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A Conquista da Terra de Canaã, eis, pois, o tema fulcral do Livro de Josué e, segundo Noth, da HD Curiosamente, o nosso antigo colega no

No documento Hebreus e Filisteus na terra de Canaã (páginas 122-131)

"Studium Biblicum Franciscanum" de Jerusalém, Enzo Cortese, defendeu

uma tese no Pontifício Instituto Bíblico de Roma 36 sobre a Terra de

Canaã na História Sacerdotal. Nela critica Noth quanto ao tema da Terra

na HD, dizendo que "é un fatto che nel Deuteronomio si parla

continuamente delia terra" e que é no Código Deuteronomista (Dt.5,28)

que se encontram mais expressões sobre ela, tais como dar, possuir 37.

Mas, para Cortese, se o Dtr. dá importância ao tema da "Terra", fá-lo

com elementos tirados do dito Código Deuteronomista, de Josué e dos

Juizes, encorporando-os na sua obra global que, como dissemos, vai do

Dt. ao II Reis.25,50. Torna-se, por isso, evidente que faz isso com o

objectivo especial de interpretar o fracasso da história do Povo Eleito. A

chave teológica específica que, para ele, explica esse fracasso é a falta de

fidelidade de Israel à Lei de Javé, seu Deus. O tema da "Terra" não tem,

por isso, na HD uma importância relevante, de per si; é apenas o ponto

de partida da história negativa de Israel. Esta a razão por que não há

qualquer referência ao dom da "Terra" na HD, como se pode ver das

35 IDEM - Ibidem, 16. .

36 CORTESE, Enzo - La terra di Canaan nella stona sacerdotale del

Pentateuco , Brescia, Paideia Editrice, 197/. 37 IDEM - Ibidem, 168.

reflexões de Jos.l 1,16s; 21,43s e, sobretudo, Jos.23, que Noth classificava como "Merkmale der planvollen Geschlossenheit" 38 .

Na HD, o único passo a respeito da Monarquia e que se refere ao dom da "Terra" encontra-se na oração do rei Salomão (I Re.8,34.40.48); mas a referência, nesse passo literário, não é categórica, apenas alusiva. Desse modo, a ideia central da HD continuaria a ser a da ameaça do castigo por causa das infidelidades à Lei de Javé.

Ainda para Cortese, a teologia do dom da Terra é, principalmente, obra da História Sacerdotal (P) que, todavia, não descreve a conquista de Canaã. Certamente que em Dt.l - 3 e 4 existem verdadeiros pontos de

contacto com P, mas, mesmo aí, o tema da "Terra" tem a função de introduzir o Código Deuteronomista (Dt.5 - 28) e servir de colchete à história posterior, usando palavras e expressões estereotipadas. Sempre

segundo Cortese, as afirmações de Noth sobre o pouco interesse de P pelo tema da "Terra" são mal fundadas. E nós não podemos deixar de concordar que a expressão "Terra de Canaã" seja tida , por unanimidade dos exegetas, como típica da fonte P desde Gén.11,31, passim, embora

não exclusiva 39, pois aparece em passos de J e E (Gén.42,5s; 45,17s; 46,31s;47,ls; 48,7; 50,5).

Certos dados de Cortese são, em verdade, irrefragáveis; contudo, a

insistência na ideia de que a HD pretendia explicar o fracasso da

história de Israel já foi ultrapassada. E, se a importância do tema da

"Terra" na fonte P é indesmentível, não há dúvida de que a HD, através de Josué, o que pretendia era narrar a ocupação ou conquista da mesma.

38 NOTH.M.- O.c.,5. 39 CORTESE.E. - O, c, 69.

Por conseguinte, no meio de todo este emaranhado de análises literárias e de hipóteses reconstitutivas, o que se conclui é que não podemos arrumar as fontes ou tradições bíblicas, de forma estática, em compartimentos estanques, sem comunicação entre si, Temos, pelo contrário, de as encarar como correntes de pensamento em contínua permeabilidade ou perene osmose, num aberto sistema de vasos

comunicantes. Dentro desta visão dinâmica e evolutiva, é possível que uma tradição, como a da HD, na sua redacção final e canónica, englobe elementos mais antigos, pre-existentes, e também dados posteriores, sacerdotais ou nomísticos sem que, para isso, tenhamos de recorrer, imediatamente, à hipótese de várias redacções// edições, como se faz com as obras impressas, positivamente controláveis. Estas, sim, em

edições sucessivas podem ser revistas, corrigidas e aumentadas,

conservando as marcas mais ou menos distinguíveis das sobreposições. O

processo genético das fontes ou tradições bíblicas até à sua redacção

final tem sido muito visto pelo prisma da literatura impressa. Deveria

antes situar-se no plano da tradição oral e ser comparado ao movimento

duma fonte rumorejante que, brotando duma fraga no alto dum monte, vai deslizando e sendo engrossada, na sua marcha, com o contributo de

arroios e ribeiros, isto é, de variadas correntes de pensamento fornecidas

pelos ambientes de profetas, sacerdotes e escribas, os quais, de forma

anónima, no circunstancialismo diacrónico da vida do Povo Eleito, vão interferindo e deixando a marca da sua intervenção.

A redacção final dum livro bíblico dá-se sempre juntando dados de tradições paralelas que, sobre os mesmos factos, quiçá em lugares e

tempos diferentes, se foram criando e transmitindo. É, assim, que, na HD e em particular no Livro de Josué, se explica a aceitação duma redacção

final tardia, onde já se notam elementos sacerdotais e nomísticos, ou seja, preocupações legalísticas do judaísmo pos-exílico.

É neste sentido que vemos e entendemos a crLe ou desconfiança actual em relação às fontes "clássicas" do Pentateuco, segundo a teoria de Graff-Welhausen.

3° A estratégia da instalação dos hebreus em Canaã.

Não se pode negar a importância do tema da "Terra" - Terra de Canaã - prometida aos Patriarcas e onde os hebreus entraram sob a chefia de Josué, cerca de 1200 AC. Todavia, já vimos que o Livro de Josué deixa entrever diversos modos de ocupação da Terra de Canaã, conforme Josué ataca o Centro ou se dirige para o Sul ou para o Norte. A breve análise histórico-literária do Livro de Josué permitiu-nos concluir que, sobre a instalação dos hebreus em Canaã, são detectáveis duas ofertas narrativas. Elas consubstanciam duas concepções diferentes da tradição bíblica a respeito do modo como Josué e os hebreus ocuparam a dita terra de Canaã:

3,1- A ocupação foi uma campanha militar (Conquista). É esta imagem ou ideia que ressalta, de imediato, da leitura de Jos.2 - 11; 14- 19 quando Josué, com seus homens de armas, cai de chofre sobre os cananeus e amorreus que habitam o país. Domina-os em batalhas- relâmpago, vitoriosas e aniquiladoras, pese embora o salutar e premonitório revés do primeiro assalto à cidade de Ai (Jos.7,1 -8,24). Nesse caso, e semelhantes, porém, trata-se duma oferta narrativa, eminentemente religiosa e até miraculosa, a sublinhar que a conquista da Terra Prometida é mais um dom de Deus que uma obra de militares, uma acção mais divina que humana. Nesta perspectiva, a narrativa é mais teologia que história, tem mais a ver com a fé do que com a

realidade factual. E lá estamos nós, mais uma vez, a constatar que a Bíblia foi escrita por homens de fé para homens de fé. Se Deus é o grande motor da história hebraica, a acção dos hebreus tem de ser fulminante e vitoriosa, porque eles são instrumentos do próprio agir de Deus. As guerras de Israel são guerras de Javé, o qual, em virtude da Aliança com os Patriarcas, não pode deixar de se comprometer e lutar pelo Seu povo. Daí a teofania do Anjo de Javé que se depara a Josué com a espada desembainhada, como "chefe do exército de Javé"( Jos.5,14: -It? mm-lQS-) antes da tomada de Jericó, a qual assinalava o início da Conquista de Canaã.

Certamente, por idealização, remontando a uma era antiga, quando Israel ainda não tinha a sua "Terra", a guerra revestia para os hebreus um carácter sagrado, razão pela qual já o livro do Deutreronómio (Dt.20) apresenta as regras da "guerra santa" 40 . Aliás, também aqui e a propósito da "guerra santa" ou "guerras de Javé", não se pode deixar de salientar o estudo recentíssimo de Van der Lingen 41, que veio pôr em causa a tese de Von Rad e Weimar segundo a qual as "guerras de Javé" "obedeceriam a um esquema antigo".

Para Van der Lingen, que reexaminou os textos considerados arcaicos, a terminologia dessas guerras não remonta ao tempo de Josué e à Conquista mas nasceu durante e depois do Exílio, quando o povo hebraico estava sujeito aos pagãos. Exilado e subjugado, o povo de Israel

4 0 HEINTZ J G - Idéologie et instructions de la "guerre sainte" chez les

Hébreux et dans le monde sémitique ambiant ."Études Théologiques et Religieuses" 56 1981 3-45; UND, M.C. - Yahweh is a Warrior.The Theology Twarflre in Scient Israel, Scottlade, Herald Press, 1980; PURY, A de - La guerre sainte israelite: réalité historique ou fiction Utt&aire?Etat des recherches sur un thème de l'Ancien Testament "Ibidem",. : £ 5 3 ; VANLQER

LINGEN Anton - Les Guerres de Yahve , Paris, Cerf, 1990 (Col. Lectio

divina",'139); VON RAD, G. - Der Heilige Krieg in Mten Israel Zurique, 1951 (ATANT, 20); WEIMAR , P. - Die Jawekriegserzaehlung m Exodus IU, Josua 10, Richter 4 und I Samuel 7 , "BibLica", 57,1976, 38-73.

com confiança na protecção do Deus das suas origens. Dava-se, então, o que chamamos unTflash back" histórico-teológico, ideológico. Portanto, as razões de Van der Lingen surgem-nos como mais um trunfo em favor da redacção tardia do Livro de Josué. Para ele, esta conclusão deveria mesmo deduzir-se da analise do capítulo décimo, onde Josué aparece no papel dum dirigente nacionalista, religioso e não, propriamente, como um comandante militar. Por esta razão é que ele, Josué, é posto a

pronunciar fórmulas de encorajamento (Jos.19,5) na construção do futuro, sempre contando com o auxílio de Javé (Jos,10,40) para vencer o derrotismo do seu povo.

Poderíamos concluir, assim, que, no Livro de Josué, a terminologia da guerra faz parte da ideologia da libertação do Cativeiro de Babilónia e não da ideologia da "guerra santa" derivada da Conquista de Canaã 42. A ocupação de Canaã tinha mesmo de ser vista como uma campanha

militar sob o alto patrocínio de Javé, "Senhor da Guerra".

2o A ocupação de Canaã foi uma operação lenta (Infiltração pacífica). É a outra imagem que surge no nosso visor geográfico ao observarmos, de perto, a narrativa. Mesmo com a ajuda de Deus (Jos.1,19

s), os hebreus não conseguiram ocupar as zonas costeiras do Mediterrâneo nem as grandes cidades cananeias das planícies. Vê-se ainda que os hebreus recorreram, com frequência, à tática dos ataques- surpresa, em forma de guerrilha episódica e repentina (Jos.15,13-19), enfrentando temores e sofrendo reveses (Jos.1,19.34), numa luta que é evidente em Jos.1,21-36; 17,14-18; 19,47s). Deste modo, pouco a pouco, foram-se assenhoreando das zonas montanhosas sem referência aos vales nem às partes baixas {Shefelah ) nem às zonas costeiras. A

ocupação de Canaã pelos hebreus foi-se fazendo aos poucos, em sistema de infiltração progressiva e lenta.

Esta segunda oferta narrativa, talvez complementar da primeira, é mais realista e dramática; por isso, depara-se ao historiador como mais objectiva e plausível, apesar de evidenciar, como sempre na Bíblia, também e ainda, o elemento teológico e engrandecedor da religião.

Em conclusão desta visão panorâmica dos problemas bíblicos da ocupação hebraica de Canaã, à luz da HD, deduzimos que o leitor crente e desprevenido, numa leitura de superfície do Livro de Josué, dificilmente conseguiria dar-se conta do emaranhado das questões

subjacentes ao texto canónico e da ilusão de óptica histórica em que está

metido. Ao fim e ao cabo, porém, ficaria com a impressão de que a

ocupação da Terra de Canaã por Josué obedeceu a uma determinação

divina, executada através duma campanha militar fulminante que teria

produzido uma conquista rápida e total.

Esta foi, de resto, a visão generalizada, que, para os judeus,

constitui uma espécie de "verdade histórica" e, entre os cristãos, foi difundida pela "Bíblia das Escolas", e ainda hoje encontra defensores

mesmo no plano universitário, como fez Kaufmann 43 com a sua tese

ortodoxa e fundamentalista. 0 Livro de Josué, todavia, não é história

pura; é, sim, um livro de fé judaica, uma epopeia religiosa onde não

faltam expressões de optimismo religioso e até hipérboles, como se verifica pelo resumo das terras conquistadas, onde a palavra "todo" ( >3) aparece nada menos que sete vezes num curto espaço descritivo (Jos.11,16-20).

43 KAUFMANN Y - The Biblical Account of the Conquest of Palestine, Jerusalém 1953'; IDEM - Traditions concerning Israelite History in Canaan

Dada a importância que o santuário de Guilgal 44 desempenha no Livro de Josué, julga-se que este reúna tradições da tribo de Benjamim, em cujo território aquele santuário se situava, tradições essas conservadas e veiculadas durante muito tempo pelos respectivos sacerdotes, passando, depois, para o património popular de Israel unificado (I Sam.10,8; ll,14s; 13,47; 15,12-21.23; Am.4,5; 5,5). O Livro de Josué não pode, portanto, tomar-se como um relato "cronístico" completo da Conquista hebraica de Canaã; e, se fora preciso prová-lo, bastaria fazer a cartografia dos dados geográficos fornecidos pelo texto e confrontá-lo com um mapa de Canaã, tal como é reconstituível pelas

informações das Cartas de El Amarna (séc.XIV AC), atrás referidas.

Do ponto de vista histórico, a Conquista ou ocupação de Canaã

deverá ser datada dos finais do Bronze Tardio ou Recente e dos começos

do Ferro I, cerca de 1200 AC. No Livro de Josué, uma única vez se faz referência aos filisteus (Jos.13,2-3), os quais estão situados onde, antes, se falava de Enaquitas, gigantes algo misteriosos (Dt.2,10). Diga-se,

entretanto, que o Livro de Josué, falando dos filisteus e seus cinco

distritos, a célebre Pentápole do tempo de David//Salomão, nunca alude a qualquer batalha entre hebreus e filisteus; isso irá acontecer no I Livro de Samuel. Ora, por um lado, isso prova que, com certeza, os filisteus ainda não estavam em Canaã e, por outro lado, o próprio Livro de Josué

afirma expressamente que, sendo Josué já muito velho, "a terra por conquistar era muita" (Jos.13,1: a**?7 T ^ - r m i n ?W*J ^NHl). E, depois, o texto, apontando o que faltava conquistar, enumera, em primeiro lugar, as províncias ou distritos dos fariseus (Jos.13,2-3). Tudo isto, porém, deriva, indubitavelmente, duma visão posterior sem a noção exacta da cronologia..

44 IANGLAMFT, François - Gilgal et les récits de la traverssée du Jordain, Paris, Gabalda, 1969.

Resulta, por conseguinte, claro e provado que, numa discussão específica sobre a historicidade do relato do Livro de Josué, coisa que aqui pressupomos por ultrapassar os limites deste trabalho e seu tema nuclear, haveria que ter em conta o problema geral da História Bíblica e seu género literário, enquanto história religiosa, teocrática, com a consequente relação História / / Lenda ou Mito 45. É que, nas narrativas bíblicas, os dois géneros literários têm, frequentemente, a mesma função "evocadora" do passado, como sublinhava Roland Barthes 46 . Ora, o tema da " Terra Prometida" (Promessa a Abraão, Gén,12.4; David, II Sam.7.14) é um tema-chave da historiografia bíblica em geral e da HD em particular; atravessa todo o Antigo Testamento como uma ideia- força, de tal modo que, ainda hoje, cria e justifica a ERES ISRAEL, ou seja, o moderno Estado de Israel. Com razão, à boa maneira hebraica, dizia Ben Gurion, o fundador do novo Israel: "Em Israel, quem não acredita no milagre não é realista!" Crente ou não crente, ortodoxo ou laico, todo o judeu continua a pensar, como os hebreus de antanho, que Israel é uma criação de Javé, uma obra, isto é, uma dádiva do Deus bíblico. Na verdade, era isto, precisamente, que procurava provar a história religiosa do Livro de Josué e, por isso, é que os historiadores modernos, seguidores da história científica, racional e critica, experimentam tantas dificuldades ao debater-se com a historicidade das

narrativas..

Concluindo todo o capítulo, podemos afirmar que o Livro de Josué, historico-criticamente considerado, não serve de guia para o

4 5 CARREIRA José Nunes - História e Historiografia na antiguidade Orientai, "Estudos de cultura pre-clássica", Lisboa, Editorial Presença 1985, 142-167- IDEM - História antes de Heródoto , Lisboa Ed. Cosmos, 1993, 211-

-> 19- GIBERT Pierre - La Bible à la naissance de l'Histoire , Pans, Fayard, 1979- GONÇALVES Francolino - História antes de Heródoto: o caso de Israel ,

"Cadmo" 1 1991 65-98; VÁRIOS - La storíografia neile Bibbia (Attí delle XXVIII Settimana Bíblica), Bolonha, Edizioni Dehoniane, 1986.

levantamento e estabelecimento científico das origens de Israel. O que

No documento Hebreus e Filisteus na terra de Canaã (páginas 122-131)