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CAPÍTULO 2: POLÍTICAS PÚBLICAS DE INTERVENÇÃO EM SISTEMAS

2.1. Políticas Públicas de Inserção de Biocombustíveis: uma Revisão Crítica da sua

Desde o início dos anos 90 diversos países vêm retomando políticas semelhantes às adotadas na época do Primeiro Choque do Petróleo, voltadas à diversificação45 de fontes de energia, visando reduzir emissões de poluentes, desenvolver fontes domésticas que garantam a autonomia energética nacional e a dinamizar seus setores agroindustriais. Na maior parte dos casos a diversificação visa diminuir a participação dos combustíveis fósseis (principalmente carvão e petróleo) no consumo total de insumos energéticos, “descarbonizando” a matriz energética (GRÜBLER E NAKICENOVIK, 1996). Entre as opções disponíveis, a produção e consumo de biocombustíveis é objeto de diversas políticas devido a seu apelo social, viabilidade política, aspectos ambientais positivos, possibilidade de produção descentralizada e similaridade aos petrocombustíveis:

What is attractive about biofuels to many actors is that low-level blends, such as E5 and B5, are able to utilize the existing distribution systems of the oil industry. Furthermore, many types of conventional vehicles are compatible with low-level blends. So the transition to low-level blending of biofuels with petrol and diesel is almost unrecognised by vehicle users. The dominant technological system in which oil companies and automobile manufacturers operate is therefore able to

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Além da diversificação das fontes, um grupo de políticas bastante importante visa a racionalização no uso de energia, considerada por Nogueira (2007) uma “fonte energética oculta”.

adapt to the introduction of biofuels with few difficulties (Bomb et al., 2007, p.2.263).

Apesar de mais viáveis do que mudanças radicais na infra-estrutura energética, a substituição dos petrocombustíveis por biocombustíveis depende de medidas de suporte do governo, devido à diferença de preços que favorece os combustíveis de petróleo. Justificadas pela defesa do interesse público, as intervenções baseiam-se na concepção neoclássica de que o Estado atua como maximizador do bem estar social através da correção de falhas de mercado, gerando capacitações e diminuindo incertezas. Esse papel inclui tomar medidas para viabilizar a inserção sustentada da produção e consumo de biocombustíveis em sistemas energéticos dominados por combustíveis fósseis (RAJAGOPAL E ZILBERMAN, 2007).

Duas seriam as principais falhas de mercado corrigidas por essas políticas. Em primeiro lugar, os custos sociais e ambientais decorrentes da produção e uso de combustíveis fósseis, socializados e não internalizados em seus preços. Em segundo lugar, o monopólio detido por esses combustíveis nos mercados de energia, que impedem a inserção de alternativas de menor custo social e ambiental.

O benefício social gerado pelas políticas justificaria, portanto, gastos do governo em subsídios às novas indústrias e mesmo aumentos nos preços para os consumidores, que seriam a materialização monetária de externalidades sociais e ambientais não consideradas nos custos da energia fornecida pelos sistemas energéticos vigentes. Mais ainda, as políticas de inserção dos biocombustíveis consideram que os custos adicionais das novas tecnologias tenderiam a diminuir como efeito do aprendizado na produção e uso das novas tecnologias, sendo necessário um estímulo inicial do Governo para seu desenvolvimento, tanto pelo lado da oferta (technology push), promovendo o aprendizado na produção e uso das novas tecnologias via estímulo à P&D, como pelo lado da demanda (demand pull) garantindo a inserção das novas tecnologias no mercado, essencial para o aprendizado, através de intervenções nos mercados de energia (NEMET, 2008).

Assim, o subsídio inicial às indústrias de biodiesel daria condições para que essa indústria se beneficiasse de retornos crescentes de adoção (ARTHUR, 1989) gerados por ganhos

de aprendizado em toda a cadeia produtiva decorrentes da exposição ao mercado (produção, consumo e atividades correlatas como regulação). Dessa maneira, a indústria de biodiesel poderia adquirir características de preço e funcionalidade que garantiriam sua adoção sem subsídios, eliminando obstáculos e conferindo momentum a um sistema tecnológico (HUGHES, 1989) cujo construtor central seria o Estado.

A transformação positiva dos mercados de energia induzida pelo Estado através de políticas de demand pull e technology push, gerando ciclos virtuosos de aprendizado, ocorreria através da indução à formação de sistemas setoriais de inovação (MALERBA, 2002) em torno de novas tecnologias de biocombustíveis. Esses sistemas setoriais incluem diversos componentes com funções específicas (Hekkert et al., 2007; Bergek et al., 2008). As intervenções através de políticas públicas46 atuariam induzindo os atores a executarem as diversas funções necessárias à criação e sustentação dos sistemas de inovação dos biocombustíveis: desenvolvimento e difusão do conhecimento; capacidade de influenciar a direção das buscas de novas tecnologias; promoção de empreendimentos experimentais; formação de mercados; mobilização de recursos humanos e financeiros; legitimação da nova tecnologia; geração de externalidades positivas (Bergek et al., 2008). Dessa maneira, considera-se que as políticas públicas são instrumentos efetivos na modificação do ambiente de seleção (NELSON E WINTER, 1977) de tecnologias de combustíveis para motores diesel, criando condições favoráveis à inserção da trajetória tecnológica do biodiesel. Essas condições incluem a modificação de fatores econômicos, institucionais e sociais que favorecem o lock in no petrodiesel.

Sem a pretensão de esgotar o assunto, três objeções podem ser feitas à concepção do Estado como corretor de falhas dos mercados de energia através da construção de sistemas de inovação. Em primeiro lugar, a concepção de que o Estado ou qualquer outra entidade seja capaz de corrigir tais falhas é bastante irrealista: tais falhas são características essenciais da economia de mercado, não sendo plausível conceber que o Estado possa corrigir tais imperfeições (SILVA, 2009). A segunda objeção deriva diretamente da primeira: a suposição de que o Estado detém a priori o conhecimento das

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Um diagnóstico e recomendações de política para os sistemas de inovação de energias renováveis na Inglaterra está em Foxon et al. (2005).

variáveis envolvidas na política, podendo antecipar seus resultados, desconsidera que a característica integrante de qualquer política pública é a presença de resultados imprevistos. Em terceiro lugar, o Estado está longe da neutralidade na definição de políticas de intervenção, em geral construídas a partir da negociação entre grupos de interesse que por definição não estão interessados no equilíbrio do mercado, mas sim na apropriação de possíveis benefícios da política. As assimetrias entre os interesses desses atores e os seus efeitos na implementação da política geram um fator adicional de incerteza sobre os resultados de políticas de intervenção.

Creating new technological systems requires resources, and many such systems exist because of the massive application of public resources. Governments influence energy technologies through, among other things, a vast array of subsidies and regulations. Not surprisingly, advocates of particular energy technologies have often tried to further their goals by promoting supportive government policies. However, while policies influence the evolution of new technologies, they do not determine, except in rare cases, the exact designs and configurations of the technological systems that emerge. Indeed, policy may even misfire entirely [...] Nonetheless, one cannot ignore the relationship between technology and government policies that put into place both powerful opportunities and significant constraints. (Laird, 2003, p.28)

[...] a perspectiva centrada nas falhas de mercado não necessariamente recomenda a realização de intervenções corretivas. Para entendê-lo convém lembrar, antes de mais nada, as dificuldades técnicas a serem enfrentadas na avaliação, tanto dos desvios, quanto do necessário à sua compensação. Por outro lado, existem também problemas inerentes à ação pública, ou, melhor dito, à gestão do interesse coletivo. Assim, por exemplo, podem ocorrer fenômenos conhecidos como “captura” de órgãos públicos por parte de interesses privados. Haveria também que reconhecer a miopia usual (curto- prazismo) da ação política, e as possibilidades de clientelismo, nepotismo, etc. Numa palavra, é necessário ter em conta as possíveis “falhas de governo”. (Castro, 2002, p.255).

Essas observações sobre as falhas inerentes às políticas públicas não têm a intenção de recomendar uma situação de “laissez faire, laissez aller, laissez passer” nos mercados de energia. Considerando-se a intervenção estatal fundamental, a recomendação aqui proposta é que o desenho e implementação top down de políticas de intervenção em sistemas energéticos seja aprimorada com a adoção de um enfoque bottom up, em que sejam conhecidos e ouvidos os diversos atores interessados na implementação dessas políticas (ASTRAND et al., 2005). A busca do conhecimento mais abrangente do sistema de inovação é fundamental para o sucesso de tais intervenções:

Both science and policy community recognize ever increasingly that technological change and its resulting innovations are best understood as the outcome of innovation systems. The concept of ‘innovation systems’ is a heuristic attempt, developed to analyse all societal subsystems, actors, and institutions contributing in one way or the other, directly or indirectly, intentionally or not, to the emergence or production of innovation. If we knew what kind of activities foster or hamper innovation–thus, how innovation systems ‘function’– we would be able to intentionally shape innovation processes (Hekkert et al., 2007, p.414).

As políticas de inserção dos biocombustíveis geralmente combinam instrumentos de intervenção direta no mercado de biocombustíveis, como incentivos fiscais, uso obrigatório e financiamentos para capital e P&D, com políticas indiretas de intervenção em outros mercados, principalmente incentivos para as atividades agrícolas (RAJAGOPAL E ZILBERMAN, 2007). O quadro a seguir lista os instrumentos de política mais utilizados.

Quadro 2.1. Instrumentos de política voltados à criação de mercados de biocombustíveis Segmento da indústria/tipo de instrumento Comando e controle Econômicos Incentivo à colaboração Comunicação e difusão

Matérias primas Regulação agropecuária; regulação da destinação de resíduos utilizáveis como matéria- prima Subsídios diretos à produção; políticas de preços mínimos; financiamento à P&D e à demonstração de novas lavouras Criação de redes de fornecedores de matérias- primas e processadoras; regulação de contratos; certificação da produção Informação para produtores agrícolas; campanhas para coleta de resíduos Processamento Controle de qualidade; quotas de produção; regulação de importações Subsídios diretos; financiamento; incentivos fiscais; financiamento da P&D e demonstração de novos processos Criação de redes de agricultores, e processadoras e distribuidoras de combustível; certificação da produção - Distribuição Controle de qualidade; permissão de uso específico; uso obrigatório de misturas Subsídios diretos à adaptação de estruturas; isenções fiscais; financiamento Criação de redes de agricultores, processadoras e distribuidoras de combustível Campanhas de informação técnica entre os distribuidores Fabricantes de motores Obrigatoriedade da adaptação dos motores e das especificações dos petrocombustíveis Subsídios para a compra de motores adaptados; dinanciamento de P&D e demonstração Criação de redes de fabricantes de motores e produtores de biocombustíveis; -

Mercado Uso obrigatório em

frotas (por exemplo, governo); permissão de tráfego em zonas com restrições ao tráfego de veículos; Isenções fiscais; subsídios para a compra de motores; financiamento de demonstação em frotas; compras governamentais de veículos “verdes”; Estímulo ao uso em frotas; treinamento de pessoal técnico relacionado a assitência técnica em motores Campanhas de divulgação dos benefícios dos biocombustíveis

Fonte: Adaptado a partir de Pelkmans et al. (2008)

A efetividade dos incentivos fiscais, instrumento mais utilizado para a inserção dos biocombustíveis no mercado, está diretamente relacionada aos preços da energia. Em períodos de baixos preços do petróleo os subsídios oferecidos aos produtores de biocombustíveis podem ser insuficientes para viabilizar preços atrativos aos consumidores (RAJAGOPAL E ZILBERMAN, 2007), além de ocasionar perda de arrecadação, riscos de compensação excessiva a produtores e exigir o monitoramento do mercado e a fixação de quotas de biocombustíveis a serem beneficiadas pelos incentivos para evitar o excesso de

compensações (Thuijl e Deurwaarder, 2006; Comission of the European Communities, 2009). Por outro lado, a fácil implementação de incentivos fiscais torna essa opção de política a mais adequada para a introdução de biocombustíveis no mercado; além disso, no caso da taxação de combustíveis fósseis isentando os biocombustíveis, estimula-se a conservação de energia. Em termos distributivos, os incentivos fiscais tendem a aumentar a renda dos produtores, não impactam a renda dos consumidores e diminuem as receitas do governo (RAJAGOPAL E ZILBERMAN, 2007).

O uso obrigatório de biocombustíveis é considerado uma medida mais adequada para mercados onde a produção do biocombustível já existe. Tem como vantagens a segurança para os investidores, garantindo o chamado mercado “firme”. As desvantagens do uso obrigatório são os aumentos nos preços da energia e a dificuldade de implementação e monitoramento. Em termos de distribuição de benefícios, beneficia produtores, penaliza consumidores e não afeta as receitas do governo (RAJAGOPAL E ZILBERMAN, 2007). Outra modalidade dessa política é o uso obrigatório de misturas em frotas de veículos (em geral frotas públicas). Apesar de irrelevantes na criação de mercados suficientes para propiciar economias de escala, esse tipo de instrumento é importante para a demonstração da viabilidade do uso dos biocombustíveis e no aprendizado sobre seu uso (COMISSION OF THE EUROPEAN COMMUNITIES, 2009). As políticas de subvenção direta incluem o financiamento à instalação de unidades industriais e à aquisição de equipamentos adaptados aos biocombustíveis. Também inclui o financiamento da P&D, especialmente plantas de demonstração e experimentos com equipamentos de uso final, importantes para diminuir as incertezas sobre as novas tecnologias (KUTAS et al., 2007).

Políticas de intervenção nos sistemas de produção agropecuária de matérias-primas podem ser consideradas políticas indiretas de subvenção. Contudo, são fundamentais para a viabilidade da indústria de biocombustíveis, devido à participação das matérias- primas nos custos de produção:

The technologies and systems for first generation biofuels are relatively mature […] There are possibilities for incremental improvements through scale economies and learning effects. However, the main production cost is the price for the feedstocks, which are often agricultural crops. For the costs/prices to go

down significantly on first generation biofuels, the cost/prices for agricultural crops will have to go down (Bomb et al., 2007, p.2264).

A maturidade das tecnologias de produção de biocombustíveis é uma das principais críticas de Kutas (2007) às políticas de inserção de biocombustíveis na União Européia. Para o autor, a capacidade de redução de gases de efeito estufa dessa opção energética não justifica os benefícios concedidos:

Such high rates of subsidization might be considered reasonable if the industry were new, and ethanol and biodiesel were being made on a small-scale, experimental basis using advanced technologies. But that is not the case […] Biodiesel manufacturing is more recent in the EU but it is based on long- established chemical processes that are well understood. Supporting first- generation biofuels is not a cost-effective way to reduce greenhouse-gas emissions […] The cost per tonne of reductions achieved through public support for biofuels in the EU could purchase more than six tonnes of CO2-equivalent

offsets on the European Climate Exchange. Whether the benefits of reduced local air pollution, energy supply security and employment opportunities would warrant this additional cost to the tax paying public is unproven (Kutas et al., 2007, p.76).

Para Rajagopal e Zilberman (2007), o impacto dos biocombustíveis em termos de segurança energética, meio-ambiente e retorno econômico são difíceis de estimar e dependentes de condições particulares, mas tendem a prejudicar os segmentos mais carentes da sociedade e a causar problemas ambientais:

The impact of biofuels on welfare will be heterogeneous, creating winners and losers. The fact that the likely losers are poor net food buyers raises serious concerns about the distributional impacts of biofuels. It will also result in environmental tradeoffs such as reduction in carbon emissions versus increase in local pollution and/or loss of natural habitats. (Rajagopal e Zilberman, 2007, p.78).

Cadenas e Cabezudo (1998) consideram que os benefícios sociais e ambientais da difusão de biocombustíveis dependem das políticas desenvolvidas em cada país e dos mecanismos criados para beneficiar os diferentes grupos sociais. A sessão a seguir mostrará como os instrumentos aqui discutidos vem sendo utilizados nas políticas desenvolvidas no países que lideram a produção mundial de biodiesel. Essa exposição permitirá uma melhor compreensão desse conjunto de instrumentos, mostrando seu contexto de aplicação e resultados. Também permitirá verificar as semelhanças e diferenças entre as políticas internacionais e o PNPB.

2.2 Contexto Internacional: as Políticas de Difusão do Biodiesel na Alemanha,