• Nenhum resultado encontrado

Propomo-nos, ao longo deste trabalho, oferecer possível apreensão da dinâmica cosmológica ye’kuana. Para alcançarmos tal tarefa, devemos ter em mente importante autocrítica que Arvelo-Jiménez teceu à sua primeira análise etnográfica (ARVELO- JIMÉNEZ, 1974) em um trabalho posterior (ARVELO-JIMÉNEZ, 2001). Segundo a autora, os Ye’kuana por ela descritos se assemelhavam a uma ilha autocontida, independentemente de todas as demais sociedades indígenas com as quais compartilharam e compartilham tanto o espaço geográfico da bacia do Orinoco quanto uma matriz civilizatória comum (ARVELO- JIMÉNEZ, 2001, p. 6). Na ocasião, permaneceram inexploradas “as possíveis conexões significativas dentro do marco regional maior e o estudo temporal profundo das raízes histórico-culturais” (ARVELO-JIMÉNEZ, 2001, p. 6) daquela sociedade.

Uma das características mais salientes do modo de vida ye’kuana aos olhos dos cronistas e dos etnógrafos que lhes cruzaram o caminho é sua predisposição para o comércio, seja intra-aldeão ou interaldeão entre os próprios So’to, seja interétnico, com outros grupos autóctones das Guianas ou com os brancos. Esse contato intertribal teve início antes que qualquer influência branca se fizesse sentir diretamente, dando ocasião para a formação de um sistema original de interdependências características de situações de simbiose socioeconômica. Ora, os trajetos percorridos pelos comerciantes ye’kuana e alguns de seus artigos, que eram ainda mais longos durante o período colonial, ao abarcarem toda extensão do Maciço Guianense, de norte a sul e de leste a oeste, conferem aos Ye’kuana importante papel nesse sistema. Devemos destacar, contudo, que os meios de transporte modernos, a presença dos missionários comercializando com os indígenas, a obsolescência de certos itens por influência do contato interétnico, têm modificado a rede comercial encurtando as viagens, mas aumentando a sua frequência (COPPENS, 1971 apud MELATTI, s.d.). Os Ye’kuana em

Fuduwaaduinha, aldeia às margens do rio Auaris, por exemplo, hoje em dia, com o fim das

grandes expedições comerciais de outrora, trocam seus produtos com grupos indígenas de outras etnias em apenas duas ocasiões: quando viajam a Boa Vista e lá encontram outros indígenas em instituições governamentais que lhes são comuns, tais como a Casa do Índio (CASAI), onde são internados para tratamentos médicos, ou quando viajam à Venezuela para visitar parentes e encontram outros grupos ao longo do percurso – circunstância que se vem tornando cada vez mais rara (ANDRADE, 2007, p. 120).

De acordo com as fontes bibliográficas, os artigos produzidos pelos Ye’kuana para a exportação mais importante para as relações mercantis mantidas com as populações

criollas da região eram canoas, zarabatanas, curare, raladores de mandioca, cestos e tabaco

(GRELIER, 1954; ALVARADO 1945 apud COPPENS, 1971). Os Ye’kuana por seu turno visavam adquirir de seus parceiros instrumentos de ferro ou alumínio (facas, machados, terçados, anzóis, panelas, pregos), roupas e contas de miçanga.

Walter Coppens, que realizou pesquisa em Jiwitiña, aldeia no alto Erebato, entre 1966 e 1968, observou que, durante esse período, os Ye’kuana mantiveram relações comerciais com os seguintes grupos que lhes eram vizinhos: os Piaroa, cuja importância mercantil para os Ye’kuana diminuía devido à demanda cada vez menor pelos produtos tradicionais que ofereciam; os Pemon, que, para os Ye’kuana, eram tanto produtores quanto intermediários de uma série de artigos produzidos na região fronteiriça entre a Venezuela, o Brasil e a Guiana; e os Yanomami (COPPENS, 1971, p. 36).

Os Yanomami produziam alguns artigos fixos para comércio com os Ye’kuana: arcos, flechas, bolas de algodão para manufatura de redes. Ofertavam também o papel de casca de árvore utilizado pelos Ye’kuana para enrolar seus cigarros. Em troca, buscavam utensílios de ferro para caça, pesca, agricultura, preparo de alimentos, roupas e espingardas. Os Ye’kuana – do Caura e do Erebato – por sua vez os obtinham, dentre outras fontes, dos Pemon. Esses parceiros comerciais se tornaram parte importante na economia ye’kuana: As longas viagens comerciais empreendidas outrora a Georgetown para a aquisição direta de artigos no litoral das Guianas não eram mais realizadas; os Pemon se tornaram intermediários para tais aquisições (COPPENS, 1971, p. 37-39).

Ocasionalmente, os Ye’kuana mais ocidentais também empreendiam expedições ao território Piaroa nas quais adquiriam curare, cuja preparação era uma especialidade dos Piaroa. Em troca, ofertavam-lhes zarabatanas. Entretanto, a importância dessa rota comercial parece reduzir fortemente devido à diminuição do uso de arcos, flechas e zarabatanas entre os Ye’kuana (COPPENS, 1971, p. 38-39).

No comércio dos Ye’kuana com os Pemon, sobretudo Arekuna, o ralador de mandioca ocupava uma posição preponderante. A propriedade desse artefato sempre remete à mulher que o fabricou com o delicado trabalho de incrustar lascas de pedra ou de metal em uma tábua, formando assim sua superfície. Logo, em uma troca de raladores por artigos Pemon, a princípio, o acordo se concretizava conforme o desejo manifesto por sua dona. Em uma expedição acompanhada por Coppens dos Ye’kuana de Jiwitiña aos Pemon da Grande Savana, as mulheres, alfabetizadas pela escola dos missionários, deixavam de antemão escrito nos raladores que fabricaram os respectivos nomes e os artigos Pemon que desejavam adquirir. Elas visavam obter artigos de uso especificamente feminino. Apenas quando não havia indicação do destino de seus raladores, ficava subentendido que os homens podiam trocá-los por bens “masculinos” (COPPENS, 1971, p. 47). Entre os produtos mercantis que os Pemon priorizavam para o comércio com os Ye’kuana, estavam, em ordem de demanda, redes de algodão, colares de miçanga, tipoias e algodão, cerâmicas de cozinha, arcos, flechas com pontas de ferro e espingardas importadas do Brasil – artigo mais importante, apesar de procedência externa. É curioso notar que as miçangas dos Pemon ingressavam esse circuito mercantil sob a forma de colares que os Ye’kuana então desfaziam para que pudessem utilizar o material em vestidos e adornos tradicionais. Interessavam aos Ye’kuana, sobretudo, colares feitos de miçanga branca ou azul.

! FIGURA 2 - Rede de trocas comerciais no Maciço Guianense Ocidental