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Concordâncias e divergências nas abordagens da mediatização

Updating the approach to the mediatization of info-communicational actions

3. Concordâncias e divergências nas abordagens da mediatização

Uma vez que essas considerações preliminares tenham sido expostas, agora é possível fazer um balanço sobre o que é, dentro da comunidade científica interessa- da, o mais frequentemente aceito e o que permanece em discussão ou revela oposições, mais ou menos firmemente expressas.

Os autores reconhecem facilmente que é em torno das “mídias históricas” (expressão usada para identificar a imprensa, o rádio e a televisão, uma vez que eles forma- ram um conjunto midiático, se não unificado, pelo menos com componentes que guardaram especificidades, mas cujo funcionamento corresponde a regras comumente aceitas) que as primeiras abordagens sobre a mediatiza- ção foram propostas; é difícil situar historicamente com precisão a emergência desse processo, porque ele variou de acordo com as situações regionais e nacionais, mas po- de-se voltar às décadas de 70 e 80, ou até mesmo antes disso nos Estados Unidos. O que é certo é que esse proces- so antecede o movimento de tecnicização da comunicação marcado pelos desenvolvimentos sucessivos das Tic. En-

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tretanto, a mediatização dialoga com a generalização das relações públicas, a partir do momento em que elas vão além da publicidade comercial e intervêm nos domínios sociais, culturais, empresariais e políticos. A mediatização é, primeiramente, um traço característico do que na Amé- rica Latina tem sido chamado, não sem ambiguidades, de comunicação social, e seu desenvolvimento é baseado nas “mídias históricas”, que continuará por duas ou três décadas, mas gradualmente com a concorrência cada vez mais ativa das Tic, então chamadas de não mídias. A insis- tência na midiatização não pode ser colocada em relação apenas com o movimento contemporâneo de tecnicização da informação-comunicação; atualmente, isso é um erro frequentemente cometido que não permite entender por que as “mídias históricas” permanecem diretamente en- volvidas na promoção de ações de comunicação media- tizadas. Porém, esse erro, temos que admitir, é cometido menos por pesquisadores do que por especialistas ou publicistas; os primeiros, em sua maioria, tentaram não opor sistematicamente as ações mediadas (por exemplo, por meio de técnicas de contato direto, portanto, interpes- soais) às mediatizadas, mostrando a continuidade entre elas. Quanto aos especialistas e publicistas, sob o efeito da injunção tecnológica, enfatizando de forma sistemáti- ca as vantagens virtuais dos novos dispositivos, buscaram delimitar sistematicamente as diferenças entre os dois tipos de ações. Isso deve ser ainda mais enfatizado, por- que a grande diversidade de áreas e objetos das ações de mediatização não contribuía para se ter uma representa- ção global: as visões e as abordagens que dávamos a elas permaneceram separadas, até mesmo setorizadas. E esse desmembramento até contribuiu para o fato de que o pro- cesso de mediatização não fosse designado como tal por toda parte, pelo menos com essa designação.

Se as “mídias históricas” são contemporâneas ao advento da mediatização e elas continuam sendo estrei-

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tamente associadas a esse processo, permanece o fato de que seu fortalecimento, que acontece sob diferentes mo- dalidades de acordo com as sociedades, é inseparável da expansão das Tic (o que leva ao erro comum de relacionar o futuro do processo somente ao desenvolvimento das Tic). Essa articulação entre Tic, hoje quase exclusivamente digital, e a mediatização deve, no entanto, ser detalhada:

• Na atualidade, trata-se de uma simplifica- ção por conveniência falar somente das Tic; na maioria dos casos, o que nos é proposto, consumidores-usuários ou produtores, são, estritamente falando, os dispositivos socio- técnicos, como são chamados por uma signi- ficativa literatura científica. Esses dispositivos, geralmente, combinam ferramentas de acesso e “tratamento da informação”, modalidades de intermediação, meios de difusão e conteúdos informacionais ou culturais, e até mesmo as redes chamadas de sociais. As combinações são múltiplas e a lista de dispositivos a defi- nir seria longa. Eles estão associados a normas (em parte evolutivas) de produção, circulação e consumo. Somado a isso, temos que o con- teúdo pode ser produzido por profissionais a partir do acesso a conteúdos produzidos em um contexto “amador” (termo ambíguo). Os dispositivos não são tecnológicos em si mes- mos; eles integram uma dimensão tecnológica, mas também uma dimensão sociocultural; • O processo de midiatização esteve frequen-

temente apoiado e estimulado pela expansão das Tic, o que pode ser percebido pelas redes sociodigitais, como é observado por muitos trabalhos de pesquisa, mas que deveria tam- bém ser observado em relação ao conjunto das Tic. Elas também são usadas em funções

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menos visíveis e, especialmente, menos direta- mente relacionadas aos consumidores-usuá- rios, como produção, conservação e arquiva- mento, difusão-distribuição, etc. Sendo assim, por mais decisivo que seja o papel das Tic para muitos autores e especialmente usuários como uma tendência para uma conectividade generalizada, não podemos nos ater a esse papel e negligenciar o plano de fundo ou back

office, que é igualmente essencial na media-

tização das ações comunicacionais, seja por- que toda uma série de atividades que atuam nesse processo são facilitadas e multiplicadas, seja porque elas contam com a iniciativa dos usuários finais (sem que eles possam real- mente se apropriar da produção e controlar o conteúdo, assim como postula o paradigma colaboracionista);

• Uma vez esclarecido isso, surge a questão de saber se a mediatização contribuiu para o que é apresentado como uma generalização da co- nectividade, e que deveria ser descrita como

“conexão em rede” ou constituição de uma rede,

na medida em que o acesso à conexão é (mui- to) desigual (fenômeno a que damos pouca importância, mas que deveria ser levado em consideração, porque o que está sendo esta- belecido é claramente uma distribuição muito desigual de um bem que está se tornando co- mum). De toda forma, não podemos ficar satis- feitos com a resposta que é geralmente dada, a saber, que as técnicas atuais desencadeiam relações sociais menos hierárquicas (do pon- to à massa, como era com as “mídias históri- cas”) e mais interativas (de ponto a ponto, com uma multiplicação de trocas interindividuais à

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distância). Essas respostas dizem respeito às crenças que são realmente bem enraizadas. Pode-se facilmente mostrar que os dispositi- vos atuais favorecem de facto estratégias ma- nipuladoras, dissimuladas e até violentas; em outras palavras, o aumento da conectividade não acompanha necessariamente a expansão da comunicação nas sociedades, o que vale também para a mediatização, que não deve ser dissociada dos meios e vetores de sua transmissão;

• Entre as muitas abordagens sobre a temática Tic e sociedade, parece-nos apropriado men- cionar a abordagem de Patrice Flichy, em um artigo intitulado “O individualismo conectado entre a técnica e a sociedade” (FLICHY, 2004). O autor se preocupa em partir da análise das características marcantes das sociedades con- temporâneas: profunda mutação da família, que não é mais a célula de base, deixando o in- divíduo no centro; os lazeres são cada vez mais privados e individuais; as expectativas de um indivíduo trabalhador mais autônomo e rea- tivo por parte das empresas; flexibilidade do trabalho; redução de compromissos duráveis tanto no trabalho quanto no casamento; des- filiação e isolamento social, etc. Não apenas, continua ele, as Tic não acabam com as sepa- rações observadas entre o espaço profissional, espaço privado e vida pública. Não devemos esperar que elas (como alguns esperavam) estabeleçam um elo onde as separações ou diferenças se afirmam. Mas, diz Flichy, as Tic podem “oferecer novas formas de fortalecer a autonomia e os contatos, em uma palavra, afi- liação; podem permitir que determinados in-

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divíduos ‘desfiliados’ recuperem sua afiliação, com a condição de que tenham adquirido um verdadeiro domínio dessas tecnologias [...]” (FLICHY, 2004, p. 46). Nessas condições, as Tic “fornecem recursos para os indivíduos desen- volverem seu individualismo conectado [...]” (ibid., p. 47), sendo ao mesmo tempo mais au- tônomos e mais controlados, na vida privada e na vida profissional. Recusando tanto o deter- minismo do social quanto o tecnológico, o au- tor insiste na existência de múltiplas relações na interação entre o social e a técnica. Embora ele esteja mais interessado nas sociabilidades do que nas comunicações sociais, seu modelo analítico parece pertinente para tratar a me- diatização em profundidade.

• Por fim, deve-se lembrar que a mediatização está relacionada com as reflexões sobre a pre- sença à distância, que se desenvolve em trans- missões televisuais envolvendo a participação de telespectadores como em reality shows, ou cursos on-line, contentando-nos em indicar o quanto a noção de lugar não está ausente, mas, de algum modo, reformulada.

Essas observações ajudam a fazer um balanço sobre as abordagens da mediatização tais como elas se perpetuam desde pelo menos o começo dos anos 80, primeiro com as “mídias históricas” e então, gradualmente, com a adição das Tic. No entanto, não podemos deixar de observar que as análises se dão a partir de diferentes premissas teóricas e disciplinares, e até mesmo divergentes. Parece-nos que essas análises se dividem em duas grandes categorias:

• Por um lado, aquelas fundamentadas em abor- dagens semioantropológicas (que se encon- tram principalmente na América Latina, mas também na Europa [Eliseo Verón]);

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• Por outro lado, aquelas fundamentadas em abordagens sociológico-simbólicas, catego- rização à qual seria aconselhável acrescentar vários trabalhos, tanto semiológicos quanto sociológicos, que não tratam da mediatização

per se, mas que fazem parte dessa linhagem de

investigação de facto.

Entre essas duas categorias de abordagem, se a metodologia for diferente, as diferenças não tornam as discussões e trocas impossíveis. Prova disso é, por exem- plo, a realização de um seminário conjunto por videocon- ferência entre pesquisadores da Unisinos e do GRESEC (Groupe de recherche sur les enjeux de la communication da Universidade de Grenoble Alpes) em abril de 2014. Porém, os títulos das apresentações mostram o quanto as diferenças são significativas:

Do lado da Unisinos:

• “Estudo de circuitos como espaço de apreen- são de processos comunicacionais” (José Luiz Braga);

• “Imagens totens: a fixação de símbolos nos processos de midiatização” (Ana Paula da Rosa);

• “A plurivocidade do conceito de midiatização” (Pedro Gilberto Gomes);

• “Réflexions sur la rupture épistémologique introduite par l’émergence du Web 2.0 dans l’étude de la médiatisation” (Jairo Ferreira); • “A comunhão de opostos: A ONU e suas inter-

pretações sobre indústrias criativas” (João Ladeira);

• “A prática jornalística e as figuras de controle e resistência das redações” (Beatriz Marocco); • “Afetações da mediatização sobre o oficio jor-

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com leitores e narratividades” (Antonio Faus- to Neto).

A essa lista foi acrescentada a contribuição socio- lógica de Serge Proulx (UQAM), então presente no Brasil, intitulada “Cultura da contribuição: Entre o dom e a tran- sação comercial”, que tratava especificamente das práticas de comunicação e da cultura participativa.

Do lado do GRESEC:

• “Desenvolvimento sustentável das cidades. Tic e participação dos habitantes” (Sylvie Bardoux-Boisnier);

• “Aplicativos da ‘realidade aumentada’ e visitas patrimoniais” (Marie-Christine Bordeaux e Lise Renaud);

• “Avaliação da relação com as fontes nas mídias tradicionais diante dos usos sociais inovado- res” (Bertrand Cabedoche);

• “Rádios associativos na era da Web 2.0 – O exemplo de Grenoble” (Maria Holubowicz); • “Tic e industrialização do sistema de avaliação

científica” (Ilya Kiriya, Universidade Nacional de Pesquisa de Moscou, então presente em Grenoble);

• “Produção de dados e informações públicas – Os desafios locais dos open data” (Isabelle Pailliart);

• “Da informação ao trabalho. Lógicas sociais, modos de organização e dispositivos de me- diação da informação profissional” (Adrian Staii).

Os títulos das apresentações não são suficientes, sem dúvida, para identificar com precisão as abordagens metodológicas e as bases teóricas. No entanto, eles permi- tem esclarecer o conteúdo das discussões realizadas após

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as apresentações. Não é tanto a diversidade das áreas que chama a atenção, e sim particularmente o distanciamento ou diferenciação progressiva para com os objetos geral- mente tratados pelas “mídias históricas”. Na maioria dos casos, no entanto, a bipolarização das abordagens acima mencionadas se destaca: orientação semioantropológica/ orientação sociológico-simbólica. Acrescentamos que al- guns estudos baseados nas mediações e em seu processo (progressivo) de mediatização escapam desse quadro de interpretação e, em particular, aqueles que não se interes- sam pelas estratégias dos atores da comunicação mediada e da sua mediatização gradual.

Deve ser notado também que alguns poucos au- tores tentaram superar a bipolarização que acabamos de mencionar. Entre as tentativas mais bem-sucedidas que tinham expressamente esse objetivo, é necessário citar Jean-Pierre Esquenazi sobre o discurso midiático (ESQUE- NAZI, 2002) e as reflexões e análises dos discursos cine- matográficos e audiovisuais de Roger Odin, que o levou a propor um modelo heurístico, o modelo semiopragmático, “[...] que visa permitir se fazer perguntas sobre o funcio- namento (ou não funcionamento) dos processos comuni- cacionais” (ODIN, 2011, p. 19). A orientação escolhida por Benoit Lafon é semelhante, mas aplicada às produções te- levisuais; ela se aproxima mais do sociossimbólico, e isso a longo prazo (LAFON, 2016).