• Nenhum resultado encontrado

3.2 O público pesquisado e sua inserção sócio-econômica

3.2.1 A trajetória de vida

A presente seção tratará brevemente da origem territorial e da trajetória dos entrevistados quanto ao acesso à terra, incluindo a trajetória dos pais dos entrevistados, antes de chegarem ao município de Caçador. Esse tema permite algumas noções a respeito da inserção dos entrevistados no município, no qual se desenvolveu esta pesquisa.

A propósito, no Capítulo 4 e 6 novas questões serão colocadas e aprofundadas, tais como: o sonho da terra própria; os motivos da não-mobilização em acampamentos e ocupações de terra; as dificuldades em relação ao trabalho de parceria; a perspectiva de futuro dos entrevistados, entre outros aspectos.

Mais da metade dos entrevistados é natural do próprio município de Caçador, 12 pessoas do total de 22. Entre os demais, 5 são provenientes do estado do

Paraná, 4 de municípios vizinhos do próprio estado de Santa Catarina e 1 entrevistado oriundo do Rio Grande do Sul. No entanto, quando se investiga a respeito da procedência dos pais dos entrevistados, os descendentes de gaúchos sobem para 7, os originários do estado de Santa Catarina somam 11 famílias e o restante provém do Sudoeste do Paraná (4 famílias). Dentre as famílias originárias de Santa Catarina apenas duas não eram do Oeste Catarinense, sendo uma de Lages (SC) e outra de Mafra (SC).

Esses dados demonstram os diversos fluxos migratórios ocorridos no século passado que contribuíram para a formação do município de Caçador, como visto anteriormente. No início os descendentes de italianos vindos do Rio Grande do Sul, paralelamente os agricultores do Sudoeste do Paraná e nas últimas décadas, além dessas procedências, também migraram famílias do próprio estado de Santa Catarina, sobretudo da região Oeste.

Nesse sentido, um dos entrevistados esclarece a trajetória feita pelos seus familiares antecessores:

Meus avós vieram da Itália e meus pais vieram do Rio Grande do Sul, mas vieram sem nada pra cá. Vieram trabalhando e aí conseguiram comprar uns terrenos, só que ficou pouco para os filhos. Isso aqui que nós estamos morando em cima foi dele. Vieram pra cá em busca de terra, porque a maioria dos gaúchos que vieram pra cá foi em busca de terra.

E07 – Proprietário, Banco da Terra, 42 anos. Além da trajetória descrita e da menção ao trabalho para a compra da terra, comum a muitos migrantes, ressalta-se a condição apontada pelo entrevistado a respeito da pequena quantidade de terra repartida entre os filhos. Esse processo de insuficiência de terra para divisão entre os herdeiros aconteceu com 7 famílias (32% dos entrevistados) e é comum a milhares de famílias, principalmente no Oeste catarinense. Concordando com tal afirmação, Abramovay (2001)57 aponta um percentual de 35% de famílias no Oeste catarinense que teriam de dividir a terra entre seus descendentes, mas o quinhão a ser repartido não seria suficiente. Nesses casos há necessidade da busca de outros meios de sobrevivência ou mais terra para o sustento dos filhos que decidiram permanecer no meio rural.

57

Esse autor coordenou uma pesquisa a respeito dos impasses sociais da sucessão hereditária na agricultura familiar no Oeste Catarinense, selecionando 10 municípios representativos dessa região para os trabalhos de campo que resultou na entrevista de 116 pequenos agricultores.

As três principais regiões originárias dos pais dos entrevistados são tipicamente caracterizadas pela forte presença da agricultura familiar. Com efeito, somente o pai de um dos entrevistados não tinha vínculos com a área rural. Dos demais genitores dos entrevistados, 16 foram pequenos proprietários em algum momento da sua vida, 3 trabalharam toda a vida como arrendatários e 2 eram trabalhadores assalariados na área rural, o que pressupõe certa experiência nas atividades agropecuárias e alguns traços culturais relacionados à agricultura familiar, tais como: o gosto pela terra, a pouca adaptação aos trabalhos urbanos e a autonomia no trabalho. Essas características tendem a influenciar os trabalhadores rurais sem terra própria a permanecerem no meio rural, mesmo sob precárias condições de vida.

Mesmo entre aqueles entrevistados que não nasceram em Caçador o tempo mínimo de moradia neste município é de pelo menos 4 anos. Alguns, porém, há mais de 20 anos. Essa condição também facilita o conhecimento e a adaptação às condições físicas e socioculturais do município.

Alguns dos pais dos entrevistados que possuíram a propriedade da terra foram obrigados a vendê-la ou simplesmente a perderam para grileiros. Foi o caso de 4 famílias de entrevistados que por dificuldades diversas ficaram sem suas terras. Ainda, entre os pais dos entrevistados, 3 passaram por empregos urbanos e 2 por empregos rurais. Por outro lado, entre os próprios entrevistados, além dos trabalhos na lavoura, 8 passaram por trabalhos não agrícolas, sendo 6 na área urbana e 2 em áreas de garimpos. Os demais trabalharam durante toda a vida na roça, sendo que a maioria em arrendamentos ou parcerias. De acordo com declarações dos entrevistados, todos sonharam ou sonham, algum dia, ter sua terra própria ou ampliá-la. É o que se depreende do depoimento de um dos entrevistados, que conseguiu a propriedade da terra por meio de financiamento do Banco da Terra:

Toda vida foi o meu sonho, como o meu pai tinha [a propriedade da

terra]. Meus irmãos eles foram se empregando, o que se empregou

em firma se empregou, o que foi motorista, pegou de motorista e acharam que não viviam fora disso, mas eu sou da enxada e tenho que continuar nisso aí, um dia vai melhorar e tive fé e hoje graças a

Deus estou aqui [na propriedade adquirida].

E23 – Proprietário, Banco da Terra, 50 anos. Na fala desse entrevistado observa-se que os seus irmãos optaram por outras ocupações fora da área rural, tendo em vista as dificuldades para permanecer

no campo. Por outro lado, nota-se a sua vontade de permanecer na terra e a sua esperança de conseguir um pedaço de terra. Essa ligação com a terra ou o “gosto pela terra” está presente na fala de muitos entrevistados e faz parte da cultura dos agricultores familiares, de maneira geral.

De acordo com Abramovay (2001, p. 88), “o acesso à propriedade da terra é visto pelos agricultores do Oeste catarinense como o único caminho para construir uma trajetória ascendente na profissão agropecuária”. O autor afirma ainda que o arrendamento não é considerado o caminho ideal para acessar a terra na condição de proprietário e aduz, com base nos estudos realizados, que pode ser essa a razão para o grande interesse pelo financiamento da terra por meio de crédito fundiário. O assunto, contudo, voltará a ser discutido no Capítulo 6.

Um outro entrevistado assim descreve a sua trajetória:

Meu pai era uma pessoa que se criou em terrenos dos outros, trabalhando assim na roça, toda vida na roça, de peão. Morreu pobre, trabalhava só no que era alheio. Daí nós se criamos assim igual a ele, trabalhando de peão, fomos indo pra frente dando uma de camarada. Chegou ao ponto que vim parar em Caçador trabalhar

nas firmas [serrarias], depois não deu mais pra trabalhar nos

empregos por problemas que começou a lei dos estudos, porque a gente tinha pouco estudo, as empresas já estavam exigentes. Acabei saindo e voltei pra roça. Hoje estou trabalhando na agricultura,

pagando esses arrendo aí [arrendamento].

E14 – Arrendatário, Sem Sem, 53 anos. Na fala desse entrevistado observa-se como a condição dos pais pode influenciar a dos filhos: “daí nós se criamos assim igual a ele”. Essa influência familiar nas decisões profissionais dos filhos também é estudada pelo autor citado anteriormente. Entre os agricultores entrevistados pelo referido autor, 48% estimulam os filhos a permanecer na profissão.

Fica visível, também, na fala do entrevistado E14, a absorção da mão-de- obra rural por parte das serrarias em Caçador e depois o retorno para a roça. Esse retorno às atividades agrícolas se deve aos baixos salários pagos pela empresas, possivelmente em épocas de crise do setor, sendo que a melhor remuneração destina-se àqueles que detêm maior escolaridade. O que não era o caso do entrevistado citado, que possuía apenas a 2ª série do ensino fundamental.

Embora esse agricultor arrendatário esteja há oito anos trabalhando com olericultura, não vê condições de adquirir sua terra própria só com o trabalho na lavoura. Tal constatação comprova a afirmação dos autores citados anteriormente,

de que o arrendamento não é considerado pelos agricultores sem terra do Oeste catarinense como uma saída que lhes possibilitem o acesso à propriedade da terra.

O acesso precário à terra é a situação vivenciada pela maioria do público entrevistado que financiou ou está em vias de financiar a terra própria, bem como daqueles que ainda não foram contemplados com nenhuma política pública de acesso à terra (Sem Sem). A Tabela 20, a seguir, dá uma idéia dessa situação:

Tabela 20 – Situação do público entrevistado quanto à ocupação anterior (Fundo de

Terras e Banco da Terra) e ocupação atual (Crédito Fundiário e Sem Sem) no município de Caçador (SC), 2005.

Situação dos Entrevistados FT BT CF SS Total

Arrendatários 3 1 1 1 6

Parceiros 1 3 2 4 10

Filhos de Agricultores 1 – 3 – 4

Agricultores com pouca terra – 1 – – 1

Trabalhadores Assalariados – – – 1 1

Total 5 5 6 6 22

Fonte: Dados da pesquisa de campo, maio/jun. 2005

Legenda: FT – Fundo de Terras; BT – Banco da Terra; CF – Crédito Fundiário; SS – Sem Sem

A Tabela 20 mostra um quadro objetivo das principais ocupações anteriores ou atuais, dependendo do grupo de entrevistados analisado. Embora a situação visualizada pareça simples e objetiva, a realidade vivenciada pelas famílias, principalmente antes de obterem a propriedade da terra, é muito mais dinâmica e complexa. Em busca da reprodução familiar essas pessoas fazem de “tudo um pouco”, na expressão de um dos entrevistados. Assim, por exemplo, alguns parceiros eventualmente vendem sua força de trabalho, como é o caso de duas famílias de Sem Sem. Outros pagam a renda de uma parte da propriedade para plantar lavouras próprias e ao mesmo tempo cultivam lavouras em conjunto com o proprietário da terra. Aqueles que se identificam como arrendatários, às vezes, realizam trabalhos em parceria. Os filhos de agricultores gerenciam lavouras em conjunto com os pais, na forma de parceria e, outras vezes, plantam suas próprias lavouras na terra do pai sem lhe pagar nada. Houve o caso de um único agricultor entrevistado que, mesmo com pouca terra, também utilizava outra área para o plantio através do arrendamento.

As parcerias assumem diferentes formas de administrar a terra e as lavouras (temporárias e permanentes), como visto anteriormente. Nos casos entrevistados, os

parceiros pagavam na forma de produto uma parte da renda auferida com a utilização da terra e administravam as lavouras com certa independência, já que os proprietários residiam na cidade. Na região estudada, os termos “arrendamento” e “parceria” são muitas vezes utilizados como sinônimos, como também confirma Paulilo (1998). Assim, a fim de facilitar o entendimento do texto será usado o termo “arrendamento” para todas as formas de parcerias encontradas.