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Os Referenciais Curriculares Nacionais para a Educação Infantil

3 O PERCURSO DA EDUCAÇÃO INFANTIL BRASILEIRA

3.2 A legislação brasileira, as políticas e o currículo para a Educação Infantil:

3.2.6 Os Referenciais Curriculares Nacionais para a Educação Infantil

Dois anos após a promulgação da LDB, o Ministério da Educação e Cultura (MEC) fez a divulgação oficial dos Referenciais Curriculares Nacionais para a Educação Infantil (RCNEI), publicados para ser uma referência aos profissionais que atuam diretamente com a faixa etária de 0 a 6 anos. De acordo com Palhares e Martinez: O RCNEI representa um ponto de inflexão na trajetória que vinha sendo gestada anteriormente pela Coordenadoria de Educação Infantil. Entretanto, o documento apresenta os tópicos fundamentais para a composição de um referencial para a educação: elaborado por especialistas de renome nacional e internacional; incorporando propostas nacionais e de outros países; e ainda oferecendo ideias que visam contribuir para o surgimento de uma nova proposta para o cotidiano da educação infantil. (PALHARES; MARTINEZ, 2005, p.8).

Já para Cerisara (2005, p.44), que apresenta uma análise dos pareceres enviados ao MEC sobre a versão preliminar do documento, “mesmo que o RCNEI tenha sido aperfeiçoado, melhorado, adaptado, ele continua significando uma ruptura com o que vinha sendo produzido e com o que vinha sendo defendido como a especificidade da educação infantil”. Aquino e Vasconcellos também criticam a publicação do RCNEI do ponto de vista político:

Como várias análises apontaram, entre as quais se destaca a de Saviani (1998), um dos objetivos presentes nas ações governamentais de 1994-2002, como o conjunto de referenciais pedagógicos, foi o de manter a marca do Ministério da Educação e, por extensão, do governo federal nos sistemas de ensino estaduais e municipais, num momento em que, graças a Constituição Federal de 1988, vinha-se afirmando o princípio da descentralização e fortalecimento da municipalidade e instâncias locais. (AQUINO; VASCONCELLOS, 2005, p. 101).

Ao nos determos sobre o conteúdo, é possível tecer ainda outras críticas, pois, conforme Aquino (2002), o documento traz marcas de preparação para aprendizagens futuras, dando maior destaque ao aspecto cognitivo do desenvolvimento.

O primeiro volume, intitulado “Introdução”, apresenta conceitos importantes relativos à especificidade na Educação Infantil – criança, educar, cuidar, brincar, relações creche-família, professor de Educação Infantil, educar crianças com necessidades especiais, a instituição, o projeto educativo, organização do espaço e do tempo, parceria com as famílias, entre outros (CERISARA et al., 2002). Neste volume, transparece como referência a criança, e não o Ensino Fundamental.

Entretanto, os outros dois volumes apresentam evidências contrárias. Organizados em âmbitos de experiência denominados “Formação pessoal e social” e “Conhecimento de mundo,” são constituídos por eixos de trabalho: identidade e autonomia, música, movimento, artes visuais, linguagem oral e escrita, natureza e sociedade, matemática (BRASIL, 1998a). Com essa divisão,

[...] houve uma tentativa de fugir da divisão por disciplinas. Entretanto, o resultado final não foi tão diferente dos modelos tradicionais. A divisão por âmbitos utilizada se fez separando o que se refere à área de desenvolvimento da área de conhecimento; como se desenvolver pessoal e socialmente pudesse se fazer desprendido do conhecer o mundo. (AQUINO, 2002, p.114).

Dessa forma, é possível perceber que há uma subordinação ao que é pensado para o Ensino Fundamental, e a “didatização de identidade, autonomia, música, artes, linguagens, movimento, entre outros componentes, acaba por disciplinar e aprisionar o gesto, a fala, a emoção, o pensamento, a voz e o corpo das crianças” (CERISARA et al., 2002, p.337). Muitas vezes, o ensino predomina à educação. As disciplinas privilegiadas são as acadêmicas, o que pode ser responsável por uma apropriação fragmentada do conhecimento (AQUINO; VASCONCELLOS, 2005). O brincar aparece com destaque apenas no eixo “Identidade e autonomia” e a linguagem escrita, em especial, a alfabetização recebe maior atenção do que a linguagem oral. Assim, concordamos com Aquino quando afirma que

Se pensarmos nas cem linguagens das crianças, vemos que, com esse modelo educacional proposto, as instituições tenderão a roubar as noventa e nove linguagens das crianças. Ou pelo menos, estarão dizendo que estas são todas separadas, desarticuladas (os eixos: música, artes e linguagem oral e escrita) e que há uma supremacia da linguagem escrita sobre as demais. (AQUINO, 2002, p.115)

Conforme Aquino e Vasconcellos (2005), a linguagem que foi adotada, bem como a estrutura e a organização curricular revelam novamente a marca de educação

formal e a preocupação com a aquisição de conteúdos, o que faz transparecer o modelo de creche e pré-escola de classe média urbana, em que há supervalorização da escrita e preocupação com o serviço que a Educação Infantil presta ao Ensino Fundamental. A estrutura organizada por faixa etária – de 0 a 3 anos e de 4 a 6 anos é reflexo da serialização e da segmentação do trabalho, o que evidencia novamente sua subordinação ao Ensino Fundamental. Quanto a esse aspecto, julgamos interessante apresentar a opinião de Kuhlmann Jr, que, de alguma forma, aproxima-se das autoras acima; por outro lado, busca o entendimento da divisão por faixa etária:

É claro que a educação infantil não pode deixar de lado a preocupação com uma articulação com o ensino fundamental, especialmente para as crianças mais velhas que logo mais estarão na escola e que se interessam por aprender a ler, escrever e contar. Isso poderia ser resolvido muito mais facilmente se houvesse clareza quanto ao caráter da educação infantil, se a criança fosse tomada como ponto de partida e não um ensino fundamental pré-existente. Desse modo, embora discordando da forma como se fez a divisão por faixa etária nas sugestões da proposta do referencial, entendemos que de algum modo essa diferença precisaria ser contemplada, tanto para garantir às crianças menores a atenção merecida, o seu não esquecimento em virtude da sua condição de minoritários entre os matriculados, quanto para garantir às crianças maiores um trabalho educacional que respeite o seu iminente ingresso no ensino fundamental. (KUHLMANN JR, 2005, p.64-65, grifo do autor).

O modelo proposto pelo RCNEI acaba valorizando o papel do adulto, o que é um aspecto positivo, mas, que em alguns momentos pode dificultar a participação da criança e sua condição como autônoma. Como afirma Aquino (2002), ao fazer referência ao Estatuto da Criança e do Adolescente, restringe-se a ideia de afirmar os princípios de direito à educação, sem apresentar propostas de cidadania ou a maneira de abordar o assunto com as crianças. Busca-se a preparação para a cidadania, e não sua vivência no cotidiano.

Dessa forma, concordamos com a afirmação de Aquino e Vasconcellos (2005) de que os Referenciais acabaram transformando-se em um currículo nacional. Eles precisam ser vistos e problematizados também sob os aspectos teóricos de outros campos, como a Psicologia e a Sociologia. Ainda de acordo com as autoras, a estrutura proposta nos RCNEI pode acarretar em uma prática mecânica por parte dos professores, preocupados em cumprir as determinações postas; a não participação dos docentes na elaboração do mesmo, além de desrespeitar os princípios democráticos, pode acabar em fracasso nos propósitos do documento, bem como afetar de forma negativa o trabalho e

o ambiente de trabalho docente. De acordo com Kishimoto (2008, p.113), o RCNEI, sem articulação com outras medidas, fica reduzido a um instrumento “que aponta o que deve ser a criança, mas não atinge a complexidade da prática pedagógica, não chega a indicar o caminho para uma prática da transformação.”

É importante ressaltar novamente que o RCNEI é uma referência, pois não tem caráter obrigatório – as instituições podem optar ou não por segui-lo (CERISARA et al., 2002). Embora essa opção seja real, a estrutura do documento, com a definição de conteúdos, objetivos e orientações didáticas acaba constituindo-o como um currículo (AQUINO; VASCONCELLOS, 2005). As autoras destacam que o Conselho Nacional da Educação é o órgão responsável por estabelecer as diretrizes curriculares de todos os níveis de ensino e,

[...] embora tenham força de lei, isto é, haja obrigatoriedade em cumpri-las, sua divulgação por parte do MEC acabou por ser inexpressiva. A ampla divulgação do RCNEI, sem se fazer menção às Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Infantil, constitui- se numa prática que não acata as determinações postas pela LDB. Além disso, embora seja um documento não obrigatório, ao apresentar uma estrutura curricular muito definida, a tendência dos sistemas de educação infantil é a de seguir as orientações à risca, permitindo-se pouca flexibilidade ou pluralidade na formação dos currículos locais. (AQUINO; VASCONCELLOS, 2005, p.105-106).

O RCNEI não conseguiu, de acordo com Kramer (2006, p.802), “equacionar a tensão entre universalismos e regionalismos, além de ter desconsiderado a especificidade da infância.”