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III. A PROPOSTA ATUAL

1.4. CONCLUSÕES PARCIAIS: A METAFÍSICA RESISTENTE

No decurso do presente capítulo, procuramos nos aproximar da metafísica a partir da discussão do que denominamos de o problema da metafísica, mais especificamente sobre a possibilidade da justificação da metafísica como programa de conhecimento. Não alcançamos já uma solução para a pergunta que se faz a esse respeito, mas esclarecemos o sentido de sua negação.

Mostramos que, no que concerne ao pensar reflexivo, a negação da metafísica pode se constituir por duas estratégias distintas. A primeira delas consiste na oposição à racionalidade metafísica, salvaguardando outras possibilidades do pensar, do qual ela seria apenas uma expressão. Esta primeira estratégia pode se identificar como uma oposição a uma metafísica historicamente determinada ou como uma oposição à própria metafísica, considerada uma racionalidade minimamente determinada. Nesse sentido, essas críticas se desenvolvem ainda no interior do pensar ou do conhecimento reflexivo. De outro lado, por uma segunda estratégia, que também visa à negação geral da metafísica, se o faz negando conjuntamente o próprio pensar ocidental, identificado com a reflexão, que seria regida pela lógica da contradição e, assim, pela metafísica.

Contra as críticas enunciadas na primeira estratégia, podemos recorrer à solução que nos é oferecida por Lorenz Puntel (2007). Mesmo que as críticas dirigidas contra as metafísicas historicamente determinadas ou contra uma mínima determinação do conceito de metafísica possam se sustentar definitivamente e, assim, refutar completamente as suas pretensões, essas não dizem nada a respeito da possibilidade de metafísicas futuras que não sejam elaboradas nos

termos das metafísicas já historicamente determinadas, porque é sempre possível pensar em uma metafísica em outros termos

Algo importante no discurso de Puntel foi, ainda, apontado. Ele faz menção a uma diferença fundamental que as metafísicas apresentam, de acordo com a semântica que lhes fundamenta. Do ponto de vista das metafísicas ou ontologias da substância, fundadas no princípio da composicionalidade semântica, conhecer consiste em reproduzir o modo como certo número de propriedades aderem a uma substância. Este discurso enfrenta, porém, um grave problema. Diz-se somente a composição das propriedades da substância, mas ela própria permanece intocada, um fundo obscuro. Por outro lado, do ponto de vista de uma semântica baseada no princípio da contextualidade sentencial, a metafísica não é um discurso sobre um objeto já determinado, dado e que se procura atingir. Diversamente, a metafísica é um discurso sobre o ser. Ora, o ser não é uma coisa com propriedades, mas é o contexto no qual se dão as relações. Portanto, a metafísica é um discurso sobre estados de coisas, sobre contextos.

A indicação da possibilidade de uma semântica contextual constitui uma resposta não tanto às críticas históricas contra as metafísicas, que, segundo ele (PUNTEL, 2007), foram sempre contra metafísicas determinadas, quanto às possíveis críticas que se possam elaborar contra a própria possibilidade do modo de pensar que está na base da metafísica e do pensar ocidental — para Puntel o pensar que reproduz ontologias da substância. A hipótese a ser assim sustentada é a de que se rompendo com essas ontologias, evitam-se as antinomias das quais o pensar ocidental encontra-se substanciado.

Mas, há um preço a se pagar. A semântica contextual não é natural. Exige-se um grande esforço de reeducação significativa para incorporá-la ao pensar. Por exemplo, para traduzir que “um homem está cantando” por uma semântica contextual deveríamos tentar nos expressar do seguinte modo: “agora pensante cantante”. Com isso indicamos o momento temporal e o estado característico do que se quer descrever, sem referências substanciais. Porém, como se observa, não se faz isso com facilidade.

A nossa hipótese de leitura da filosofia blondeliana a encontra, em certos aspectos, ligada a essa proposta de Puntel. Tenta-se, como Puntel, indicar que o problema do lógos ocidental e de suas antinomias está na forma como o conhecimento é aí interpretado, inclusive no âmbito da linguagem comum. Para essa interpretação, conhecer é representar a composicionalidade substancial, ou seja, dizer por meio de juízos as propriedades de uma substância, distinguindo substância e acidentes. Blondel não fará menção a um “princípio da composicionalidade substancial” para indicar as ontologias da substância, mas as criticará na mesma direção de Puntel, ou seja, mostrando que essas ontologias baseiam-se em um princípio

indemonstrável e problemático: o de que o ser (coisa em si, substância) e o conhecimento do ser (das propriedades da substância) ou pensar são radicalmente distintos. Ademais, Blondel também não proporá uma semântica baseada em um princípio da contextualidade sentencial como solução ao problema das antinomias da reflexão.97

Segundo Blondel, embora útil, a lógica reflexiva conduzirá sempre a problemas e antinomias insolúveis caso não se a interprete adequadamente como sendo apenas um resumo de uma lógica mais primitiva e abrangente, a lógica da vida. O mesmo se diga a respeito da metafísica. Considerada apenas como sistema conceitual resultante do uso da reflexão, a metafísica é condenada às antinomias e aos problemas próprios ao lógos reduzido a sua imagem abstrata. Nesta direção, dar-se-á o nome de “fenômeno da superstição” às tentativas de subverter o determinismo próprio da lógica da vida moral, seja se opondo absolutamente a suas necessidades, seja tomando-o por uma sua imagem reflexiva. Será supersticioso todo discurso que não se apropria de tais distinções.

Diversamente, corretamente interpretadas de acordo com o seu ponto de partida específico, ou seja, enquanto constituem um caminho de resposta à inquietação do lógos diante da inadequação entre prospecção (experiência prática) e reflexão, a racionalidade metafísica e, assim, a filosofia são resgatadas em todo o seu vigor original, como ações de significação perfeitamente justificadas. É o que procuraremos mostrar no próximo capítulo.

97 Como para a filosofia da ação a reflexão não constitui nunca uma definição da realidade ou uma

ontologia — porque, como veremos, para Blondel conhecer não é só definir um objeto, mas realizar a tarefa de integrar reflexão e prospecção —, assim, também poderíamos pensar que esta disposição permaneceria a mesma a respeito de reflexões que usem semânticas diversas. Poderíamos até perguntar sobre a capacidade das semânticas baseadas no princípio da contextualidade sentencial em oferecer uma reflexão com melhores condições de elucidar a prospecção que a reflexão baseada no princípio de composicionalidade semântica. Mas, nosso interesse não se orienta na direção das discussões a respeito das melhores formas de reflexão e sim no sentido de mostrar como a reflexão não é um fim em si mesmo e sim um meio para uma prospecção mais rica.

Anteriormente, procurando compreender o que realmente significam as oposições à metafísica, tendo em vista esclarecer as suas condições de possibilidade, descobrimos algumas coordenadas a serem consideradas. Primeiramente, que as oposições à metafísica — considerada em geral ou singularmente — que pretendem ainda salvaguardar o pensar reflexivo não possuirão nenhum alcance crítico no que diz respeito à possibilidade racional de metafísicas que não se determinem como o fizeram as metafísicas historicamente determinadas. Uma segunda orientação diz respeito às críticas gerais à metafísica que, diferentemente das anteriormente referidas, se caracterizem pela oposição ao modo de pensar reflexivo. De acordo com essas críticas, deve-se abandonar a metafísica como programa de conhecimento ou como racionalidade e o modo do pensar ou a síntese significativa da qual a metafísica é parte, a racionalidade reflexiva, em razão das antinomias insuperáveis das quais elas se encontram abarrotadas. Em suma, para evitar o contrassenso é preciso a superação do pensar reflexivo em direção da proposição de uma filosofia não metafísica ou, talvez, de um pensar não filosófico.

É possível agora dar outro passo, também na direção da compreensão do sentido das oposições à metafísica. Não será importante a discussão a respeito de se a metafísica ou a filosofia são influenciadas pelo pensar reflexivo — o que nos parece evidente —, mas, sobretudo, aquela em que se pergunta se essas se limitam exclusivamente à lógica que o caracteriza. Para isso saber, ademais, é imprescindível investigar o que realmente é esse modo de pensar.

Procurando alcançar esses resultados, nessa IIª parte de nossa pesquisa, beberemos da fonte do blondelianismo, ligando-nos a três textos fundamentais: Principe élémentaire, L’Illusion idéaliste e Le point de départ. O estudo desses textos será imprescindível para se recolher as chaves de leitura que nos possibilitarão o exame posterior da Action (1893). Organizá-lo-emos em dois capítulos, respectivamente denominados: 1) “Reinterpretando o pensar reflexivo” e 2) “A lógica da vida moral”.

Desenvolveremos paulatinamente neste texto nossa compreensão da noção de pensar reflexivo, que também chamaremos de especulação, racionalidade reflexiva ou, simplesmente, reflexão. Entretanto, é útil desde já oferecer uma sua caracterização para precisar especificamente nosso discurso. Por ora, será suficiente dizer que por pensar reflexivo entendemos a ação significativa em seu momento consciente de aplicação da análise linguística. Ele é o momento específico da compreensão98 (ação significativa consciente) constituído pelo uso da linguagem e que tem como resultado a representação99.

Que o pensar reflexivo contribua decisivamente para a constituição do modo próprio de conhecer metafísico ou de sua racionalidade é fora de questão. Todo artefato, ação significativa e tradição de cunho filosófico é sua prova. O problema verdadeiro a ser enfrentado é saber se a filosofia, com seu modo próprio de conhecer — metafísico —, limita-se exclusivamente ao pensar reflexivo e à sua específica lógica. Caso as coisas estivessem assim, seria preciso assumir que a falência da reflexão equivaleria à falência da metafísica.

De qualquer forma, a existência de antinomias internas ao modo de pensar reflexivo e à lógica que o caracteriza é, sem dúvida, uma das razões mais fortes da crise pela qual passa hoje a filosofia. A recorrência de antinomias e, assim, de teses autorrefutativas — que portam em si a sua própria negação —, é reconhecida por muitos historiadores da filosofia contemporânea como sendo uma das características definidoras de nossa época. Nessa direção, a respeito da fase histórica em que vivemos, afirma Franca D’Agostini:

...é evidente que um balanço fiel da experiência de verdade que caracteriza o mundo ocidental nesta específica fase (ou que se tornou evidente nesta fase) não pode esconder o paradoxo do fim da verdade. Isso significa que uma diversa lógica deve iniciar sua estrada (ou já a iniciou) no nosso pensar [...]. A diversa lógica dentro da qual a última fase da metafísica se move nos sugeriria aceitar a natural recorrência das teses autorrefutativas das quais é já substanciado o nosso saber ocidental... (D’AGOSTINI, 1999, p. 290).

98 Não obstante, é preciso lembrar, a compreensão não é apenas restrita a ele. O momento da reflexão é

apenas um anel de sua imensa cadeia. Como já acenamos (“1.1 A ATIVIDADE DE OFERTA DE SENTIDO E SUA LÓGICA”), o contexto significativo abrangerá condições inconscientes e conscientes, e, no interior das conscientes, condições linguisticamente analisadas, analisáveis e condições não analisáveis.

99 Representação que se diferencia conforme o tipo de semântica de que faz uso. Por exemplo, se essa é

Mas, o que se entende aqui por antinomias? Qual a relação dessas com o pensar reflexivo? Estas são questões com as quais deveremos lidar por primeiro.