• Nenhum resultado encontrado

Do ponto de vista da imaginação ao ponto de vista imagem-ação

Em seu famoso ensaio “Um jogo profundo: notas sobre a briga de galos balinesa”, Clifford Geertz trata a briga de galos como uma “forma de arte” por esta tornar

[...] compreensível a experiência comum, cotidiana, apresentando-a em termos de atos e de objetos dos quais foram removidas e reduzidas (ou aumentadas, se preferirem) as consequências práticas ao nível da simples aparência, onde seu significado pode ser articulado de forma mais poderosa e percebido com mais exatidão (GEERTZ, 1978, p. 206).

Ora, a briga de galos assim entendida seria “um meio de expressão”: uma exibição das paixões sociais em meio a penas, sangue, multidões e dinheiro (GEERTZ, 1978, p. 206) e não seria “um retrato de como as coisas são literalmente entre os homens, mas de um ângulo particular, de como elas são do ponto de vista da imaginação” (GEERTZ, 1978, p. 208).

Geertz vê na briga de galos balinesa o mesmo atributo que, em sua sociedade, teriam pinturas, livros, melodias musicais e peças teatrais, a saber: a possessão de qualidades perceptíveis, as quais não nos sentimos capazes de expressar literalmente. Daí, por sua forma dramática imediata, seu conteúdo metafórico e seu contexto social, a briga de galos surgir como esteticamente “inquietante”. Geertz vislumbra, portanto, na briga de galos balinesa, um “comentário metassocial sobre todo o tema de distribuir os seres humanos em categorias hierárquicas fixas e depois organizar a maior parte da existência coletiva em torno dessa distribuição” (GEERTZ, 1978, p. 209). Logo, a função da briga de galos seria interpretativa: ela seria uma “leitura balinesa da experiência balinesa, uma estória sobre eles que eles contam a si mesmos” (GEERTZ, 1978, p. 209). Nesse caso, a análise de formas culturais não seria senão uma tentativa de penetrar em um texto literário e, partindo do pressuposto de que seu objeto são “formas de dizer alguma coisa sobre algo”, o problema da antropologia passa a ser da ordem da “semântica social”.

Encontramos subjacente a essa argumentação a ideia de representação, um pressuposto tipicamente moderno, que implica, entre outras coisas, a suposição da “ausência daquilo que substitui” (LAGROU, 2007, p. 135) e a existência de dois domínios que enquadram o vivido: o real e o simbólico – este enquanto mimese daquele, caracterizados pela

“diferença qualitativa entre a coisa representada e a imagem que a substitui” (LAGROU, 2007, p. 135); a imagem, neste caso, não teria nenhuma realidade além da semelhança à coisa a que se refere. Geertz muito provavelmente se defenderia afirmando que esses domínios se influenciam mutuamente; afinal, em Negara, por exemplo, ele argumenta serem as cerimônias do Estado balinês clássico um “teatro metafísico”, visto que este expressava uma visão da natureza última da realidade e, ao mesmo tempo, moldava as condições existenciais de vida para que fossem consoantes com aquela realidade: “teatro para apresentar uma ontologia e, apresentando-a, fazê-la acontecer – torná-la real” (GEERTZ, 1980, p. 104). Entretanto, ainda assim reside um problema: todo e qualquer simbolismo é uma forma expressiva de dizer alguma coisa sobre algo, ou seja, uma representação de alguma outra coisa? Ou melhor, todo e qualquer simbolismo está baseado epistemológica e ontologicamente, tal como o nosso – em teoria –, em uma distinção entre o real e o imaginário, entre natureza (o referente exterior, a coisa em si) e cultura (suas representações visuais, performáticas)? Ora, como notado por Strathern (1988), o “simbolismo melanésio” não era uma representação, mas um conhecimento ou apreensão da “capacidade e poder animados das coisas” (STRATHERN, 1988, p. 177). Ou, como nota Pedro Cesarino (2006),

[...] o espírito da serpente não é fruto da imaginação literária kuna, como tampouco [...] o inimigo que canta pela boca do homicida Araweté; a proliferação de pessoas dos cosmos ameríndios não se compreende por alguma criação autoral, enraizada em nossos pressupostos modernos (CESARINO, 2006, p. 125).

A tentativa de Geertz de tratar a briga de galos balinesa como uma “forma de arte” suscita uma série de problemas acerca da própria definição da antropologia da arte e seu objeto, a qual Peter Gow (1990) afirma ter sido sempre uma “sub-disciplina menor”, provavelmente porque suas questões centrais têm raízes no interior da tradição estética na qual os próprios antropólogos teriam crescido: a ocidental em suas fases clássica e moderna. A influência dessa tradição teria sido tão forte, que teria levado etnógrafos a perguntar, em outros contextos, as mesmas questões que se punham quando da análise de uma obra de arte criada no interior de sua própria tradição artística, mesmo estando plenamente conscientes da diferença existente entre estas: “quem é o autor desta peça?”, “como ela se chama?”, “com o que se parece?”, “o que ela significa?”... Como diria Gow, “estas questões nos dizem a maior parte daquilo que precisamos saber sobre a arte ocidental; entretanto, não há razão para pensá- las como universais” (GOW, 1990, p. 229-230).

Para que o projeto de antropologia da arte que vislumbramos ganhe corpo, teremos de nos perguntar 1) se estética é de fato uma categoria transcultural. Joana Overing

responderia que tal categoria é inconcebível distante dos pressupostos do pensamento moderno nos quais está imersa, trazendo assim consigo perigos para a tarefa de compreender e traduzir as ideias de outros povos acerca do belo; portanto, os antropólogos deveriam tentar superá-la (OVERING, 1996, p. 210). Segundo a autora, “os elementos básicos de nossa noção de ‘consciência estética’ não se aplicam a uma compreensão amazônica da produção de beleza” (OVERING, 1996, p. 212). Os Piaroa, entre os quais ela estudou, não possuem o “artista”, o “objeto de arte” e o “sujeito esteticamente astuto”. Isso não significa que eles não possuam uma tradição altamente desenvolvida de produção artística; esta se desdobra, entretanto, naquilo que chamaríamos de artes verbais, poéticas, visuais, musicais e performativas. A questão é que a nossa estética pouco ou nada nos ajuda a compreender o que essas “artes” são para os próprios Piaroa. 2) Quais são as questões que podem (ou devem) ser postas a um “sistema estético visual” outro? Que tipos de significados pode tal sistema engendrar e como ele o faz? Como ele pode ser experienciado simultaneamente como uma característica importante e necessária de um determinado mundo vivido (GOW, 1990, p. 229)? Qual a relação entre as coisas e sua beleza?

Especificamente no caso em questão, levando-se em consideração a importância do idioma da corporalidade para compreender a cosmologia dos povos ameríndios (SEEGER; DA MATTA; VIVEIROS DE CASTRO, 1979), qual é exatamente o papel dos padrões gráficos e, de modo mais abrangente, da cestaria como um todo, na qualidade de uma atividade técnica, para a constituição da pessoa ye’kuana e para o engendramento de saberes acerca de seu cosmos? Em que medida padrões gráficos podem de fato ser compreendidos como espécies de signos icônicos integrantes de um sistema comunicativo? Até que ponto, aliás, os povos ameríndios têm de fato que ver com esse problema ou, antes, como se dá a sua relação com um problema que lhes foi imposto de fora? Essas são algumas questões que tentaremos responder mais à frente.