.d. Ácido e viscoso Microalgas Experimental 58.900 a 136.900 litros/ha (estimativas) n.d.

Fonte: Elaboração própria nd: informação não disponível

A descrição do processos de produção de biodiesel mostra claramente que existe um dominant design (SUÁREZ E UTTERBACK, 1995) estabelecido para a produção do biodiesel: a transesterificação utilizando metanol. Outras rotas de processo, especialmente a rota etílica e o craqueamento ocupam espaços ou nichos, sendo em geral restritas a pequenas e médias usinas.

Uma importante implicação da disseminação dos processos de transesterificação em escala suficiente para abastecer parcialmente o mercado de petrodiesel é o aumento substancial na demanda de álcool (metanol ou etanol anidro) consumido no processo e, por outro lado, a imensa quantidade de glicerina bruta gerada como sub-produto. O

impacto sobre esses mercados deve ser objeto de atenção das políticas públicas de difusão do produto, especialmente no caso do Brasil, país exportador de etanol e importador de metanol. No capítulo 3 será mostrado que o Brasil, mesmo com oferta abundante de etanol e sendo importador de metanol, adota predominantemente a rota metílica, usada por praticamente todas as grandes usinas brasileiras. Com relação à glicerina, é importante que exista algum controle sobre a destinação do excedente que será colocado no mercado, garantindo que esse excedente não se transforme em um problema ambiental.

A área de caracterização e controle de qualidade se revelou fundamental para que a inserção do biodiesel nos sistemas energéticos ocorra sem causar prejuízos aos consumidores e ao meio ambiente. Também indicou que as especificações dobiodiesel podem limitar as possibilidades de exportação do produto, uma vez que os países adotam especificações em geral relacionadas às matérias-primas mais usadas na produção local. Nesse sentido, a especificação do biodiesel torna-se um assunto de comércio internacional.

A adequação da logística de transporte e distribuição do produto é um dos fatores que facilita sua adoção como alternativa ao Petrodiesel. Não obstante, essa área apresenta obstáculos como a rápida degradação do biodiesel e os custos superiores de armazenamento e de transporte, exclusivamente realizado por veículos-tanque. Essa modalidade de transporte é extremamente impactante, e seu incremento com a produção do biodiesel sugere a desejabilidade da produção descentralizada e do consumo local. As aplicações do biodiesel em termos de uso final são principalmente o uso veicular e a geração de energia em geradores a diesel adaptados. O uso de geração com o biodiesel é especialmente interessante em localidades isoladas e como back up para grandes consumidores industriais e comerciais. As vantagens e desvantagens do biodiesel para o uso veicular (Quadro 1.10) são fatores que explicam os aspectos favoráveis e desfavoráveis à entrada do produto no mercado. As vantagens técnicas do biodiesel são aqui entendidas como saliências reversas do sistema tecnológico do biodiesel (HUGHES, 1989). Por outro lado, as vantagens ambientais e sociais decorrentes do uso do novo

combustível lhe dão momentum para estabelecer-se no sistema dominado pelo petrodiesel.

Quadro 1.10. Biodiesel e Petrodiesel, características

Etapa da cadeia produtiva Biodiesel Petrodiesel

Produção de matérias- primas

Possibilidade de produção descentralizada; renovabilidade.

Produção centralizada; não- renovabilidade

Processamento Alto consumo de água; menor eficiência energética; menor escala de produção.

Menor consumo de água; maior eficiência energética; maior escala de produção.

Transporte e

armazenamento

Maior segurança; dregrabilidade mais rápida; maiores custos (veículos-tanque).

Menor segurança; menor degrabilidade; menores custos (dutos).

Uso final Menor emissão de poluentes (exceto NOx); maior viscosidade e acidez; menor poder calorífico; maior octanagem (queima mais completa); desconhecimento sobre os efeitos sobre a saúde humana pouco conhecidos.

Maior emissão de poluentes; menor viscosidade e acidez; maior poder calorífico; menor octanagem (queima menos completa); efeitos das emissões sobre a saúde humana bem estudados.

Fonte: Elaboração própria a partir da bibliografia consultada

Entendendo-se o sistema tecnológico formado em torno do biodiesel como um sistema que compete com o sistema do petrodiesel, as vantagens do segundo ficam evidentes devido ao lock in tecnológico criado pelas estruturas de produção e consumo de petrocombustíveis. Além desses problemas de ordem técnica, as redes técnico- econômicas formadas em torno da produção e consumo de petrocombustíveis apresentam maior convergência e irreversibilidade do que as redes formadas em torno das alternativas, cuja formação foi em geral motivada pelo surgimento de fatores emergenciais que exigiam a diversificação de matérias-primas para os biocombustíveis, especialmente devido à ocorrência de guerras e outros eventos extraordinários. Contudo, as características de irreversibilidade e cumulatividade das trajetórias tecnológicas aparecem claramente nas barreiras que essa trajetória coloca à inserção de alternativas.

A história da indústria do biodiesel mostra que essa indústria é uma trajetória tecnológica alternativa à trajetória baseada em petróleo, tendo ocorrido em diversos momentos esforços coordenados visando a sua introdução em sistemas energéticos dominados pelas matérias-primas minerais. O sistema energético baseado no petróleo apresenta grande capacidade para superar saliências reversas (HUGHES, 1989), sejam estas

problemas técnicos, econômicos ou políticos, evidenciando-se um fenômeno de lock in tecnológico (David, 1985; Arthur, 1989) no uso de petróleo como matéria-prima (UNRUH E CARRILLO-HERMOSILLA, 2006). O lock in ampara-se em estruturas de produção e consumo consolidadas através da acumulação de tecnologias incorporadas (bens de capital) e desincorporadas (conhecimento de produtores e usuários), bem como da aquisição de poder político. A modificação dessas estruturas é a grande barreira que sempre esteve colocada para a adoção do biodiesel: fatores como a incompatibilidade de dispositivos de uso final, resistência de produtores de veículos e pouca influência sobre a política energética são alguns dos entraves colocados à difusão do biodiesel.

Abordar as indústrias de petróleo e biodiesel como redes técnico-econômicas (CALLON, 1992) formadas por atores heterogêneos é uma forma de elucidar as causas do lock in no petrodiesel, de maneira semelhante à abordagem de sistemas tecnológicos de Hughes (1989). As redes que objetivam difundir a produção e uso de petrocombustíveis são evidentemente mais convergentes e menos reversíveis do que as redes formadas em torno do biodiesel. Diferenças de convergência revelam vantagens da indústria do petróleo, como maior conhecimento técnico, regras formais consolidadas, estrutura industrial bem definida, adaptação dos dispositivos de uso final, entre outros fatores que fazem com que o comportamento dos atores envolvidos na rede formada em torno do petróleo tenha um comportamento mais previsível.

Dentre as alternativas consideradas para o transporte, como os veículos elétricos, as políticas de difusão de biocombustíveis têm a seu favor a possibilidade de mudança sem alterações radicais nas tecnologias de transporte e de uso final, e sem implicar em mudanças nos hábitos dos consumidores que seriam exigidas por políticas radicais de eficiência energética. Além disso, o biodiesel tem a vantagem da possibilidade de produção a partir de qualquer oleaginosa regional, além do apoio político em geral recebido por medidas de apoio ao setor agrícola, setor com grande habilidade de defesa de seus interesses. A esses fatores soma-se a institucionalização das ações motivadas por razões ambientais que limitam a produção e o consumo de combustíveis fósseis, criando um contexto favorável ao lançamento de políticas de inserção do biodiesel, que serão discutidas detalhe no capítulo 2.

Este capítulo com a descrição de aspectos técnicos e históricos, ainda que esclareça diversos pontos relacionados às políticas de difusão do biodiesel, não permite ainda uma análise crítica do PNPB, concebido para difundir este combustível sob condições naturais, sociais, econômicas e tecnológicas específicas. A definição dessa política e do formato da indústria brasileira de biodiesel ocorreu através de negociações internas em uma rede de política que congrega todos os atores participantes, que pressionam o rumo do programa em função de seus interesses muitas vezes assimétricos e não aderentes às melhores práticas prescritas pelo conhecimento técnico. Tal conflito é o tema do capítulo seguinte, que analisa a lógica da definição de políticas públicas de energia, focando a dimensão política das decisões que criaram as principais diretrizes do PNPB.

CAPÍTULO 2: POLÍTICAS PÚBLICAS DE INTERVENÇÃO EM SISTEMAS