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Da epistemologia dos meios à epistemologia das interações

The semioses of mediatization

2. Da epistemologia dos meios à epistemologia das interações

Naturalmente, a epistemologia dos meios encontra sua contraface na epistemologia das interações, ou seja, não se opõem, entretanto traçam caminhos diferentes que não podem ser confundidos, porque produzem epistemes distintas, se não conflitantes.

Se a epistemologia dos meios parece favorecer um viés socialmente legitimado porque decorre da mass

communication research e seus achados ou descompassos

empíricos, a episteme das interações opera em sentido inverso, porque deve estar atenta à diferença empírica e teórica que se estabelece entre processos midiáticos e comunicativos. Nesse sentido, é necessário perceber a diferença conceitual da comunicação envolvida nos dois casos, além de observar a diversidade dos respectivos ob- jetos científicos.

Se, em meados do século XX, as experiências norte- -americanas encontravam, nos meios, os instrumentos que garantiam a comunicação transmissiva geradora da notória simetria entre emissor e receptor, as tecnologias avançadas da comunicação contemporânea produzem outra tempo- ralidade que, em velocidade e aceleração, surge empirica- mente, como tempo real responsável pela construção de

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um ciberespaço planetário: o mundo parece converter-se em técnica que demarca o cotidiano como realidade em flu- xo, onde o estável e seguro está em crise, embora em rede. Tudo parece se reduzir a um tempo eternamente presente, no qual a aceleração não chega a demarcar a distinção dos espaços e dos tempos dedicados ao trabalho, ao lazer, às práticas individuais e coletivas do viver.

Tudo é imediato e tudo se equivale: tempos, espaços, vida, homens e afetos, e nada chega a completar a espessu- ra da realidade, apesar da incessante necessidade de tudo reter na memória tecnológica dos registros digitais que, em quantidade, perdem sua relevância referencial. Tudo se re- gistra, mas tudo se perde na memória de uma máquina.

Ante essa realidade dos processos midiáticos, há necessidade de perguntar de qual comunicação estamos falando ou tratando. Tudo leva a crer que o conceito de co- municação se transformou, porque ela se tornou maquínica e disponível para ativar todas as conexões caracterizadas pela convivência com os meios técnicos. De um lado, parece evidente que essa comunicação já nem mesmo transmite, porque sua mensagem se transformou na ação de entreter e preencher um inexistente ou precário tempo de ócio va- zio. Por outro lado, é necessário considerar que está ultra- passada a célebre crise entre representação e representado que situava a realidade distante e separada pela imagem ou pela visualidade e passou a constituir a grande temática de análise pós-moderna como parâmetro teórico e empírico e nutriu a epistemologia das últimas ou das primeiras dé- cadas do século XX e XXI, desenvolvida por autores como Baudrillard (1981); Virilio (1984); Sfez (1992); Luhmann (2004), nas datas das suas publicações originais.

Sem mensagens, entende-se midiatização como consequência do cotidiano invadido pelas técnicas, porém, na sua semiose, a midiatização pode ir além da tecnologia que, entretanto, exige ser considerada. Nesse sentido, Si- mondon é decisivo:

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La cultura se ha constituido en sistema de defensa contra las técnicas; ahora bien esta defensa se presenta como una defensa del hombre, suponiendo que los objetos téc- nicos no contienen realidad humana. Que- rríamos mostrar que la cultura ignora en la técnica una realidad humana y que para cumplir su rol completo, la cultura debe in- corporar los seres técnicos bajo la forma de conocimiento y de sentido de los valores. [...]La oposición entre técnica y cultura du- rará hasta que la cultura descubra que cada máquina no es una unidad absoluta, sino so- lamente una realidad técnica individualiza- da, abierta de acuerdo con dos caminos: el de la relación con los elementos, y el de las relaciones interindividuales en el conjunto técnico (SIMONDON, 2007, p. 31/162).

Ao lado das afirmativas que tendem a desmon- tar um conceito humanista da cultura, Simondon é ainda mais radical quando, ampliando a análise da influência sociocultural dos objetos técnicos, apresenta um concei- to-chave para sustentar sua teoria da técnica: trata-se da transdução: “el ser técnico evoluciona por convergencia y

adaptación a si mismo; se unifica interiormente según un principio de resonancia interna” (p. 42). Esse princípio

constitui o elemento-chave para sustentar a matriz da tec- nicidade e introduzir, além da técnica, outro conceito que parece interferir diretamente sobre o território epistêmi- co da midiatização:

La máquina que está dotada de una alta tecnicidad es una máquina abierta, y el con- junto de máquinas abiertas supone al hom- bre como organizador permanente, como intérprete viviente de máquinas, unas en relación con otras. Lejos de ser el vigilan- te de una tropa de esclavos, el hombre es el

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organizador permanente de una sociedad de objetos técnicos que tienen necesidad de él, como los músicos tienen necesidad del director de orquestra. […]. Para que la representación de los contenidos técnicos se pueda incorporar a la cultura, es preciso que exista una objetivación de la relación técnica para el hombre (SIMONDON, 2007, p. 33/163).

Em uma análise abrangente da midiatização e ten- tando superar um estéril humanismo de oposição entre cultura, homem e técnica, é imprescindível considerar que a relação sociotécnica só se completa quando o homem consegue entendê-la como um poder que pode determi- ná-lo ou complementá-lo, operando, no primeiro caso, sua subversão ou, no segundo, sua conversão. Naquela análi- se, propõe-se outra cultura feita da unidade dos objetos técnicos que se encontram a serviço do homem, na medi- da em que ele os entende como ampliações ou ressonân- cias inteligentes dele próprio.

Desfocar a matriz da midiatização, deslocando-a da técnica para o homem, parece constituir estratégia fun- damental para que possamos entender o mundo contem- porâneo feito de homens e objetos técnicos em fluxos de convergências, mas sem norma, controle ou hegemonia. Essa estranha mobilidade parece constituir uma chave perceptiva para que se consiga interpretar o que pode- mos entender por midiatização, que só pode ocorrer na fluidez com que apreendemos a transformação da socie- dade a partir da técnica, embora sem determinismos ou submissões. Essa percepção exige que consideremos ou- tras mobilidades que decorrem do mesmo fluxo, embora nem sempre seja evidente seu inexorável deslocamento. A realidade social midiatizada é aquela que incorpora, a partir da técnica, o fluxo das suas dúvidas, a fim de en- contrar possíveis certezas também fluidas, embora sem determinações.

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