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4. Capítulo 2: Um Triste poeta pelo avesso

4.2 Uma parábola oblíqua

Como contraposição aos autores utilizados na seção anterior, vou recorrer, como apoio, ao ensaio “Dois Grandes Estilos”, escrito por Araripe Jr. por ocasião da publicação de Contrastes e Confrontos, em 1907.

Nesse ensaio, o crítico compara Euclides da Cunha e Rui Barbosa, como faz posteriormente com Euclides da Cunha e Raul Pompeia, em “Dois vulcões extintos − Raul Pompéia e Euclides da Cunha”206. Se, nesse ensaio, Araripe conseguiu reunir duas personalidades de temperamentos semelhantes, no primeiro, o crítico está diante de dois autores muito diferentes: Euclides tem “um temperamento artístico, violento, ardente e abundante, talvez incapaz de disciplina; ao passo que o autor das Cartas de Inglaterra é apático e mal aparelhado de imaginação, o que não quer dizer que a este faltem outras qualidades de primor”207. Não nos deteremos nas comparações que Araripe Jr. faz entre Euclides e dois de seus contemporâneos. Vejamos como, a partir de uma cena, o crítico esboça certos traços da escritura euclidiana.

Araripe narra “um acontecimento trágico, cujo teatro foi a escarpa de uma serra, nele figuram, como personagens, três crianças apenas, imprudentes e malignas”208. Essas crianças teriam descoberto um “terrapleno formado por uma pedra, que, destacando-se da vegetação tufosa e luxuriante da encosta, caía a pique sobre o vale que se afundava numa grota sem saída, pelo menos aparente”209. Ali elas fizeram um perigoso balanço, onde podiam se jogar, graças à resistência de alguns cipós enovelados em uma aroeira, sobre o penhasco e voltar ao ponto de partida. Num desses balanços, o trampolim não voltou mais.

Depois de muita comoção, as buscas pelo menino que se lançara no abismo começaram. Um mateiro experiente penetrou o fundo da grota que ficava justamente por baixo do balanço, sem conseguir encontrar o corpo do menino. “Mas o cálculo estava errado, porquanto o mateiro, apesar do tino característico dessa gente, não contara com a parábola descrita pelo corpo do rapaz, que fora atirado com propulsão

206 ARARIPE Jr., “Dois vulcões extintos − Raul Pompéia e Euclides da Cunha”, 1966, p. 291-299.

207 ARARIPE Jr., “Dois grandes estilos”, 1966, p. 95. 208 ARARIPE Jr., “Dois grandes estilos”, 1966, p. 83. 209

violentíssima”210. Por fim, ouviram-se os choros do menino, que tinha sido atirado pelo balanço em outra direção:

Exame posterior demonstrou que, das duas vergas do trampolim, apenas uma tinha se desligado, devido às repetidas flexões, que a ressecaram. Essa circunstância determinara a variação da parábola, que, em vez de se descrever na seção vertical, fez-se na seção oblíqua, propelindo o corpo de modo que este encontrou logo a curva da encosta no contorno da grota caprichosa (ARARIPE Jr., “Dois grandes estilos”, 1966, p. 86).

Detenhamo-nos um pouco na figura do “mateiro experiente”: como o epíteto desse homem já revela, ele tinha conhecimento dos itinerários para andança pelo mato; calculou a trajetória do corpo da criança caso os dois cipós de sustentação tivessem se rompido simultaneamente, mas não imaginou o desvio de trajetória resultante do fato de apenas um cipó ter se partido, projetando o corpo para esquerda, se o direito, ou para direita, se o esquerdo. De todo modo, um sintomático desvio do retilíneo, do previsível, do mais simples.

Nessa parábola, Euclides da Cunha por certo não faria o papel do mateiro. O mateiro tem uma inteligência prática, mesmo que tenha cometido o erro de deixar-se levar por uma observação canhestra. É quem conhece o mato, sabe o que acontece ali dentro, se orienta pelo som, textura, cheiro. Se Euclides não faria o papel do mateiro, fica a pergunta: quem faz esse papel nessa cena? Poderíamos imaginar que o mateiro faria o papel do crítico que não imagina o salto, não supõe o desvio e se deixa levar por uma observação que combina técnica e prática. Utilizando seus instrumentos, o crítico que se comporta como o mateiro anda pelo mato muito bem; não se perde, mas não necessariamente encontra o que se pôs a procurar. O salto, no entanto, está dado, um corpo moribundo grita onde não se imagina. Para encontrá-lo, deve-se imaginar o salto, supor o desvio, procurar a incongruência das possibilidades. Ler a crítica euclidiana me faz deparar, frequentemente, com análises que suprimem (ou não suspeitam) os desvios prováveis em cada salto imprudente que o autor faz. Como crítica, posso estar, também, sujeita a uma observação canhestra.

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Mesmo afeito às andanças terra-a-terra, ao trabalho do mateiro, Euclides não deixava de atentar para o erro e a ilusão inerente às observações: “Destarte a própria visão material nos é errônea. Envolve- nos uma ilusão tangível. E todo o trabalho das observações mais simples está em eliminarem-se as aparências enganadoras da realidade, por maneira que, ao fim de longos cálculos, possamos ver o que os nossos olhos não mostraram”211.

Desconfiado do que as aparências lhe revelavam, acreditava que sua habilidade analítica pudesse, através de cálculos, mostrar outras realidades que a princípio não poderiam ser observadas. Mas nem por isso as primeiras impressões foram descartadas; para o cálculo exato, a imaginação engenhosa tentava combinar todas as variáveis que poderiam compor os problemas com que se deparava. De fato, a sua formação de engenheiro nunca foi relegada a um pano de fundo em sua escritura. Ao que o próprio autor comenta:

Falo por mim. Eu fui um obscuro e pertinaz estudante de matemática. Quer dizer: precisamente quando mais adorável se nos mostra o quadro desta vida, e o seu vigor desponta da mesma ansiedade de viver, tive que contemplar o universo vazio e parado −apagadas todas as luzes, extintos todos os ruídos, desaparecidas todas as coisas, desaparecida a própria matéria --,212 de sorte que nessa abstração, a aproximar-nos do caos, permaneçam, como atrativos únicos, a forma, nos seus aspectos irredutíveis, e o número e sinais completamente inexpressivos (CUNHA, “Castro Alves e o seu tempo”, 1966, p. 429). O quadro da vida deveria ter sua vivacidade apagada; a abstração daria a ver a sua forma, em seus aspectos irredutíveis − daí sobressairiam os saltos interpretativos. A escritura de Euclides ocasionalmente se lança em abismos, calculando riscos e projetando elipses e parábolas de maneira a vislumbrar uma forma sintética dos eventos analisados. Essa forma sintética, porém, não vem da maneira mais simples − desvia-se num rumo impensado, improvável, oblíquo, para retomar a anedota do balanço e a discussão sobre o problema da síntese delicada que fizemos anteriormente.

211 CUNHA, “Castro Alves e o seu tempo”, 1966, p. 421. 212

Na parábola contada por Araripe Jr., Euclides da Cunha faria o papel do menino imprudente que, confiando em seu aparelho instrumental, se deixa lançar por escarpas que o levam para um lugar diferente daquele que a princípio teria prefigurado. O balanço quebra, os cipós se corroem, as teorias prévias se despedaçam diante dos abismos em que se lança. A carreira no exército, a adesão ao projeto republicano, a viagem para o sertão, o trabalho como engenheiro, a viagem para a Amazônia − são todos abismos em que o escritor se lançou com saltos oblíquos, que se desviavam da seção meramente vertical. Araripe Jr. nos conta que o caráter do menino que voou com o trampolim transformou- se: afinal, “não se passa, impune, de olhos abertos, através da morte”213. E conclui a sua parábola:

Euclides da Cunha, seguramente, nunca transitou, como aquela criança, pelo corredor da morte; mas é certo que atravessou uma revolução, durante a qual teve de encarar esfinges e, com o auxílio da imaginação candente que a natureza lhe deu, decifrar enigmas psicológicos da terribilidade inexprimível. Nascido para poesia e, ao mesmo tempo, dotado de uma segunda vista, que lhe tornava perigoso o exercício da faculdade de observação, teve de presenciar manifestações tremendas de perversidade humana e andou, mais de uma vez, resvés pelos alcândores da política de Gloucester. Essa passagem acrisolou-lhe os enigmas literários; os acontecimentos expungiram o seu espírito dessa vagabundagem estética, que é a sarna da literatura dos sevandijas.

Todo o colérico, que, na sua juventude, fazia dele um imprudente, senão um exaltado impenitente, calou na vida do artista com raro êxito (...), canalizaram para o estilo todos os excessos de temperamento que faziam recear do futuro desse moço (ARARIPE Jr., “Dois grandes estilos”, 1966, p. 86).

Essa parábola nos traz algumas imagens para as questões que pretendemos discutir aqui. Impulsionados pelo trampolim de Araripe Jr., observemos alguns aspectos da produção de Euclides sobre a Amazônia. Tentaremos não fazer o papel do mateiro; se Sodré e Nascimento se

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desviaram do discurso na ABL, pelas razões que citamos anteriormente, vejamos os saltos que Euclides deu nessa cena. Ele desejava ser membro da ABL e se reconhecia como merecedor desse pertencimento: diante de uma plateia de interlocutores e notórios políticos da época −alguns dos quais já teriam se colocado como mateiros diante de sua obra −, amarrado pela etiqueta argumentativa dos discursos de posse, Euclides talvez tenha conseguido orientar o seu discurso em sua própria direção, embalando seu movimento argumentativo ora em direção a Castro Alves, ora em direção a Valentim Magalhães.

4.3 “Falando aos acadêmicos”

o euclidiano (matematicamente falando) euclides descobre o avesso antieuclidianamente (Paulo Leminski, “sertões anti-euclidianos”)

A dificuldade de escrever sobre o rio Amazonas será a cena inicial montada por Euclides no discurso de posse na ABL. A foz do Amazonas desapontava a impressão que imaginava alcançar e Castro Alves214, o grande poeta do romantismo brasileiro, também desapontava. Referindo-se a como se sentia ao ocupar a cadeira 7, Euclides confessa: “Avaliai, portanto, os meus embaraços ao ocupar a cadeira de Castro Alves. Estou, mais uma vez, ante uma grandeza que à primeira vista não

214 Cabe lembrar que Euclides da Cunha não foi o único a relacionar a foz do Amazonas ao poeta Castro Alves. Mário de Andrade, em sua viagem para o norte em 1927, em O Turista Aprendiz, comenta: “Não sei, quero resumir minhas impressões desta viagem litorânea por nordeste e norte do Brasil, não consigo bem, estou um bocado aturdido, maravilhado, mas não sei... Há uma espécie de sensação ficada da insuficiência, de sarapintação, que me estraga todo o europeu cinzento e bem arranjadinho que ainda tenho dentro de mim. Por enquanto, o que mais me parece é que tanto a natureza como a vida destes lugares foram feitos muito às pressas, com excesso de castro alves” (ANDRADE, O Turista Aprendiz, 1976, p. 60-1). As impressões de Mário se parecem com muitas das de Euclides. Há um atordoamento para escrever, de maneira que por mais que se escreva, a sensação de incompletude é gritante. Ela vem como resultado do que se produziu na escrita, mas também como uma impressão que a própria paisagem provoca: para Mário a natureza amazônica parece ter sido feita às pressas; Euclides diz que a Amazônia é a página ainda não escrita do Gênesis, onde o homem chega antes que a natureza tenha concluído seu trabalho. O europeu “cinzento e bem arranjadinho” fica em questão, pois diante de uma paisagem tão tropical, não há como não passar ao largo da obnubilação − os afetos e os perceptos surgem, mas devem ser transformados. A adjetivação irônica de Mário a Castro Alves poderia ser uma tentativa de diminuir o seu trabalho frente ao trabalho da natureza.

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