• Nenhum resultado encontrado

3 O PERCURSO DA EDUCAÇÃO INFANTIL BRASILEIRA

3.4 Conquistas e desafios

Ser criança em nossa sociedade ainda é, muitas vezes, algo pejorativo. A mídia e a cultura ainda fazem com que a criança queira crescer, sendo comum ouvirmos frases no cotidiano como “Assim, você parece uma criancinha!” ou “Deixa de ser criança!” – o que revela, em um discurso oculto, a ideia de que é ruim ser pequeno, de que ser menor do que os outros invalida atitudes ou conhecimentos. Isso acontece porque ainda prevalece a imagem de criança universal, que não condiz com a realidade; preocupa-se com o que as crianças precisam para crescer e não com a complexidade da infância,

com a peculiaridade de sua cultura, com o entendimento de como as crianças recriam o contexto em que estão inseridas. É preciso considerar que, como atores sociais, elas produzem, reproduzem e reinterpretam culturas (CORSARO, 2005).

No entanto, a percepção dessa realidade não pode desmerecer os grandes avanços legais em relação ao entendimento da criança como sujeito de direitos e da Educação Infantil, como nível de ensino obrigatório que aconteceram nas últimas décadas. Faremos então algumas considerações sobre o que foi proposto e apresentado nesta seção.

Com a bibliografia apresentada, foi possível perceber, historicamente, a diferença no atendimento às crianças das camadas sociais mais favorecidas economicamente e as das classes populares. As últimas, durante muitas décadas, tiveram acesso apenas às instituições com fins assistencialistas. A situação é ainda mais alarmante no que diz respeito às crianças de 0 a 3 anos, pois apenas nos últimos anos a creche passou a ser vinculada aos órgãos responsáveis pela educação. Concordamos com Nunes quando afirma que, nos dias de hoje,

Nesse complexo jogo de relações, podemos encontrar uma educação infantil de qualidade, em espaços organizados, com propostas adequadas à realidade social, com uma gestão democrática do equipamento, convivendo com outra, realizada em espaços improvisados, sem recursos pedagógicos, sem pessoal qualificado, com uma gestão baseada em resquícios de uma cultura autoritária, com base na benesse e no favor. (NUNES, 2005, p. 96).

Isso acontece, pois ainda não foi superada a diferença de acesso a serviços educacionais. Ou seja, ainda há diferenças no serviço ofertado pelas escolas públicas, que atendem em sua maioria crianças das classes populares e pelas escolas particulares, que, seguindo a trajetória histórica dos jardins de infância, continuam atendendo, em sua maioria, crianças das classes mais favorecidas economicamente. Kramer (2006) afirma, partindo do levantamento das pesquisas feitas em diferentes países, que a frequência à Educação Infantil favorece o desempenho na escolaridade formal, especialmente, às crianças pobres.

Podemos afirmar, portanto, que, após os debates e documentos oficiais das últimas décadas, não há mais espaço para um atendimento que priorize somente o assistencialismo nem para continuidade do discurso cuidar-educar, que se mantém como consequência do percurso histórico das instituições: é preciso pensar em uma educação

que supere a prática pedagógica, como a realização de atividades dirigidas e entenda com maior clareza o papel do cuidar na escola no contexto atual (CERISARA, 1999), que deve estar integrado ao educar, sendo entendido como uma dimensão deste, uma vez que o cuidado com o corpo também é algo a ser aprendido, a ser educado.

Para combater a assistência hoje (equivocadamente retirando, por exemplo, o cuidado com o piolho), estamos escolarizando as instituições de educação das crianças pequenas, fazendo a antecipação de uma educação que, até segunda ordem, também pretende formar o operário do futuro e, não a criança enquanto criança, de hoje. (FARIA, 1999, p.73).

A construção de uma proposta pedagógica que também demonstre avanços nos últimos anos pode buscar referências em experiências diversas, tanto do passado, como os PIs, quanto internacionais, pois,

Nas ciências humanas, não é possível encontrar um único modelo teórico que satisfaça todas essas exigências. Isso nos remete a uma pluralidade de ‘modelos’ teóricos, que correspondem a uma pluralidade metodológica, para programar a educação infantil, no bojo da vida social. Portanto, essa busca se impõe também em função da diversidade sócio-cultural brasileira, o que requer uma multiplicidade de propostas que dêem conta dessa diversidade. (FARIA, 1999, p.194).

Uma divulgação e debates amplos das DCNEI, assim como foi feito com os RCNEI pode ser o início da construção de propostas elaboradas por toda a comunidade, de acordo com as particularidades dos locais onde estão inseridas e que respeitem as crianças como ser inteiro, sem divisões predefinidas. Entendemos que a Educação Infantil deve estar articulada, mas não subordinada ao Ensino Fundamental.

Concordamos com Ferraz quando afirma que

Todas as ações e publicações das décadas entre 1980 e 1990 podem ser consideradas iniciativas que fornecem aos profissionais responsáveis pela qualidade da Educação Infantil a possibilidade de ressignificar suas concepções sobre educação, criança e sobre processo de ensino e desenvolvimento/aprendizagem. (FERRAZ, 2011, p.35).

Embora as ações e publicações descritas tenham sido benéficas, ainda é preciso problematizar a qualidade da formação docente. Nicolau e Pinazza (2007) afirmam que o principal desafio é traduzir as intenções presentes nos documentos em ações,

iniciando uma formação específica de professores dentro de uma política nacional, que contemple as especificidades da faixa etária atendida pela Educação Infantil.

O aumento de professores formados em nível superior deve ser acompanhado pela reflexão do que é oferecido nos cursos de formação e de que maneira acontece a formação continuada nas instituições. A qualidade dessa formação deve possibilitar que os educadores sejam autores e produtores de novos conhecimentos. Dessa forma, é necessário que sejam ouvidos e respeitados, como profissionais que podem ir além do cumprimento de uma forma de trabalho posta de forma mecânica e não reflexiva.

Um dos fatores fundamentais para a consolidação de uma educação de qualidade é o investimento na formação inicial e continuada dos profissionais que atuam na educação dos pequeninos. Esses fatores foram produzidos ao longo da história da educação infantil. Para tanto, temos que levar em conta o imenso acervo de conhecimento acumulado pelos que já há muitos anos estão em serviço, bem como reconhecer o pluralismo e a diversidade cultural como fatores de garantia de singularidade das ações educativas de cada região, lembrando que o respeito e a valorização da diversidade cultural não podem ser confundidos com a manutenção das desigualdades sociais. (KAPPEL et al., 2005, p. 117-118).

Assim, estamos de acordo com Kramer (2006) quando aponta que ainda há muitos desafios para a consolidação e ampliação de uma Educação Infantil de qualidade: ampliação de financiamento, organização dos sistemas municipais, articulação da Educação Infantil com políticas sociais, ações e pressões de agências de financiamento internacional, condições precárias de creches não transferidas para as redes municipais de educação. A autora continua afirmando que, em relação ao trabalho direto com as crianças, universidades, secretarias e ONGs também enfrentam dilemas, como a estruturação da Educação Infantil e sua articulação com o Ensino Fundamental, a organização da Educação Infantil em diferentes contextos municipais, orientações curriculares e critérios de qualidade, avaliações de políticas públicas e de desempenho; e que ainda existem questões que devem ser temas de estudo, além das citadas anteriormente, como concepções teóricas da infância e a especificidade da creche. Ainda segundo a autora, baseada em pesquisas, a Educação Infantil parece ser

[...] uma das áreas educacionais que mais retribui à sociedade os recursos nela investidos, contribuindo à escolaridade posterior, tema que permaneceu em discussão nos últimos 30 anos e que tem evidente repercussão para as políticas sociais e para as políticas públicas das

instâncias federal, estadual e municipal. (KRAMER, 2006, p.802- 803).

Concluímos esta seção afirmando que não há como pensar uma escola de Educação Infantil que não considere, desde sua concepção, as relações entre os diversos atores do processo educativo. Dessa forma, reforçamos o uso do registro, na perspectiva da documentação, como estratégia para possibilitar a integração criança-família-escola, como também para favorecer a criação de currículos adequados aos contextos vividos pelas crianças brasileiras, que devem ser múltiplos, flexíveis e acolhedores das diferenças. A análise de registros das práticas pode ainda ser utilizada como estratégia nas propostas de formação continuada, favorecendo o debate entre os professores e dando espaço aos conhecimentos por eles construídos – em especial, à compreensão das crianças e os processos que envolvem sua aprendizagem e desenvolvimento.

4 A EDUCAÇÃO INFANTIL EM UMA PERSPECTIVA HISTÓRICO-