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4. Capítulo 2: Um Triste poeta pelo avesso

4.1 O consórcio entre ciência e arte

Na edição crítica de três artigos de Euclides “A vida das estátuas”158, “Castro Alves e o seu tempo”159 e “Antes dos versos”160 (cf.

Euclides da Cunha e a estética do cientificismo, 2011), José Leonardo

do Nascimento afirma que esses artigos “resumem e sistematizam a crítica de arte e os pontos de vista estéticos do euclidianismo”161. Antes de abrir a nossa discussão sobre Euclides da Cunha, um triste poeta pelo avesso, vejamos o que o próprio autor fala sobre o consórcio entre ciência e arte para depois pontuar como parte da crítica euclidiana o analisa.

Em carta a José Veríssimo, Euclides afirma “que a verdadeira impressão artística exige, fundamentalmente, a noção científica do caso que a desperta”162, ou que “qualquer trabalho literário se distinguirá dos estritamente científicos, apenas, por uma síntese mais delicada, excluída apenas a aridez característica das análises e das experiências”163. A síntese delicada seria o resultado de um movimento inicialmente despertado pela emoção diante de um caso ou de um fato; faz-se necessário, num segundo momento, buscar as noções científicas existentes sobre ele; a verdadeira impressão artística surgiria a partir desse movimento dialético, preparado pela contraposição entre emoção e

158 O artigo “A vida das estátuas” foi publicado originalmente em 21 de julho de 1904, no jornal O País. Posteriormente foi incluído em Contrastes e Confrontos.

159 “Castro Alves e o seu tempo” foi originalmente uma conferência acontecida no dia 2 de dezembro de 1907 na Faculdade de Direito de São Paulo. No dia seguinte, O Estado de São Paulo a publicaria em sua primeira página. Foi publicada em um pequeno volume, pela Imprensa Nacional, alguns meses depois.

160 “Antes dos Versos” foi um prefácio escrito para o livro Poemas e canções, de Vicente de Carvalho, em 1908.

161

NASCIMENTO, Euclides da Cunha e a estética do cientificismo, 2011, p. 8. 162 GALVÃO; GALOTTI (Orgs.), Correspondência de Euclides da Cunha, 1997, p. 144. Carta a José Veríssimo, de Lorena, datada de 3 de dezembro de 1902.

163 GALVÃO; GALOTTI (Orgs.), Correspondência de Euclides da Cunha, 1997, p. 144. Carta a José Veríssimo, de Lorena, datada de 3 de dezembro de 1902.

ciência; no final do processo se atingiria a superação sintética, a síntese delicada.

Em “A vida das estátuas”, lemos: “Aos fatos capazes das definições científicas164, ele [o artista de hoje] tem de sobrepor a imagem e as sensações”165. Note-se que, desde então, Euclides lança algumas diretrizes que irão reaparecer em seus textos. São elas: a) os fatos − não são quaisquer fatos, mas os passíveis de análise e definição científica; b) as definições científicas −para que se reconheçam os fatos, seria necessário um conhecimento prévio dos conceitos científicos; c) a sobreposição das imagens e das sensações ao discurso científico − o “toque” artístico.

Essas diretrizes serão paulatinamente mais elaboradas, como poderemos ver na cena que abre tanto o discurso da ABL como À

Margem da História. Diante da paisagem amazônica, o desapontamento

é a emoção que surge. Esse desapontamento não é descartado; pelo contrário, seguindo uma tendência humbolditiana, vemos que ele é utilizado como um componente argumentativo. Depois da leitura da monografia166 de Jacques Huber, cuja linguagem era “um idioma estranho gravado do áspero dos dizeres técnicos”167, feita numa noite de insônia, ele consegue, “com os olhos ardidos”, ver pela primeira vez o Amazonas: “Salteou-me, afinal, a comoção que eu não sentira”168.

A visita ao Museu do Pará, feita no mesmo dia da chegada em Belém, somada às conversas com os seus dirigentes e a leitura da monografia tiveram um efeito importante nas impressões de Euclides, pois o lugar que antes lhe parecera tão monótono ganhou uma “impressão verdadeiramente artística”169. Temos aí as diretrizes que apareceram em “A Vida das Estátuas”: a) a emoção diante da foz do Amazonas já teria despertado o interesse dos cientistas e Euclides tinha um conhecimento (ainda que parcial) de alguns dos estudos realizados sobre o local, ou seja, era um “fato” digno de observação; b) a

164 Sem vírgula no original.

165 CUNHA, “A Vida das estátuas”, 1966, p. 118.

166 Não se sabe exatamente qual monografia de Jacques Huber Euclides teria lido.

167 CUNHA, “Discurso de Recepção na Academia Brasileira de Letras”, 1966, p. 206.

168

CUNHA, “Discurso de Recepção na Academia Brasileira de Letras”, 1966, p. 205.

169 CUNHA, “Discurso de Recepção na Academia Brasileira de Letras”, 1966, p. 206.

monografia de Jacques Huber; c) a emoção que se sobrepõe ao que foi lido, permitindo que ele veja a foz com a) e b) combinados.

Como se pode perceber pelos trechos citados, Euclides se proclama um escritor ligado às observações, adstrito aos fatos; as leituras de textos científicos orientariam a observação; não se almejava, entretanto, a produção de um trabalho científico, uma vez que o trabalho literário deveria excluir a aridez das análises típicas do discurso científico. Por hora, guardemos essa ideia de “síntese delicada” − em breve veremos como ela se torna problemática na própria crítica e análise da obra euclidiana.

Em 1907, no discurso feito para os acadêmicos da Faculdade de Direito de São Paulo, a combinação entre arte e ciência aparece novamente:

É o que nos diz que nesta vida, em qualquer dos rumos percorridos, quer nas pesquisas da ciência, quer na contemplação artística, quer nos inumeráveis aspectos da ordem prática, devemos submeter a nossa imaginação à nossa observação, porém de modo que esta não anule aquela: isto é, que os fatos, reunidos pela ciência, não se agreguem numa pesada e árida erudição e só nos tenham a valia que se derive de suas leis; que os modelos, ou objetos de nosso descortino artístico, não se submetam em tanto extremo à ordem material, que nos extingam o sentimento profundo da natureza, apequenando-nos num raso realismo; e que as exigências utilitárias da vida prática, o ansiar pelo sucesso, a nobre vontade de vencer com os recursos que crescem, a subir, desde a riqueza até ao talento, não rematem fechando-nos o coração e exsicando-nos o espírito, deixando- nos sem as fontes inspiradoras da afetividade e das nossas fantasias. Nem místicos, nem empíricos... Ora, das palavras anteriores pode inferir-se o conceito de que nos andamos ainda muito abeirados do misticismo, fora da mediana norteadora entre a existência especulativa e a existência ativa (CUNHA, “Castro Alves e seu tempo”, 1966, p. 435).

Se, em 1902, a combinação entre arte e ciência era uma “síntese delicada”, em 1907, o autor lança a ideia de uma “mediana norteadora”,

“que conciliaria a imaginação criadora com a justa observação empírica da realidade”170, segundo nos diz Nascimento. A mediana norteadora seria o equilíbrio, almejado por Euclides, entre o sentimento profundo da natureza − a afecção − e a percepção. A exposição deveria contemplar esses dois aspectos, sem tender demais nem para um nem para o outro.

Note-se como os dois conceitos trazem perspectivas diferentes: se a síntese seria o resultado final de um movimento dialético, a mediana norteadora não implica somente um resultado, mas também um parâmetro a ser seguido. Para que não se caia em um “realismo raso” ou numa “árida erudição”, tanto ciência quanto arte devem procurar um caminho do meio, uma mediana. Esse é um conceito geométrico − “segmento de reta que liga o vértice de um triângulo retângulo ao meio do lado oposto” − ou estatístico − “valor que divide um conjunto de valores ordenados em partes iguais”171. Ainda que atentando para um equilíbrio entre ciência e arte, a forma desse equilíbrio viria de uma noção geométrica ou estatística que pressupõe, inclusive, que esse equilíbrio poderia ser atingido. Ou seja, no discurso de 1907, Euclides apregoa a possibilidade de uma equação equilibrada entre arte e ciência, mas os termos utilizados para falar desse equilíbrio são científicos e não artísticos, o que faz sua argumentação tender para o lado científico sem, no entanto, descartar a arte.

Em 1908, no prefácio ao livro Poemas e Canções, de Vicente Carvalho, essa ideia reaparece, reconfigurada:

Para abarcar a vida, ou realizar a síntese de seus aspectos, já não basta o êxtase, ou a genuflexão admirativa, senão a solidariedade de suas leis com a nossa harmonia moral, de modo que, submetidos à unidade do universo, sejamos cada vez mais a própria miniatura dele e possamos traduzi-lo sem falsificá-lo, embora o envolvamos nos véus simbólicos da mais ardente fantasia (CUNHA, “Antes dos versos”, 1966, p. 440).

A síntese retorna, sem o seu adjunto “delicada”. Não basta a admiração, diz Euclides, devemos nos submeter à unidade do universo para produção de uma tradução, sem traição, no entanto. Talvez por

170 NASCIMENTO, Euclides da Cunha e a estética do cientificismo, 2011, p. 34.

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escrever um prefácio para um livro de poemas, Euclides tente utilizar um conceito mais próximo do que hoje chamamos de crítica literária. Por que não utilizar um conceito da crítica literária na palestra sobre Castro Alves?, poderíamos perguntar. Se não podemos pensar em tradução sem traição, Euclides não admite a falsificação, embora a ardente fantasia envolva a produção de uma miniatura do universo.

A reflexão sobre a relação entre tradução e traição ganha força com Walter Benjamin, em “A tarefa do tradutor”, texto que saiu em 1923 como prefácio à tradução dos Tableaux parisiens de Baudelaire, em Heidelberg, na Alemanha. Segundo o argumento de Benjamin: “nenhum dado do conhecimento pode ser ou ter pretensões a ser objetivo quando se contenta em reproduzir o real, e do mesmo modo também nenhuma tradução será viável se aspirar essencialmente a ser uma reprodução parecida ou semelhante ao original”172.

O caso ao qual Euclides se refere é relativo à tradução de “aspectos da vida”, da “harmonia moral”, para a escrita (ou para a arte) − uma tradução do mundo para a escrita. Se, por um lado, poderíamos pensar que há um posicionamento contra a falsificação, por outro, essa tradução é envolvida em fantasia. Benjamin faz um paralelo para ilustrar a combinação entre liberdade e fidelidade no que se refere à tarefa da tradução:

Do mesmo modo que uma tangente só toca ao de leve num único ponto da circunferência, e do mesmo modo que a lei geométrica apenas fixa e prevê este contato mas não o ponto em que ele tem de se verificar, continuando a tangente depois disso o seu caminho reto em direção ao infinito, também a tradução toca apenas ao leve no original e somente num ponto infinitamente pequeno do seu significado, para depois, de acordo com a lei da fidelidade na liberdade do movimento da língua, continuar e seguir o seu próprio caminho (BENJAMIN, “A tarefa do tradutor”, tradução de Fernando Camacho. In: BRANCO, L.C. (org.), 2008, p. 40).

A comparação geométrica de Benjamin, bem ao gosto da prosa euclidiana, é pertinente para pensar a combinação entre uma tradução

172 BENJAMIN, “A tarefa do tradutor”, tradução de Fernando Camacho. In: BRANCO, L.C. (org.), 2008, p. 30.

sem falsificação e os véus simbólicos da fantasia. A tangente segue um caminho reto em direção ao infinito, tocando, em algum ponto, o original. Ainda que esse ponto não seja previsível, uma vez tangenciado, a fantasia pode se desenvolver e dele se distanciar. Haveria uma fidelidade pontual, seguida por uma liberdade infinita.

Um problema que se delineia aqui é o da observação. Pois em Euclides, a tradução diria respeito a um contato com o “mundo real”. Mas a observação de Euclides, como já vimos, não era “pura”, mas direcionada a partir de leituras de textos científicos. Se os textos científicos norteiam a observação, isso poderia significar uma diminuição da importância da própria observação. Mas Euclides poderia, simplesmente, prescindir da observação e retirar dos discursos científicos a sua aridez característica, neles imprimindo a afetividade e a fantasia?

Provavelmente não. Euclides era um escritor que viajava, ou seja, a observação é um elemento importante da relação dialética pretendida em seus textos. Em que medida suas observações são ou não torcidas pelas suas leituras? Em que medida ele escapa do “raso realismo” ou da “árida erudição”? O compromisso com as leis da ciência poderia se enovelar com uma fantasia apaixonada sem qualquer tipo de falsificação?

Essas questões aqui levantadas, impulsionadas pelos argumentos do próprio Euclides −o da síntese delicada, o da mediana norteadora e o da tradução sem falsificação − foram discutidas por muitos críticos da obra euclidiana. Comecemos por Nelson Werneck Sodré (1959), passando por Freyre (1966), e depois Nascimento (2011), Bernucci (1995 e 2008), Costa Lima (1997), Sevcenko (1999), Foot-Hardman (2009) e Galvão (2009): com mais ou menos apuro, esses autores escreveram sobre o consórcio entre ciência e arte na obra euclidiana. Como já foi dito anteriormente, a parcela mais volumosa da crítica euclidiana está focada em sua obra mais conhecida, Os Sertões. Mesmo que o nosso objetivo aqui não seja direcionar a nossa análise a esse livro, façamos um pequeno apanhado dos argumentos de seus grandes críticos. Não pretendemos nos posicionar em relação a todas as análises (isso seria impossível), mas recortar a fortuna crítica na perspectiva de dela retirar o que seja pertinente para o desdobramento em relação à escritura euclidiana sobre a Amazônia.

Em 1959, Nelson Werneck Sodré se deteve na relação entre ciência e arte em Os Sertões. Na comparação entre Os Sertões e o

escreve com veracidade e grandeza. Depois de reunir uma bibliografia ampla sobre o tema, sua escritura decai para uma teorização vazia e cheia de ideologia colonial:

Apesar dos esforços que fez para dominar instrumentos de análise que lhe permitissem transformar um caderno de notas, mero rascunho dos acontecimentos, numa obra definitiva, Euclides da Cunha não poderia, por motivos independentes de sua vontade, ir ao fundo dos motivos essenciais do problema. Antes, anotara já, com honestidade que honra o escritor de raça que era, as suas deficiências em Geologia, em Botânica e em outros campos. Tentou superá-las todas, antes de lançar-se ao trabalho final. Nesse esforço, auxiliado por Escobar e outros amigos, operou uma completa revisão de seus conhecimentos. Mas, no conjunto, a ciência de que se utilizou não foi apenas a ciência de seu tempo − foi o que, da ciência de seu tempo, chegara ao Brasil. Nisso interfere, acima da vontade dos indivíduos, ainda que excepcionais, aquilo a que estão subordinados. É quando aparece a ideologia do colonialismo, a que Euclides, apesar de seus geniais lampejos de intuição, não ficou imune (SODRÉ, Nelson Wernek. “Revisão de Euclides da Cunha”. In: COUTINHO, Afrânio (org.). Obra Completa de Euclides da Cunha, volume II, 1966, p. 31). Para Sodré, apesar de uma intuição e um gênio excepcionais, a bibliografia usada por Euclides implicou numa discussão científica questionável, pois ele se utilizara de fontes incompletas, desatualizadas, que não estavam à altura de sua rica observação da realidade. Gilberto Freyre, por sua vez, vê em Euclides − até para marcar uma diferença entre a sua obra e a dele173−um cientista híbrido, que não soube (ou não

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Segundo Ana Luiza Andrade, as diferenças entre as prosas de Euclides e Freyre passam, também, pelo contraste entre o excedente e a falta na reflexão sobre o sertão: “Em Freyre, fala, na eloquência dos contrastes, o excedente discursivo − ‘A doçura das terras de massapê contrasta com o ranger da raiva terrível das areias secas dos sertões’ − parecendo, com isso, preencher exuberantemente os vazios ou tentar escrever nas entrelinhas de Euclides. Trata- se de uma economia discursiva de relatos coloniais, que se tinge

quis) separar a própria análise de sua condição de analista, como vemos no comentário abaixo, extraído do ensaio que escreveu para a publicação das obras completas de Euclides, organizada por Afrânio Coutinho:

Diz-se da ciência que é a analítica teórica e impessoal, enquanto a arte é sintética, prática e pessoal, além de orgânica. Na obra de Euclides da Cunha predominam as virtudes artísticas sobre as científicas. E sua própria maneira de ser cientista foi uma maneira hispânica ou ibérica, admitindo a presença do analista na obra de análise... (FREYRE, “Euclides da Cunha, revelador da realidade brasileira”. In: COUTINHO, Afrânio (org.). Obra Completa de Euclides da Cunha, volume II, 1966, p. 29).

Essa forma da produção euclidiana, que Freyre identifica como a inserção de uma perspectiva própria na análise científica e Sodré atribui ao uso indevido dos debates científicos que chegavam ao Brasil, pode ser lida tanto como fracasso ou como sucesso. As incompreensões de Sodré parecem ressaltar o fracasso, pois mesmo que suas observações sejam riquíssimas, elas depois seriam afogadas por uma teorização vazia. Já Freyre parece preferir um meio termo, uma vez que fora um grande leitor de Euclides, mas não deixa de identificar falhas em sua argumentação científica.

exageradamente de um discurso patriarcal, como divisor sexual da paisagem. No discurso de Freyre, a paisagem do Nordeste surge em sua oscilação estética entre o arredondado do massapê e o anguloso do sertão, equiparados aqui metonimicamente à contraposição simbólica da doçura da cana versus a dureza do cacto. Freire, em Perfil de Euclydes, percebe uma repugnância desse último à vegetação tropical do massapê e à paisagem ‘gorda’ do engenho de açúcar, descrita no excesso ou na gordura de suas próprias palavras ‘o gordo, o arredondado, o farto, o satisfeito, o mole das formas; seus macios como que de carne; o pegajento da terra; a doçura do massapê’ (p. 30). Ao contrário dessa gordura considerada como paisagem feminina patriarcalmente associada à fertilidade das terras em seu alastrar-se reprodutivo de canas na paisagem e ao efêmero prazer feminino, como o de um “momento que passa, a banalidade cotidiana”, a de Euclides, segundo Freyre, ‘Atraía-o o anguloso, o ossudo, o hirto dos relevos ascéticos ou, quando muito, secamente masculino do ‘agreste’ e dos ‘sertões’” (ANDRADE, Ana Luiza. Outros perfis de Gilberto Freyre: voltas duras/dóceis ao cotidiano dos brasileiros, 2007, p. 72-3).

André Pacheco, em sua dissertação de mestrado, comenta sobre as consequências da observação combinada com a subjetividade, ou da presença do analista no objeto analisado, conforme o argumento de Freyre:

Embora a explicação última da análise de Gilberto Freire da obra de Euclides da Cunha seja de cunho psicológico − circunstâncias biográficas explicando a feição da obra −, ressalte-se que essa interpretação opera um deslocamento na leitura de Os sertões tanto do parâmetro científico quanto do estilístico. Não se trata de obra científica, exclusivamente, haja vista a forte deformação do dado objetivo pela subjetividade do escritor; é pela mediação desta que determinada realidade − o sertão, a Nação − se mostra ao leitor. Para Freire, o elemento poético (e anti-cientifico) do livro reside nessa transfiguração e não no seu estilo grandiloqüente (PACHECO, “Literariedade e cientificidade em Os sertões: A recepção crítica recente (1943-2001)”, 2003, p. 23).

Se há uma deformação do dado objetivo pela subjetividade do escritor, o que, veremos adiante, é retomado por alguns críticos na análise de Os Sertões, isso poderia nos levar a pensar que a tal mediana norteadora não teria funcionado propriamente como uma mediana, mas como uma reta que não divide um triângulo em partes iguais ou, na estatística, que os valores não teriam sido divididos pela metade; a balança penderia mais para arte do que para ciência. Ao mesmo tempo, na própria argumentação euclidiana, ainda que a falsificação seja retirada da tradução, não se lhe retira a fantasia. Ou seja, o próprio Euclides já anuncia que os véus da fantasia compõem os seus cenários, eles, no entanto, apareceriam num segundo momento, depois de tangenciar algum ponto não previsível do “dado objetivo”.

Por um lado, Sodré parece ter focado sua crítica no segundo movimento proposto por Euclides − o da antítese ou da contraposição entre emoção e ciência −, por outro, Freyre reconhece a presença da subjetividade do escritor, acometido pelas paixões e desejos174. Nesse

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Conforme o argumento de Ana Luiza Andrade, é possível pensar que mesmo as emoções de Euclides já se impusessem com uma secura e uma angulosidade características da personalidade do escritor: “Com a plasticidade do pincel, Freyre observa, nas figuras, como nas paisagens de Euclides, uma tendência

sentido, poderíamos pensar que a antítese que as leis científicas deveriam promover não solapa completamente as emoções iniciais; o movimento dialético não consegue transcender a tese, a emoção despertada pelo fato, o impulso primeiro da escritura − “o que coincide exatamente com o sentido de ‘transbordamento de limites’ que Gilberto

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