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Conclusões provisórias: por uma etnografia parcialmente aplicável

[...] como é impossível apresentar a totalidade de uma cultura ao mesmo tempo, de um só golpe, devo começar por algum ponto arbitrariamente escolhido da análise; e, como as palavras precisam necessariamente ser dispostas em linhas, devo apresentar a cultura, que, como todas as outras culturas, é na verdade uma rede complicada de causa e efeito entrelaçados, não como uma rede de palavras, mas com palavras dispostas em séries

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As espécies de timbó mais frequentemtne utilizadas pelos Ye'kuana são Lonchocarpus sericeus e Piscidia

lineares. A ordem que uma descrição desse tipo segue é necessariamente arbitrária e artificial, e por isso escolherei uma organização que proporcione a meus métodos de abordagem o mais acentuado destaque (BATESON, 2008, p. 70-71).

Ao longo deste capítulo, tentamos esboçar uma imagem inicial de quem os Ye’kuana vêm a ser. Sua história, o ambiente em que vivem, alguns de seus hábitos e algumas modalidades de relações interespecíficas e/ou interpessoais que, de algum modo, julgamos relevantes para delimitar o perfil dos sujeitos de que aqui tratamos. Tarefa arriscada, reconhecemos. Partimos do material que outros produziram quando do contato e do convívio com pessoas de carne e osso, para tentar elaborar uma etnografia fictícia de um determinado grupo: os Ye’kuana. Poder-se-ia imaginar limitado o escopo de nossos esforços antropológicos; afinal, quais seriam as consequências deriváveis de nossa exposição, sobretudo quando consideramos o caráter fragmentado de nossa descrição? Os dados de que nos utilizamos para montagem de um suposto ethos ye’kuana vieram de diferentes localidades, de diferentes períodos históricos e, como se não bastasse, carregando, ora como fardo, ora como dádiva, as afecções dos autores que deram ensejo à produção dos Ye’kuana como um fato etnográfico relevante para a comunidade científica.

Quero argumentar, por meio deste experimento, que nosso trabalho não é apenas sobre os Ye’kuana em si, tampouco sobre sua cestaria ou sobre o espírito atual que ronda a discussão antropológica acerca da produção material e artística no ocidente ou alhures. Este, assim como todo trabalho destinado à comunidade acadêmica interessada em antropologia, é uma reflexão acerca do próprio fazer antropológico. Afinal, a antropologia, parece-me, carrega em sua natureza essa idiossincrasia de ser permanentemente uma ciência em construção; não se trata, portanto, de um jogo de cartas marcadas em que, de antemão, podemos estabelecer um grande divisor e determinar o pertencimento de um objeto particular àquele suposto grupo seleto de situações dotadas de uma qualidade intangível presente nos trabalhos que, por essa razão, se tornaram referências incontornáveis para os que desejam esmiuçar-se em nossa disciplina: a “relevância antropológica”. Isso não significa, entretanto, e gostaria de enfatizá-lo, que estejamos lidando com castelos de areia – no plural, pois, conforme constata Tim Ingold, “existem tantas definições de antropologia quanto antropólogos há” (INGOLD, 1992, p. 695).

Claude Lévi-Strauss outrora afirmou que “a antropologia busca elaborar a ciência social do observado” (LÉVI-STRAUSS, 2008, p. 385) e que esta “se transforma qualitativamente ao mesmo tempo que, do ponto de vista quantitativo, cresce a massa do

material acumulado por ela” (LÉVI-STRAUSS, 2013, p. 71). Para o etnólogo francês, esta seria uma evolução que estimulava a crença no futuro dos estudos antropológicos. Ele também percebia o surgimento de novos problemas aos quais, embora demandassem soluções, até então os pesquisadores não haviam prestado a devida atenção. De tal modo, “os fenômenos observados ganham um significado mais rico, por serem simultaneamente traduzidos nos códigos mais numerosos e diversificados do que aquele ou aqueles com que outrora tínhamos de nos contentar” (LÉVI-STRAUSS, 2013, p. 71). Ao considerar tais considerações, bastar-nos-ia assumir que o leque de fenômenos passíveis de observação e ainda não analisados por meio de um viés antropológico parece ser inesgotável. Neste caso, a relevância de um trabalho antropológico residiria não tanto no que foi observado, mas nas implicações conceituais, éticas e políticas da imersão observante, pois

[...] os problemas tradicionais da antropologia ganham novas formas, mas nenhum deles pode ser considerado resolvido. No conjunto das ciências humanas, a antropologia sempre teve como característica distintiva investigar o homem para além dos limites que os homens, em cada periodo da história, atribuíam à humanidade (LÉVI-STRAUSS, 2013, p. 73-74).

Lévi-Strauss, portanto, não parecia preocupado com uma suposta ameaça ao futuro da disciplina devido às transformações ora em curso no modo de vida de grupos não ocidentais, embora o autor pondere com veemência a tragédia que marca a história dos nativos desde a chegada dos brancos e de seu aparato colonial – incluindo antropólogos como agentes daquela empresa.24

Em alguns pontos de sua obra, sobretudo quando apresenta o englobamento das tendências econômicas e políticas globais pelas estruturas nativas como operador no funcionamento do sistema mundial, Marshall Sahlins também se ocupou de tentar acalmar o “pessimismo sentimental” de colegas antropólogos que viam a cultura como um objeto em via de extinção. Mostrando-lhes que a vida dos outros povos do planeta não estava desmoronando !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!

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“Ainda que aspire a tal posição, a antropologia jamais conseguirá ser uma ciência tão desinteressada quanto a astronomia, cuja própria existência está relacionada ao fato de contemplar de longe seus objetos. A antropologia nasceu de um devir histórico no decorrer do qual a maior parte da humanidade foi sujeitada por outra parte, quando milhões de vítimas inocentes viram seus recursos pilhados, suas crenças e instituições destruídas, antes de serem elas mesmas barbaramente massacradas, reduzidas à servidão ou contaminadas por doenças contra as quais seus organismos não tinham defesas. A antropologia é filha de uma era de violência; e, se veio a ser capaz de uma visão mais objetiva do que se tinha antes dos fenômenos humanos, deve tal vantagem epistemológica a uma situação concreta em que parte da humanidade arrogou-se o direito de tratar a outra como objeto.

Tal conjuntura não será rapidamente esquecida e não podemos agir como se nunca tivesse existido. Não é em razão de suas capacidades intelectuais específicas que o mundo ocidental deu origem à antropologia, mas porque culturas exóticas, que tratávamos como meras coisas, podiam consequentemente ser estudadas como coisas. Não nos afetavam, mas não podemos fazer como se hoje nós mesmos não as afetássemos, e do modo mais direto possível. Entre nossa atitude para com elas e a atitude delas para conosco não há, e não pode haver, paridade” (LÉVI-STRAUSS, 2013, p. 69).

em visões globais da hegemonia ocidental, a tarefa da antropologia seria indigenizar a modernidade (SAHLINS, 1997). Grupos em desaparecimento, dos quais os antropólogos deveriam registrar os costumes em ruínas antes do colapso terminal, não faltariam; afinal, assim eles sempre teriam estado desde que entraram em nossa história. Logo, gostaríamos de sugerir que, tal como um bloco de mármore que contém virtualmente a forma que adquire após o trabalho de seu escultor, mas que sem o trabalho deste aquela não seria desvelada, a toda forma de vida humana – passada, presente ou futura – a relevância antropológica é imanente. Para constatá-lo em um caso qualquer, entretanto, a pesquisa há de ser realizada, produzindo novas e inquietantes questões ou estendendo o sentido daquelas que existiam até então. Como diria Clifford Geertz, “se quiséssemos verdades domésticas, deveríamos ter permanecido em casa” (GEERTZ, 2000, p. 65).

Ingold por sua vez afirma que “antropologia não é o estudo feito pelos ocidentais do ‘outro’ não-ocidental. Pois, na antropologia nós estudamos nós mesmos” (INGOLD, 1992, p. 695). Sua observação vem acompanhada de ressalvas: não significava que, por isso, uma classe privilegiada de ocidentais estivesse licenciada, em nome da disciplina que difundiam, a envaidecer sua plumagem acadêmica no espelho de outras culturas, ou que a antropologia devesse regressar a uma espécie de hiper-reflexidade, debruçando-se exclusivamente nas condições da própria investigação e da produção de conhecimento antropológico – ambas as tendências bastante em voga durante o decênio de 1980 por um grupo de antropólogos inspirados por uma preocupação com a teoria literária – “embora isto possa ter impulsionado um certo número de carreiras, tem feito muito pouco para impulsionar a compreensão antropológica” (INGOLD, 1992, p. 695), assinalou Ingold na mesma passagem. Em sua visão, o futuro da antropologia residiria em modificar a concepção daquilo que “nós” somos; “de um ‘nós’ exclusivo, ocidental para um ‘nós’ inclusivo, global” (INGOLD, 1992, p. 695). Concordamos sem reservas com essa visão do que cabe à antropologia, como missão, nos dias atuais. Para Ingold, no trabalho de campo, meio pelo qual tal projeto é posto em prática, nós, antropólogos, estudamos com outras pessoas que se tornam nossos guias e nossos tutores. Assim o faríamos “porque o conhecimento que estas pessoas podem nos transmitir, aguçado tal como é por sua experiência prática de envolvimento cotidiano no mundo, pode ajudar-nos a alcançar uma compreensão mais profunda e rica do dilema humano” (INGOLD, 1992, p. 695). Sabemos que, há séculos, filósofos têm se empenhado em oferecer respostas satisfatórias a alguns paradoxos existenciais humanos. Ingold critica no método adotado por filósofos justamente uma suposta ausência de confrontos entre suas proposições e a sabedoria do senso comum. Ora, para ele, a antropologia seria também uma espécie de filosofia, mas

não tão exclusivista; dito de outro modo, “antropologia é filosofia com as pessoas em seu interior” (INGOLD, 1992, p. 695). Dividimos com Ingold o reconhecimento da importância concedida ao trabalho de campo para a construção de nossa disciplina como corpo de conhecimento singular. Distanciamo-nos do autor porque não vemos o trabalho de campo como o meio exclusivo e último para impulsionar a espécie de reflexão acerca do humano almejada por aqueles interessados em antropologia. Antes, tendemos a concordar com Martin Holbraad, para quem a antropologia tem que ver com um exercício conceitual que não demanda uma territorialização anexada a coordenadas geográficas – diríamos nós, tampouco a coordenadas temporais. Conforme afirma esse autor, “formalmente, tudo que precisamos para estabelecer o jogo da alteridade é um conjunto de pressuposições e um corpo de material que pareça contradizê-lo” (HOLBRAAD, 2010, p. 185).

Reencontramos assim a linha que cose os retalhos que dão corpo a este trabalho. Sim, é possível sentir aqui reverberações da sabedoria do senso comum ye’kuana, embora, por infortúnio – nenhum corpo está imune ao feitiço alheio –, não tenhamos até o presente momento estabelecido as condições desejáveis para lhes apresentar essa sabedoria como um produto de nossa jornada ao lado de nossos tutores ye’kuana – crianças e adultos, mulheres e homens, gatos, cachorros e galinhas de terreiro. Desejável, porém, é que façamos justiça ao esforço aqui empreendido e que não ponhamos em detrimento essa sabedoria em que nos encontramos em via de nos iniciar.

Etnografia fictícia, mas não menos legítima, porque, conforme argumenta Marilyn

Strathern, para que seja válida, uma descrição não tem de ser completamente replicável, e sim

parcialmente aplicável (STRATHERN, 1988, p. 46). O parâmetro de uma boa etnografia

então passa a ser não o grau de fidedignidade que o texto etnográfico oferece em relação àqueles sujeitos atemporais, os quais chama à existência via descrição, mas os efeitos – não apenas de ordem analítica e conceitual, mas também sempre imersos em uma dimensão política – que dele são possíveis extrair. Esse é o horizonte com o qual trabalhamos ao longo desta empreitada. Esperamos que o resultado obtido da descrição intentada ao longo deste capítulo tenha sido parcialmente aplicável tanto ao ethos ye’kuana quanto ao exercício conceitual que esboçamos adiante.

3 TECER O MUNDO: DUPLOS E CESTARIA YE’KUANA