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2 A DOCUMENTAÇÃO NA ABORDAGEM DE REGGIO EMILIA PARA A

2.3 O papel de Lóris Malaguzzi no delineamento da abordagem

No início desta seção, destacamos em alguns parágrafos a participação de Lóris Malaguzzi na construção da abordagem de Reggio Emilia para a Educação Infantil. Entendemos ser necessário, porém, ampliar um pouco mais o conhecimento da influência de suas ideias e ideais como educador.

Havia um cenário político favorável quando Lóris Malaguzzi deu início ao trabalho com Educação Infantil no Norte da Itália: movimentos estudantis, feministas, sindicatos lutavam pela educação como prática dos governos de esquerda. Em 1968 e 1971, foram sancionadas leis que entendiam a frequência à pré-escola e à creche como direito (FARIA, 2007).

Alinhado ideologicamente a esses movimentos, Lóris Malaguzzi deu iniciou à elaboração de uma pedagogia que se preocupava em manter um diálogo constante entre teoria e prática. Entendendo a defesa da educação também como luta política, passou a atuar diretamente na gestão como secretário de educação de Reggio Emilia. Sua preocupação, desde o início de seu trabalho como educador, esteve sempre voltada às crianças de 0 a 6 anos. Mas, as ideias, concepções e inovações que construiu e que se tornaram importantes contribuições para o campo foram divulgadas de maneira mais abrangente no cenário da educação mundial apenas após seu falecimento, em 1994. A demora foi decorrente de sua pequena produção acadêmica (FARIA, 2007).

Para que não pareça incoerente a afirmação acima e a defesa feita neste trabalho sobre a relevância da abordagem de Reggio Emilia e a importância de documentar as propostas e experiências realizadas pelas crianças na Educação Infantil, acreditamos ser importante destacar que Lóris Malaguzzi deixou marcas de seu trabalho, seguindo os princípios da documentação feita por educadores em Reggio Emilia e em outras regiões da Itália, envolvendo pesquisa das práticas escolares, diálogo com educadores, pesquisa e reflexão teórica provenientes de diversos estudiosos reconhecidos por sua contribuição à educação, conforme exemplos citados anteriormente nessa seção. Mas, como a forma de publicar documentação não segue um formato acadêmico convencional – artigos, livros, não houve rápida divulgação de suas contribuições em nível mundial. Cabe ressaltar que, como aparece no primeiro item desta seção, Malaguzzi, desde o início, teve grande expressão na Itália, organizando congressos e trabalhando para a formação de professores. Também escreveu para uma revista dedicada exclusivamente à Educação Infantil - Zerosei, que depois se tornou Bambini (FARIA, 2007).

Não há, conforme Faria (2007, p.279), muitas publicações que abordam o histórico deste pensador, sendo “um personagem que ainda é desconhecido por muitos no âmbito da pedagogia.” Acreditamos, porém, que muitas de suas ideias encontram-se hoje divulgadas pelas publicações de autores de diferentes nacionalidades que estiveram em Reggio Emilia com a intenção de conhecer o projeto educativo do município e pelas publicações e mostras organizadas pela Reggio Children, organização já descrita anteriormente. Neste material nos apoiaremos nessas publicações para discorrer um pouco mais sobre as ideias de Lóris Malaguzzi, que se fundem com os princípios e características essenciais da abordagem de Reggio Emilia.

No projeto idealizado por Malaguzzi, há uma iniciativa para envolver não só os pais, mas toda a comunidade no projeto para a Educação Infantil, defendendo o direito das crianças a serem consideradas sujeitos da sociedade da qual fazem parte. Elas passam a ser consideradas produtoras de cultura e de história, e a documentação feita pelos educadores é usada também para a divulgação das potencialidades das crianças:

Uma outra coisa que surpreende aqueles que procuram conhecer nossa experiência é que conseguimos acumular um grande patrimônio de observações e pesquisa, todas documentadas, que confirmam como fomos capazes de unir fortemente as teorias às práticas. Ver, tocar e demonstrar é algo extraordinário para uma pedagogia que, frequentemente, ao contrário, simula, oculta e limita somente às palavras. (MALAGUZZI apud AMBECK-MADSEN, 1992, p.19,

apud FARIA, 2007, p.281).

Outro ponto de destaque é a valorização das diversas possibilidades de expressão da criança – a defesa de que elas têm 100 linguagens. Lóris criou o ateliê, espaço que ganhou destaque nas creches e escolas, assim como a figura do atelierista que, em parceria com os professores, participa do planejamento e da criação das possibilidades das crianças valerem-se dessa multiplicidade de linguagem no ambiente escolar (FARIA, 2007).

A criação do ateliê e a presença de um profissional com formação artística foi mais revolucionária do que aparentava à primeira vista, pois trouxe às escolas um novo olhar sobre a tradição pedagógica e aproximou a pedagogia da estética (HOYUELLOS, 2006). Para o autor, a busca pela beleza faz parte da espécie humana e é um direito fundamental – a preocupação com um ambiente esteticamente agradável, por exemplo, faz com que todos se sintam acolhidos e respeitados. Para isso, crianças e educadores assumem responsabilidades visando a este objetivo em cada uma das escolas. O prazer

proporcionado pela estética, conforme Malaguzzi, estabelece diálogo com os elementos cognitivos – o prazer de resolver problemas e procurar o significado das coisas (HOYUELLOS, 2006).

Com o ateliê, os aspectos técnicos da arte também passaram a ocupar um espaço diferenciado e Malaguzzi foi convencido pelos atelieristas sobre a importância das imagens na comunicação do que é trabalhado com as crianças pequenas. Dessa construção coletiva de pensamentos e ideias, estabeleceu-se um entendimento e parceria entre educadores e atelieristas: os primeiros passaram a valorizar o significado das imagens; e os segundos levaram em consideração a forma de comunicação sobre o trabalho feito pelos educadores, para que as imagens feitas tenham um uso eficiente (AZEVEDO, 2009). Conforme a autora (2009, p.34), “as imagens permitem encontrar características inéditas e próprias da linguagem visual que tornam possível criar a sintonia entre as idéias e as reflexões”. De acordo com Hoyuellos (2006), o uso da linguagem visual ampliou a sensibilidade estética dos educadores, pois estes passaram a buscar um olhar sensível para captar, com maior profundidade, o que acontece nos momentos de aprendizagem das crianças. Podemos afirmar que a presença do ateliê e dos atelieristas nas escolas foi de importância fundamental, para que a documentação ganhasse as formas de publicação flexíveis e os múltiplos formatos em que podem ser encontradas atualmente.

A crença na possibilidade das diversas formas de expressão pelas crianças e a não hierarquia entre elas leva a outra característica importante da proposta de Malaguzzi: o trabalho com projetos e a integração entre as diferentes áreas do conhecimento, garantindo, dessa forma, que o trabalho realizado nas escolas não fosse taxado como resultado de uma escola de arte (AZEVEDO, 2009).

Mais uma vez, a documentação ressalta sua importância nessa pedagogia, pois é por meio dela que os educadores envolvidos com os projetos podiam parar, refletir sobre o próprio trabalho e pensar na melhor forma de continuá-lo, respeitando as ideias e interesses das crianças, sem se deixar cair em espontaneísmo. Para Lóris, também o adulto é produtor de cultura e deve construir, de forma crítica e cooperativa, o currículo a ser trabalhado com as crianças, aprendendo a lidar com as incertezas desse caminho que, ao mesmo tempo, deve ser acolhedor e desafiador (HOYUELLOS, 2006). Os projetos, para o pedagogo, poderiam estar baseados tanto em situações propostas com foco na resolução de um problema ou no estudo de um assunto quanto em situações desenvolvidas ao longo do tempo (AZEVEDO, 2009). Dessa forma, Rinaldi afirma que

Um projeto, que vemos como uma espécie de aventura e pesquisa, pode iniciar através de uma sugestão de um adulto, da idéia de uma criança ou a partir de um evento, como uma nevasca ou qualquer coisa inesperada. Contudo, cada projeto está baseado na atenção dos educadores àquilo que as crianças dizem e fazem, bem como no que elas não dizem e não fazem. Os adultos devem dar tempo suficiente para o desenvolvimento dos pensamentos e das ações das crianças. (RINALDI, 1999, p.119).

Para trabalhar baseado nos princípios descritos acima, Malaguzzi defendia outro aspecto que perdura nos dias atuais nas escolas reggianas: o tempo garantido para a formação dos professores em serviço, em reuniões periódicas. Ele acreditava que a formação constrói-se nas relações e só com esse espaço garantido é que se pode pensar em um professor que saiba respeitar os espaços das crianças no dia a dia da escola:

Essa visão otimista da criança que é autônoma, capaz de estabelecer longas ‘conversações’ com os adultos e com outras crianças, que nasce com infinitas possibilidades de construir pensamentos, idéias, interrogações e tentativas de dar respostas, capaz de observar as coisas e reconstruí-las, exigiu uma professora também ‘dotada.’ (FARIA, 2007, p.283).

Assim, da mesma forma que acreditava na criança capaz, acreditava no educador capaz. Malaguzzi oferecia liberdade para a ação, mas criava uma atmosfera de responsabilidade. Conforme relata Davoli que trabalhou como atelierista em Reggio, (1998, apud AZEVEDO, 2009, p.33), “(ele) fazia-nos pensar e sentir as nossas experiências. Através das discussões, algumas particularmente duras com ele, ajudava- nos a encontrar o sentido do que estávamos a fazer.”

Estudando em conjunto com os professores suas documentações, levava-os a perceber uma forma diferente de estar com as crianças, respeitando seu espaço de protagonistas e valorizando o processo vivido e sua exposição. Lóris analisava as intervenções realizadas pelos professores e eliminava das documentações indícios da presença de um adulto dominante, que podia aparecer em um gesto ou expressão invasiva (HOYUELLOS, 2006). As críticas que tecia às documentações, visavam ao processo de formação dos educadores (HOYUELLOS, 2006; AZEVEDO, 2009), pois acreditava que estas eram uma ferramenta eficiente para confrontar ideias publicamente e, dessa forma, construir um conhecimento compartilhado.

Para Malaguzzi, a escola deveria ser um lugar onde todos os envolvidos no processo sentissem prazer em estar (AZEVEDO, 2009), onde professores e alunos

aprenderiam em conjunto. Deveria ser acolhedora, visível, documentada; um lugar que propiciasse reflexão, diálogos e críticas, essenciais para a aprendizagem; um lugar de esperança e alegria (HOYUELLOS, 2006). As relações estabelecidas em seu interior eram, para o pedagogo italiano, condições essenciais para a aprendizagem, estabelecidas com o meio, com os objetos e com o outro, parceiro na busca e construção de significados entre as ideias e o contexto.

Trata-se, portanto, de uma pedagogia que vê a professora e a criança inteiras, como protagonistas. A criança com pouca idade não é apenas uma aluna. Ela se espalha por todo o mundo através das culturas infantis, da manifestação de suas obras tridimensionais, dos desenhos inventivos que também mostram a tridimensionalidade do real, do imaginário, dos jogos e dos movimentos que ocupam o espaço em tempos diferenciados do tempo do capital. (FARIA, 2007, p.285).

Dada a valorização da estética e das relações presentes no pensamento pedagógico de Malaguzzi, a arquitetura e o ambiente da escola são também aspectos de grande importância. Para ele, a escolha das cores, luzes, mobiliários e espaços vazios deveria ser uma opção consciente, pois o espaço é mais um educador (HOYUELLOS, 2006). Ao entrar em uma escola, tudo comunica as escolhas e concepções presentes – de criança, de educação, de professor, enfim, a cultura do local. Além disso, deve-se ter em mente as possibilidades físicas e afetivas que o espaço proporciona (VECCHI, 2009). A habitabilidade do lugar define, conforme Malaguzzi, a qualidade do trabalho do professor e a qualidade de vida das crianças.

Por fim, devemos destacar o papel da escuta na pedagogia proposta por Malaguzzi. A concepção de uma criança capaz de criar significados às suas experiências, a documentação como estratégia para melhor compreender as crianças e o trabalho com projetos levaram à criação do que ele chamou de uma pedagogia da escuta. Ela se revela na postura do professor ao estar disposto e atento a ouvir o que as crianças têm a dizer por meio das diferentes linguagens, fazendo uso de diferentes instrumentos, para que seja possível uma constante reflexão dos caminhos pedagógicos escolhidos. A escuta atenta e acolhedora dos professores possibilita dar voz às crianças, seus pensamentos e relações estabelecidas por meio da documentação.