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O objetivo desse item não é descrever todos os conflitos existentes no meio rural, muito menos expor as formas violentas que, eventualmente, assumem dentro do contexto nacional. Embora não seja esse o foco desta pesquisa, é preciso situar o leitor acerca dos conceitos aqui utilizados a respeito desse tema.

Entre esses conflitos, aquele que mais chama a atenção é o da luta pela terra. A luta pela posse e permanência na terra é uma das características dos trabalhadores rurais que insistem em continuar no campo, mesmo enfrentando diversos tipos de violência: a violência humana imposta por agentes armados, quer seja do Estado ou dos grandes proprietários; a violência política que nunca priorizou suas necessidades, e a violência econômica movida por um modelo de desenvolvimento sustentado pela desigualdade social (BARI, 1998).

A luta pela terra é uma das mais antigas manifestações sociais no Brasil. Ela assumiu ao longo da história diversas formas em diferentes contextos, mas sempre esteve presente no cenário brasileiro, dando visibilidade e chamando a atenção da sociedade em geral, de políticos e de estudiosos para um dos maiores problemas brasileiros: a elevada desigualdade na distribuição da terra.

Um dos aspectos que chama a atenção em relação aos movimentos de resistência e luta pela terra no país é a repressão e a violência com que foram e ainda são tratados. Segundo Paulilo (1998, p. 104), “no Brasil, insurreições populares sempre foram reprimidas com muita violência”. Os exemplos clássicos são as lutas indígenas e dos quilombolas, as guerras de Canudos e do Contestado e mais recentemente as chacinas de Corumbiara, de Carajás e de Felisburgo39. Na maioria das vezes, essas repressões foram realizadas diretamente pelo Estado ou através de milícias particulares fortemente armadas, jagunços, pistoleiros etc. Inúmeros casos de despejos, mortes e ameaças registrados anualmente pela Comissão Pastoral da Terra (CPT) e noticiados na mídia demonstram a continuidade da repressão e da violência contra os Sem Terra que lutam pela “terra liberta”, pela “terra prometida” de “morar”, de “conviver” e de “trabalhar” (CANUTO e SILVA LUZ,

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O massacre de trabalhadores sem-terra em Felisburgo (MG) aconteceu em 20 de novembro de 2004, onde além do assassinato de cinco trabalhadores e ferimentos em outros quatorze, os pistoleiros atearam fogo no acampamento, em pleno século XXI (RADIOBRAS, 2005).

2002). A explicação possível para tal situação é a ameaça que essas lutas representam para as elites agrárias instaladas no poder.

Assim, a luta pela terra tem sido uma forma de pressão e reivindicação de grupos que se organizaram para resistir às injustiças, à exclusão social e à expulsão de suas posses no meio rural, situando-se dentro do contexto da luta pelo espaço e pela ruptura de poder. É o produto da reação da população oprimida, sempre que sua reprodução social encontra-se ameaçada.

De acordo com Sauer (2003: 17):

A luta pela terra é um processo social, político e econômico que abarca um conjunto de transformações no campo, redistribuindo a propriedade da terra e o poder, redirecionando e democratizando a participação da população rural no conjunto da sociedade brasileira [sic].

Cada grupo social possui uma lógica, uma perspectiva de vida; sua história, seu contexto, seu espaço, suas necessidades e demandas, produzindo assim suas manifestações próprias com significados distintos. Como afirma Souza e Trigueiro (1986, p. 141): “na realidade, têm-se não uma luta pela terra, mas tantas quantas forem os grupos socialmente identificados”. Além disso, a luta pela terra não assume somente o seu lado visível do conflito aberto. Em um conceito mais amplo, existe também o lado latente dos riscos do endividamento, da sobrevivência, da precariedade da posse da terra, dos trabalhos temporários e inúmeras dificuldades que os trabalhadores rurais, de maneira geral, enfrentam em seu cotidiano para permanecer na terra.

Mesmo havendo demandas individuais, a luta pela terra é uma ação coletiva. No presente estudo adota-se o termo “mobilizados na luta pela terra” para fazer referência àquelas famílias ou grupo de indivíduos que aderem às estratégias dos movimentos sociais, a exemplo do MST. Esses grupos utilizam principalmente as ocupações40 e os acampamentos41 como forma de pressão para a conquista da terra. Como afirma Fernandes (2001b), nas últimas décadas essas estratégias tem

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De acordo com Fernandes (2001a, p. 52) a ocupação é uma forma de acesso à terra, constituindo- se em “um processo sócio-espacial e político complexo [...] decorrente de necessidades e expectativas, que inaugura questões, cria fatos e descortina situações” no decorrer da luta pela terra.

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Fernandes (2001a, p. 75) afirma que “os acampamentos são espaços e tempos de transição na luta pela terra”, um lugar marcado por constantes mobilizações, resistência e interação por parte dos Sem Terra. São concentrações de famílias de trabalhadores rurais que montam seus barracos de lona nos mais diversos locais demarcando sua identidade de Sem Terra.

sido a principal ação na luta pela terra, razão pela qual o termo se refere, preferencialmente, a essas manifestações.

A desigualdade social e econômica existente no Brasil foi moldada de certa forma pelo modelo sócio-econômico imposto desde o início de sua colonização: domínio e controle sobre a posse da terra por uma minoria privilegiada, grandes propriedades de terras, agricultura baseada na monocultura e voltada para a exportação, mão-de-obra explorada e excluída social, política e economicamente.

Para Wanderley (2001, p. 36), “no Brasil, a grande propriedade dominante em toda a sua história, se impôs como modelo socialmente reconhecido”. Desse modo, as elites detentoras das terras e da renda souberam se manter às custas da exploração e exclusão de uma grande massa de trabalhadores rurais. A luta pela terra sempre foi, pois, a luta dessa maioria excluída contra uma minoria privilegiada. Porém, aqueles souberam manter acesa a chama da esperança na “terra prometida”, por meio da resistência e luta pelo acesso à terra, pela vida e pela reprodução social, como forma de pressão e reivindicação de seus direitos (FERNANDES, 1999).

A recuperação da história das lutas dos trabalhadores rurais é um desafio, tendo em vista a escassez, a dispersão dos registros e a tendência brasileira, à semelhança de outras histórias de dominação, de apresentar sempre a versão dos vencedores. Nesse sentido, Medeiros (1989, p. 11) afirma que o trabalhador rural foi visto por muito tempo como “passivo, submisso, cordato, incapaz de formular seus próprios interesses e de lutar por eles”.

Do mesmo modo, Moraes Silva (2004, p. 10), tratando da luta pela terra, afirma que seu objetivo é relatar a “história dos pobres do campo, geralmente excluídos da ‘grande’ história”. Em pouco mais de duas décadas essa luta tem trazido algumas conquistas importantes, como é o caso dos inúmeros assentamentos e das políticas públicas que surgiram, principalmente, a partir da década de 1990. A luta pela terra vem, assim, imprimindo sua própria história no contexto do país.

A presente dissertação, aparentemente na contramão desse movimento, é uma tentativa de trazer alguns esclarecimentos a respeito das opiniões e percepções daqueles indivíduos que, apesar de desejarem a terra, não fazem parte dessa história de mobilização e luta pela terra.