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III. A PROPOSTA ATUAL

5.3. O SENTIDO DO PESSIMISMO

Quanto ao primeiro tipo de pessimismo, Blondel faz notar que algumas experiências humanas poderiam ser aproximadas àquela do nada, sendo que a única absoluta experiência deste nada hipotético seria a da morte como completo aniquilamento. No entanto, as dificuldades na comunicação de tal experiência são óbvias: quem dos pessimistas já a viveu para documentá-la? Ademais, poder-se-ia falar de uma experiência aproximada: aquela de uma vida mortificada, mediante a ascese, como previa já Schopenhauer. Todavia, os ascetas que a viveram geralmente possuem uma opinião bem diferente daquela insinuada pela primeira forma de pessimismo. Em suma, da consideração da experiência da morte não se pode fazer derivar argumentos racionais — controláveis — que sustentem o pessimismo.

Os dois tipos de pessimismos seguintes se mostram profundamente coligados. Quanto àquele de cunho científico, ele seria apenas uma espécie de cientificismo, que afirmaria como única realidade existente a dos fenômenos objetivos das ciências positivas, os quais, entretanto, são reconhecidamente incapazes de satisfazer as aspirações humanas. A crítica metafísica schopenhaueriana identificaria tais fenômenos com o horizonte do vazio, do nada, encontrando como via de solução somente aquela do nosso já estudado aniquilamento da vontade de viver. No entanto, é em obra, em tal modo de pensar, uma retorsão: em ambos os casos, negando explicitamente o ser, devido à inconsistência dos fenômenos, o pessimista imposta, implicitamente, a sua infinidade (do ser). De tal modo, seu comportamento é marcado por um erro lógico: não encontrando a satisfação infinita que buscava nos seres finitos, ele afirma uma fundamental inconsistência do ser, ao invés de procurar a solução em um lugar diverso daquele dos fenômenos. Querendo o aniquilamento de toda vontade de ser, o pessimista afirma implicitamente um dúplice querer contraditório: o querer profundamente o ser, que os fenômenos não chegam a satisfazer, e o querer superficial dos fenômenos, o qual o pessimista não consegue superar:

Querer assim o nada, com palavras com as quais alguém se engana, é, com efeito, render testemunho tanto da vaidade do que se dá como alimento à ação, como da grandeza daquilo que se quer com toda a força, com toda a sinceridade do primeiro e íntimo desejo: mentira, porque se abusa de um equívoco; não se quer, não se pode negar de uma só fez o fenômeno e o ser; e, entretanto, segundo as necessidades se os nega, uma vez ou outra, como se se aniquilasse os dois de um só golpe, sem se dar conta de que por esta mesma alternativa eles são igualmente afirmados (Action, p. 35).

O pessimista leva em conta que o que se busca geralmente nos fenômenos da experiência — no que se sente e se conhece — é o apaziguamento da vontade de ser. Porém, aí não se encontra este apaziguamento. Busca-se o ser e encontram-se somente os seres.145 Busca-se um remédio na experiência, mas em vão. Então, de posse desse dado, o pessimista se propõe a negar tudo, ser e seres. Mas isso não é possível senão ao preço de tudo afirmar. Negam-se os fenômenos porque eles não são o ser. Nega-se o ser porque esse não se encontra nos fenômenos. Implicitamente, porém, nega-se o ser apenas enquanto fazemos experiência na determinação de nossa vontade, no nosso querer realizado, da finitude de toda determinação fenomênica, e negam-se os fenômenos porque o querer que se determina nos fenômenos mantém-se nostálgico do ser, ou seja, somente enquanto se afirma a vontade do ser.

Assim, “querer o nada” é apenas uma abstração especulativa, que não resiste à prova prática. Não posso querer independentemente de determinações, ainda que queira infinitamente. Não posso fazer a experiência da desproporção — que é o querer — anulando a determinação do que eu sou e do que eu intenciono ser, ou seja, anulando as condições concretas que sou eu e que me permitem saber que eu não sou o que devo146 ser. Por querer sou atraído a ser o que não sou, a ser diferente do que sou, a assumir outra determinação. Querer é intencionar que essa outra determinação deixe de ser uma possibilidade e venha a ser um fato. Não se pode, assim, querer o nada no sentido de nunca querer sem determinações do querer.

Enfim, as conclusões alcançadas com as duas primeiras hipóteses consideradas na Tese Francesa é que o homem quer e quer de modo determinado. Não posso querer nem de modo absolutamente indiferente — contra o não querer seriamente —, nem de modo absolutamente indeterminado — contra o querer o nada. Não posso “não querer seriamente” como se isto

145 Como já havíamos dito anteriormente, esses termos (ser, seres) são usados sem nenhuma pretensão

ontológica. O que se indica por “Ser” é a completude do querer ou a perfeição da vontade. O que é indicado por “seres” são as determinações do querer, ou seja, os fenômenos nos quais o querer se determina. De fato, Ser e seres são até agora apenas duas hipóteses de realização da vontade. “Ser” indica a realização definitiva. “Seres” a realização provisória.

146 Aqui “dever” não é utilizado para significar nem uma necessidade natural, nem moral. A acepção de

“dever” empregada aqui quer significar apenas a força de uma atração, a força exercida no agente por uma causa final.

equivalesse a querer tudo, porque querer tudo inclui também querer não querer tudo (posturas dogmáticas). Ademais, querer é sempre querer algo determinado, sendo que a determinação significa não só querer, mas também não querer, ou melhor, não querer ser o que sou. Querer é querer algo, é querer os fenômenos, mas também é querer o ser. A negação do querer determinado, baseada na consciência de sua limitação, só é possível pela consciência da não limitação do querer o ser. A negação do querer infinito só é possível pela afirmação do estado finito do querer determinado. Em suma, os fenômenos e o ser não são (o) nada. Não posso querer o nada.

Isso não significa, entretanto, que é a vontade a fazer ser tudo o que é. Diversamente, por aquilo que quer, a minha vontade implica o que ela não fez. Ela quer ser o que ainda não é: é sempre “orientada para”. Mas, não se tirem conclusões precipitadas. Se, por um lado, sabemos que há algo porque “eu quis que houvesse esse algo” (Action, p. 43), entretanto, não sabemos se esse algo é exterior ou redutível à nossa representação interior. Até o momento, não sabemos o que são os seres (o que são os fenômenos), nem o que é o ser. Apenas possuímos hipóteses sobre eles. Hipóteses que surgiram quando se tentava negar um e outro e, nesta mesma operação, quando nos vimos obrigados a afirmar um e outro: um por meio do outro.

Para Blondel, a oposição que o pessimismo institui entre ser e fenômeno possui a sua origem no criticismo kantiano e na sua separação entre as esferas da razão pura e da razão prática. O formalismo da pura intenção, desvinculando o imperativo moral do mundo fenomênico, no intuito de garantir a sua universalidade, acabou por erigir uma separação entre a materialidade e a idealidade dos atos voluntários. De tal modo, abriu-se a estrada das conclusões schopenhauerianas sobre a inexorável alienação da vontade que se objetiva nos corpos — para o filósofo alemão, estranha ao fenômeno, porquanto coisa em si.

Mas seria justa a afirmação segundo a qual toda exteriorização da vontade no mundo fenomênico é uma perda para esta? O querer fenomênico pesaria sempre de modo negativo? A resposta a essas questões nos serão oferecidas por Blondel no itinerário que comporá a terceira parte da Action, dedicada ao estudo da hipótese dos fenômenos. É o que consideraremos no próximo capítulo, seguindo o desenvolvimento da IIIª Parte da Action.

A possibilidade de que o ser possa constituir uma realização para a vontade é uma hipótese, mas é ainda uma hipótese obscura e distante. Muito mais próxima a nós se mostra a hipótese dos fenômenos, já que esses fazem parte de nossa experiência cotidiana. A essa altura da especulação filosófica da Action, sabemos já algo sobre esses. Sabemos que “os fenômenos” constituem uma das hipóteses da via de realização da vontade, mais especificamente a hipótese da experiência. Com efeito, fenômeno é o que é passível de experiência. Querer os fenômenos é querer este algo que é sentido, conhecido e desejado de modo determinado. Sobre essa hipótese, porém, muito ainda há por se descobrir.

A questão a ser colocada aqui não é a da pergunta sobre a capacidade dos fenômenos em nos propiciar um contentamento definitivo. De fato, isso já fora descartado quando da discussão sobre o pessimismo. Os fenômenos têm como característica, justamente, a sua finitude, a sua parcialidade. A razão que levava à contraposição pessimista em relação aos fenômenos não era justamente a constatação de que esses não satisfaziam o nosso querer mais profundo, o querer infinito do ser? O que se objetiva estudar, na IIIª Parte da Action, é se o engano não consistiria no exagero de nossa aspiração, ou seja, em tentar buscar o infinito, quando deveríamos nos contentar com a experiência, limitada, é claro, mas concreta dos fenômenos. Em suma, sabendo que os fenômenos não são nem “nada” (porque são algo), nem “a satisfação infinita do querer”, é preciso agora saber se são “tudo o que é”.

Tratando da hipótese dos fenômenos, Blondel deverá considerar preliminarmente uma importante questão: que espécie de conhecimento pode ser dito fenomenal? Os fenômenos se limitariam aos fatos positivos, objeto das ciências positivas? Em outras palavras, antes de saber se os fenômenos são tudo o que nossa vontade pode realizar, é preciso saber o que verdadeiramente são os fenômenos. A importância dessa questão relaciona-se com o impacto que a noção de fenômeno tem para a compreensão do que se entende por conhecimento, incluindo o filosófico. Com efeito, se “fenômeno” é a noção que designa o que pode ser por nós sentido, pensado e querido148, ou seja, tudo o que, de algum modo, pode por nós ser conhecido, é preciso saber se os fenômenos se limitam aos dados positivos, objetos das ciências positivas.

147 Correspondente à IIIª Parte da Action.

148 Blondel mostrará que o querer une intrinsecamente o sentir e o pensar, porquanto o desejo de

conhecimento os atravessa, surgindo inicialmente como aspiração à superação do problema da inconsistência da percepção sensível.