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1 “Desembarques” do difusionismo: reminiscências

3. Das mediações à midiatização

Veremos que a dinamização dos processos mi- diáticos vai fornecendo condições para o surgimento do cenário da midiatização, transformando a sociedade em uma nova ambiência e, ao mesmo tempo, ensejando a emergência de um novo modo de ser no mundo (GOMES, 2017). Sintomas estariam a indicar o rastro de complexas interfaces entre práticas sociais a partir de um outro tipo de mediação engendrada por lógicas dos processos midiá- ticos. Apontam pistas de uma problemática distinta das teorias que até então afirmavam que os meios deveriam estar subsumidos às práticas sociais diversas, aparecen- do assim mais como uma questão de “cultura” (MARTÍN- -BARBERO, 1987).

O interesse pelas mutações causadas pela intensi- dade das ações dos processos midiáticos remonta aos anos 1980, quando se observava de modo mais sistemático a “adaptação das instituições das democracias industriais às mídias, tornando-se estas últimas as intermediárias incon- tornáveis da gestão do social” (VERÓN, 2004, p. 278). Uma longa pesquisa sobre a cobertura midiática francesa em 1979 a respeito da explosão em usina nuclear parece-nos convergir com a afirmação acima e também destacar um marco seminal sobre os estudos sobre midiatização. Des- creve as estratégias da cobertura de jornais, revistas e tele- visão daquele país, chamando a atenção para as operações discursivas através das quais a noção de atualidade deriva de um determinado trabalho de “fabricação” realizada pe- los meios (VERÓN, 1981). A matriz orientadora deste tra- jeto de investigação, formulada já nos anos 1970, sustenta

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a hipótese segundo a qual a produção de sentido se faz no interior de uma atividade assimétrica entre produtores e receptores de discursos. A isso se chamou de “desajuste” pelo fato dos discursos, tanto em produção como em re- cepção, se estruturarem em torno de gramáticas e lógicas distintas. A este fator se atribuiria a impossibilidade da produção de sentido se engendrar em torno da noção de equilíbrio (VERÓN, 1978). A noção de midiatização aparece assim, pela primeira vez há 30 anos, na Argentina em semi- nário sobre as transformações dos ambientes dos telejor- nais causadas por modalidades de interação entre “setting televisivo” e o público dos noticiários (VERÓN, 1986). No- vas formas de contato entre âmbitos resultam da interio- rização do espaço dos noticiários televisivos e, particular- mente, do reconhecimento da existência de novos coletivos que já não tinham mais uma relação espectatorial com a TV, deixando de considerá-la como uma “janela do mundo”. Destaca-se neste processo interacional a saída de cena de apresentadores-ventríloquos e a emergência de apresenta- dores investidos de uma “função expressiva cada vez mais importante” (VERÓN, 2009, p. 240). Estabelece-se um novo vínculo entre estas duas instâncias graças à performance do corpo do apresentador (VERÓN, 1983). Dela resulta, além do contato, a confiança como base para um outro tipo de contrato de leitura, que se fundaria a partir de comentário de um próprio apresentador de telejornal: “Os telespecta- dores creem em nós porque expressamos nossas dúvidas” (VERÓN, 2009, p. 240).

Ao operar em práticas sociais diversas segundo mecanismos distintos em termos de caráter não linear e não determinístico, a midiatização produz em cada uma delas efeitos diferentes, e que são distintos aqueles que se manifestavam no contexto da “sociedade dos meios”, reenviando-nos “à complexidade crescente da discursivi- dade na sociedade pós-industrial” (VERÓN, 1989, p. 43). Isso acontece nas condições de midiatização dos discur-

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sos sociais, onde, “longe de provocar, como se pretendeu, uma simplificação ou uma ‘unidimensionalização’ dos dis- cursos, a midiatização das sociedades democráticas torna as estratégias discursivas cada vez mais complexas [...]” (VERÓN, 1987, p. 24 e 25). No caso do discurso informa- tivo, observa-se o deslocamento da importância atribuí- da aos enunciados pela ênfase que passa a ser atribuída à enunciação. A valorização do “modo de dizer” tira de cena o “discurso verdadeiro”, segundo a apresentação de cená- rios de operações discursivas nos quais a verdade apenas estaria sendo disputada entre as enunciações em circula- ção. Um dos efeitos deste deslocamento que corresponde à transferência para a recepção da valorização do enun- ciado é que “[...] transfere-se para esta parte das tarefas atribuídas ao enunciador: a interpretação” (VERÓN, 1987, p. 25). A enunciação do discurso político é um exemplo desta valorização da materialidade discursiva, pois

a TV generalizou a construção, na ordem simbólica, do que podemos chamar de ‘corpo significante’. Como resultado desta evolução, a enunciação política passa agora pela elaboração do corpo político. O corpo político não é o corpo significante de um cidadão qualquer; interpela a imagem cor- poral do telespectador, ativa nestes modos de leitura da gestualidade cotidiana, mas se encontra em ligeira defasagem a respeito da dita gestualidade (VERÓN, 1987, p. 25).

A noção de midiatização visualizada na forma abaixo de diagrama aparece uma década após o primeiro anúncio da sua elaboração conceitual, onde se descrevem a ambiência, os componentes, suas dinâmicas, chaman- do-se a atenção para as afetações provocadas pelas rela- ções entre mídias, instituições e atores sociais. A descri- ção destas relações permite que se distingam dinâmicas constituídas por feedbacks complexos, diferentemente

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dos fluxos previstos pelas teorias da “ação social organi- zada”. As duplas flechas apontam uma intensa atividade de intercâmbio não linear entre estes níveis. Esse aspecto lembra que a complexidade da midiatização faz com que não exista nenhum setor da vida cotidiana que não tenha sido afetado por estas muitas relações por ele descritas (VERÓN, 1997).

Gráfico 1 – Modelo de midiatização Fonte: Eliseo Verón (1997, p. 15).

O diagrama destaca ainda a especificidade de um trabalho de natureza transversal por parte das lógicas e “gramáticas midiáticas” e também pela circulação (ROSA, 2017), mediante operações de acoplamentos do trabalho significante realizado no âmbito das instituições, meios e atores sociais. Nestas condições os

meios são fatores cada vez mais importan- tes na determinação das características da mudança. Não por si sós, e sim na medida em que se inserem de maneiras específicas nas múltiplas dinâmicas do funcionamento social. Os meios estão se mesclando com todos os aspectos significativos do funcio- namento social. Temos que compreender como vão se estruturando historicamente as relações entre os meios e as instituições sociais e os atores individuais. Em cada um

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destes três níveis há múltiplas estratégias que, de uma maneira mais ou menos con- fusa, têm em conta as estratégias presentes nos três níveis. As estratégias às vezes são convergentes e às vezes divergentes. Este sistema de relações entre meios, institui- ções e atores é complexo porque não com- porta relações causais (VERÓN, 1998, p. 3).

O diagrama funcionou como uma matriz para a investigação sobre o funcionamento da midiatização em práticas sociais diversas, envolvendo a articulação entre ofertas do “mercado discursivo” e as estratégias de leitu- ras realizadas pelos atores sociais, em diferentes contex- tos: a relação de jovens escolares com bibliotecas (VERÓN, 1999); a apropriação de telemissões científicas por parte de espectadores (VERÓN, 1986); os processos de leitura/ apropriação de exposição por parte de visitantes de mu- seus (VERÓN, 1989); as transformações do uso do metrô por parte dos usuários (VERÓN, 1986); a midiatização da AIDS a partir de análises da cobertura de mídias e cam- panhas junto a populações de risco no contexto francês (VERÓN, 1988). Mostra-se que lógicas de coberturas jornalísticas e de campanhas institucionais valorizam a construção discursiva, através de operadores de noticia- bilidade (como a noção de “atualidade”), e, no caso das campanhas, as ênfases sobre aspectos especificamente publicitários. Já ali a pesquisa concluía sobre os efeitos da midiatização ao observar que as coberturas/estratégias de comunicação deveriam reconstruir a AIDS segundo uma doença da atualidade que interpelaria cada pessoa individualmente, o que significaria ultrapassar o status da AIDS, considerado por um grande número de pessoas apenas como simples fato da atualidade jornalística. Mas para se abandonar o ângulo da AIDS da atualidade se faria necessário

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produzir uma ruptura junto ao receptor des- ta noção, e que a mesma deveria ser feita fora das formas (spots) publicitárias institu- cionais. Se mantido este ângulo, este tipo de subversão pode ser interpretado como pro- va de competência publicitária do enuncia- dor. [...] O spot ‘subversivo’ arrisca se tornar então um golpe mediático, que ativará forte- mente a relação positiva da ‘atualidade’ (um golpe publicitário é por definição um fato da atualidade). O gênero publicitário tem o poder de subverter sua própria subversão (CAUSA RERUM, 1988, p. 74 e 77).

Resultados das diferentes estratégias investigadas apontam que, no lugar da confirmação das lógicas e ex- pectativas das influências das operações previstas pelas instâncias midiáticas ou não, manifestam-se complexas interpenetrações entre operações de produção de senti- dos de universos institucionais e daqueles dos atores so- cais, sem, contudo, convergirem. O desafio da tarefa para se estudar estas interpenetrações impõe ao pesquisador uma restrição: um acesso apenas fragmentário às discur- sividades como possibilidade de se descrever o que se passa na interface produção/reconhecimento, em termos de sentidos produzidos pelas operações dos sistemas ins- titucionais (midiáticos) e as dos atores sociais.

Estas questões colocam o pesquisador diante do estudo da oferta/apropriação de discursos na perspecti- va de uma articulação entre produtores e receptores, de caráter assimétrico, uma vez que a discursividade que se produz entre eles se faz segundo gramáticas e lógicas dife- rentes. Ali, desponta a circulação (FERREIRA, 2013; 2016; 2017) constituída pela relação destes polos, cujo trabalho de materialização de sentidos se enuncia também nas in- terpenetrações destes dois polos. Isso significa dizer que “entre a produção do sentido e seu reconhecimento [...] não há causalidade linear” (VERÓN, 2004, p. 82 e 83).

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Tanto a dinâmica de interpenetração daqueles polos como a da circulação podem ser examinadas atra- vés de processos de investigação nos quais o observador examina acoplamentos. Mas efeitos deles não podem ser reconhecidos a priori, pois dependem das manifestações dos complexos feedbacks. Sabe-se, porém, que os efeitos destas articulações resultam na complexificação dos pro- cessos de midiatização. Para alguns, os indicadores sobre estas manifestações estariam apontando para o fim da mi- diatização (SCHULZ, 2017).

Os efeitos da digitalização sobre processos de produção, distribuição, recepção e uso dos meios. A internet trouxe espaço de co- municação universal, acessível a todos, não só a profissionais, como jornalistas, mas também a leigos e sobretudo políticos e or- ganizações que no passado dependiam dos meios de comunicação de massa se quises- sem ser reconhecidos pelos públicos [...]. Os jornalistas vêm perdendo seu monopólio [...] agora é bastante fácil ignorar a filtra- gem e o gatekeeping dos meios [...] e, as- sim, evadir-se das potências da mídia. Este processo de profissionalização da comuni- cação pública tem consequências de longo alcance para os sistemas de comunicação política [...]. Os processos de comunicação e de influências baseados nos meios têm sido cada vez mais complementares e até subs- tituídos por comunicações de fontes não midiáticas [...]. Os políticos podem ignorar a mídia e ir ao público por conta própria (SCHULZ, 2017, p. 2 e 3).

Diferentemente do que preconiza o autor, estes indicadores não estariam apontando o funcionamento da midiatização na perspectiva dos ângulos que propõe este artigo? Nestes termos, Eco, ao descrever os efeitos da mi-

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diatização sobre o destino da democracia representativa, chama a atenção para técnicas de estratégias comunicacio- nais postas em funcionamento por governantes, através da criação de sites e outros tipos de contatos equidistan- tes de porta-vozes mediando relações entre instituições sociais, o âmbito midiático e a sociedade. São dispositivos que permitem que presidentes, primeiros-ministros en- trem em contato direto com as pessoas, sem a mediação de jornalistas enquanto mediadores vinculados ao siste- ma midiático (FAUSTO NETO et al., 2012). Sem dúvida que tais mecanismos estariam apontando o deslocamento e mesmo o enfraquecimento da mediação dos jornalistas, mas estariam igualmente indicando a emergência de no- vos circuitos de midiatização que afetariam as interações entre instituições políticas e as sociedades.

Para entender estes novos cenários e os sentidos de suas transformações, o caminho não estaria simples- mente em constatar a heterogeneidade que caracteriza a dinâmica de interação entre estes sistemas midiáticos e sistemas dos atores sociais. É preciso ir além, descre- vendo as relações entre eles, buscando-se indicativos que permitam conhecer algo mais do que propõem algumas abordagens da “sociologia de comunicação” voltadas para os efeitos destas estratégias, da perspectiva e de lógicas apenas das instituições.

Os escritos sobre a midiatização nestes 30 anos fazem um imenso trajeto segundo geografia triangular – “Europa, França e Bahia” –, mas não são referidos por trajetos mais jovens em termos da produção investigativa sobre a midiatização, em contextos nos quais as “patas” do funcionalismo anunciam sua presença. Talvez por de- sinformação ou limitações linguísticas, temporalidades e contextos latino-americanos nos quais se estuda, ao lon- go de quatro décadas, a midiatização são praticamente ignorados. Entre duas temporalidades – anos 1980 e os primeiros anos deste século – em contexto geoacadêmico

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anglo-saxão a midiatização se apresenta sob roupagens e problemáticas distintas. Lança-se mão de modelos ana- líticos buscando-se, de um lado, a crença nas “variáveis” enquanto condão explicativo sobre a midiatização e suas relações com as instituições sociais. De outro, surgem ca- minhos metodológicos que, equidistantes das “epistemo- logias binárias”, buscam dar conta de objetos que emer- gem na pulsão do “ir adiante” processual da midiatização. Nestas dinâmicas, além dos meios se constituírem como operadores e interpretantes de um cenário onde apare- cem novas condições de gestão da vida social, os recep- tores aparecem na condição de “novos coletivos definidos como exteriores à instituição televisiva {por exemplo} e atribuídos ao mundo individual não mediatizado, do desti- natário” (VERÓN, 2009, p. 239). Neste contexto, a internet é fundamental na formação destes coletivos, na medida em que torna possíveis e visíveis marcas dos seus discur- sos sem, necessariamente, a mediação de outros fatores que não sejam fragmentos de discursividades (em grande extensão anônimas), que vão se transformando em elos de novas formas de individualidades.

Em vez de prognosticar o fim da midiatização, no- vas formas comunicacionais devem ser examinadas com mais profundidade, visto que cada vez mais os aconteci- mentos e outros discursos de várias naturezas se mes- clam e circulam nas plataformas da midiatização. Seus entrelaçamentos têm a potencialidade de produzir outros efeitos e representam a importância que tomam os discur- sos como condição de produção de outros que emergem (FAUSTO NETO et al., 2017). Em vez de homogeneizar enunciações, os entrelaçamentos produzirão crescente- mente modalidades enunciativas, mantendo em aberto as condições de produção de sentidos. Assim, em vez de se prognosticar o fim da midiatização, e para que se possam compreender seus próprios horizontes, para além do es- tágio atual,

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é necessário abarcar o conjunto dos proces- sos da midiatização, velhas e novas tecnolo- gias: do lado da oferta, estamos assistindo a uma integração tecnológica sem prece- dentes [...]. Mas há que se entender que esta convergência tecnológica não implica uma homogeneização, e sim o contrário: produ- zirá uma diversidade crescente de modali- dades de uso. Convergência crescente em produção, divergência crescente em recep- ção: a distinção entre produção e reconhe- cimento é hoje mais necessária do que nun- ca [...] (VERÓN, 2009, p. 245).

A midiatização segue outras temporalidades no contexto latino-americano através das operações que en- volvem articulações de velhos e novos meios, seja ainda por suas afetações sobre o funcionamento social, con- vertendo-os assim em objeto de investigações. Também vai adiante pelo trabalho de pesquisadores em torno da cooperação e pelo intercâmbio de várias atividades na- cionais e internacionais, nos níveis de redes, instituições, etc., projetos de pesquisa, produtos editoriais, formação de pesquisadores no âmbito da pós-graduação, linhas de pesquisa, eventos, etc.2.

Destacamos, particularmente, a ação do Centro In- ternacional de Semiótica e Comunicação – CISECO (www. ciseco.org.br), em Japaratinga/AL, do qual Eliseo Verón foi fundador e Presidente de Honra. O CISECO promove anualmente o seu encontro temático – que vai para sua 9ª versão em 2018 – com duração de cinco dias, nomea- do como Pentálogo, debatendo pesquisas relatadas por

2 De modo resumido, destacamos as Redes Prosul e do “Procad de Co- municação”; o Centro de Investigaciones en Mediatizaciones – CIM, em Rosário (Argentina); a Linha de Pesquisa “Midiatização e Processos So- ciais”, do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da UNISINOS (São Leopoldo/Brasil); sua revista Questões Transversais; a realização do encontro internacional, na sua segunda versão, sobre “Midiatização e Processos Sociais”.

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expositores internacionais e nacionais. Realiza também o Colóquio Semiótica das Mídias, no qual são apresentadas investigações em curso por pesquisadores, professores e estudantes de pós-graduação e graduação3. Uma das jus-

tificativas deste coletivo de pesquisa repousa na ideia de que o CISECO se coloca como espaço de estudos reunindo pesquisadores interessados no desenvolvimento e aplica- ção científica da Semiótica e das Ciências da Comunicação. Ao mesmo tempo, promove atividades que desenvolvam e divulguem o conhecimento semiótico e comunicacional no contexto da América Latina em diálogo com outras dis- ciplinas que lançam seus olhares, de modo interdiscipli- nar, sobre a midiatização.