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Esse homem que eu tinha era homem simples e rústico, o que é condição própria a tornar verdadeiro o testemunho, pois as pessoas finas observam com bem mais curiosidade, e mais coisas, mas glosam-nas; e para fazerem valer sua interpretação e convencer não conseguem deixar de alterar um pouco a história: nunca nos relatam as coisas puras; curvam-nas e mascaram-nas para adequá-las aos próprios pontos de vista; e para dar crédito a seu julgamento e atrair-nos, gostam de aumentar sua própria participação no assunto, ampliando-a e estendendo-a (MONTAIGNE, “Sobre os canibais”, tradução e notas de Rosa Freire D’Aguiar, 2010, p. 144).

Euclides da Cunha e Constant Tastevin se colocam em espaços de atuação híbrida, ambígua, muitas vezes trabalhando com interesses conflitantes. Poderíamos dizer que a escritura dos dois é motivada por esse tipo de atuação: pelo desejo de ir além do trabalho oficial, de produzir textos que escapassem do modelo ao qual estavam inicialmente restritos. Roland Barthes comenta sobre a produção motivada pelo desejo, relacionando-a à escrita etnográfica. O contato de Barthes com a alteridade oriental, promovida pelas viagens ao Japão, se aproxima das viagens de Tastevin e Euclides nessa volúpia de recolher informações, numa exploração instigada e impulsionada pelo desejo:

Quanto às coisas que me interessavam no Japão -- é por isso que eu falo de etnólogo −, eu estava absolutamente à cata de todas as informações que pudesse receber, e correspondia a todas. Se me falavam de um lugar que podia me instigar, mesmo de maneira vaga, eu não desistia antes de tê-lo encontrado. É a atitude do etnólogo: a exploração puxada pelo desejo (BARHTES, O Grão da Voz, tradução de Mario Laranjeira, 2004, p. 327).

O desejo impulsiona as viagens dos dois autores: Euclides deseja escrever seu novo livro, tendo já anunciado sua vontade de conhecer o Acre em cartas60. Tastevin, através da Congregação do Espírito Santo, faz viagens apostólicas coletando informações para escrever artigos e receber o reconhecimento que desejava. Os dois autores estão intensamente interessados na região, mas se interessam mais ainda pela escrita, pois através dela dariam vazão aos seus anseios enquanto intelectuais.

Se na entrevista para Jean-Jacques Brochier, de fevereiro de 1975, Barthes condiciona sua exploração à uma voluptuosidade que escancara e reage aos estímulos que lhe atingem, em O Império dos Signos, seu impulso vem traçado mais intensamente:

O autor jamais, em nenhum sentido, fotografou o Japão. Seria antes o contrário: o Japão o iluminou com múltiplos clarões; ou ainda melhor: o Japão o colocou em situação de escritura. Essa situação é exatamente aquela em que se opera certo abalo da pessoa, uma revirada das antigas leituras, uma sacudida do sentido, dilacerado, extenuado até o seu vazio insubstituível, sem que o objeto cesse jamais de ser significante, desejável. A escritura é, em suma e à sua maneira, um satori: o satori (o acontecimento Zen) é um abalo sísmico mais ou menos forte (nada solene) que faz vacilar o conhecimento, o sujeito: ele opera um vazio de fala. E é também um vazio de fala que constitui a escritura; é desse vazio que partem os traços com que o Zen, na isenção de todo sentido, escreve os

60 “Alimento há dias o sonho de um passeio ao Acre. Mas não vejo como realizá-lo. Nesta terras, para tudo faz-se mister o pedido e o empenho, duas coisas que me repugnam. Elimino por isto a aspiração −é que talvez pudesse prestar alguns serviços” (GALVÃO; GALOTTI (Orgs.), Correspondência de Euclides da Cunha, 1997, p. 149. Carta ao Dr. Cruls, datada de 20 de fevereiro de 1903). Ou: “Para mim esse seguir para Mato Grosso, ou para o Acre, ou para o Alto Juruá, ou para as ribas extremas do Mahú, é um meio admirável de ampliar a vida, de torná-la útil e talvez brilhantíssima. Sei que farei muito. Aquelas paragens, hoje, depois dos últimos movimentos diplomáticos, estão como o Amazonas antes de Tavares Bastos; e se eu não tenho a visão admirável deste, tenho o seu mesmo anelo de revelar os prodígios de nossa terra” (GALVÃO; GALOTTI (Orgs.), Correspondência de Euclides da Cunha, 1997, p. 208. Carta a José Veríssimo, datada de 24 de junho de 1904).

jardins, os gestos, as casas, os buquês, os rostos, a violência (BARTHES, O Império dos Signos, tradução de Leyla Perrone-Moysés, 2007, p.10). O Japão é uma paisagem, não pode ser fotografada, mas coloca o autor na situação de escritura. Estar diante da paisagem abala, ou provoca a suspensão da presença, como nos diz Nancy. O sentido é transformado, revirado, questionado, almejado − mas ele não aponta para além do indefinível que a paisagem não cessa de propor. A suspensão da presença é também um tipo de vazio de fala; pode fazer com que o próprio aspirante à observação reflita sobre a sua posição, ou reflita sobre a possibilidade de presentificar, de trazer para escritura, de conformar a falta de sentido que a paisagem ilumina. Esse vazio, que abala as leituras anteriormente feitas, esse colocar-se diante da paisagem, sem nela encontrar o seu lugar, é o que impulsiona a escritura, o traçado, o esboço.

Se os ecos dos versos de Dante podem se fazer ler na dificuldade de narrar e se orientar em uma floresta absurdamente horizontal, há que se pensar que, assim como Dante, os viajantes que se embrenharam na floresta trafegavam como estrangeiros. Os viajantes que se embrenharam na Amazônia escolheram estar naquele cenário, mas precisavam de âncoras, molduras, montanhas ou linhas que orientassem o seu vagar. Por outro lado, tal como Dante entra e sai da floresta e do Inferno, Euclides, Michaux, Tastevin e tantos outros entraram nessa selva, e puderam entoar seus cantos com certeza de que existe um inferno, mas dele só participaram como testemunhas, como passageiros; a escritura pôde acontecer aí, no ir e voltar, não no permanecer.

No primeiro capítulo de O que resta de Auschwitz, Giorgio Agamben, pensando sobre os campos de concentração nazistas, tece seu argumento em torno do que torna uma pessoa testemunha. Ele observa que a palavra tem duas etimologias, testis e superstes. A primeira palavra faz referência a alguém que se põe como terceiro em um processo jurídico, quem faz um julgamento. A testemunha não poderia ser um terceiro, não lhe cabe julgar, pois não possui a isenção necessária para tal. A segunda “indica aquele que viveu algo, atravessou até o final um evento e pode, portanto, dar testemunho disso”61. Em grego, a

61 AGAMBEN, O que resta de Auschwitz, tradução de Selvino José Assmann, 2008, p. 27.

testemunha seria o martis, “mártir”, “testemunha”, palavra derivada do verbo martireo, significando “testificar”, “assegurar”.

Na composição de Agamben, montada com base nos livros de Primo Levi sobre os campos de concentração, a testemunha não pode ser quem morre, mas alguém que esteve perto da morte e que, por algum motivo, sobreviveu e teve condições de contar; os que foram ao inferno e voltaram, essas são as testemunhas. Elas testemunham por todos, mesmo por aqueles que pereceram, mas seu depoimento só pode ser, em essência, incompleto, pois atravessaram o evento até o seu final, mas não completamente. Testemunhar é estar, então, dentro e fora, no trânsito.

Poderíamos forçar a diferenciação entre o paisano e a testemunha. No caso dos viajantes aqui em questão, o paisano não poderia ser a testemunha, estaria mais na ordem da prova, do que foi visto. Quem testemunha é aquele que tenta trazer de volta o que foi experimentado na viagem, e esse presentificar de novo, ou tentar presentificar de novo, é o que produz a diferença, é o que conforma uma relação com a distância − é preciso lembrar de Nancy aqui, pois a paisagem interpela o viajante como uma impossibilidade de definir limites, de se orientar. Pode-se montar um quadro, definir uma escala, determinar um ponto de vista. Mas o momento de estar diante da paisagem traz à tona, invariavelmente, a dificuldade de se reconhecer dentro dela, e os viajantes tergiversam falando sobre a dificuldade de orientação.

Euclides da Cunha não poderia ser um testis. Envolvido em uma contenda entre o Brasil e o Peru, sua função era fornecer material para que se definisse a fronteira. Ele seria um superstes, viveu um evento, esteve na fronteira, viu quem lá morava e deu seu testemunho. Tastevin também é superstes, pois testemunha, encontra e dá notícia de quem estava nos confins da floresta. Ao mesmo tempo, como um padre, se comportava como um terceiro (testis) que amenizava conflitos e pacificava contendas oriundas da colonização.

Aquele que testemunha se transforma. Quem viu não é mais aquele que atesta, pois contar a experiência implica em diferença; deve-se reelaborar o vivido, rememorar, construir de novo, criar. E nessa criação, que aqui se dá através da desterritorialização promovida pela paisagem e da escritura, torna-se outro:

Devir é se desterritorializar em relação ao modelo. E quando Deleuze diz que numa linha de fuga há sempre traição, isso significa trair as potências

fixas, as significações dominantes, a ordem estabelecida − o que exige ser criador.

Quando se pensa a questão da literatura relacionando-a com o tema do devir, isto significa que escrever é um processo, uma linha de fuga: tornar-se diferente do que se é, como também pensava Foucault. E quanto Deleuze levanta a questão “O que se torna quem escreve?”, sua resposta é que, se escrever é tornar-se, trata-se de tornar-se outra coisa que não escritor, tornar-se estrangeiro em relação a si mesmo e à sua própria língua (MACHADO, Deleuze, a arte e a filosofia, 2009, p. 214-5).

Paisagem, pagãos e paisanos não se conformavam à ordem religiosa de Tastevin e ele constata apenas ruínas na superfície − vai tentar territorializar a paisagem, mas a desordem sempre emerge, traindo o seu processo de mapeamento e classificação. Euclides quer descortinar os mistérios da Amazônia, mas o mistério promete estar sempre mais adiante, em um ponto em que ele não atingiu; é uma profundidade sempre traída pela própria superfície. Roberto Machado, através de Deleuze, afirma que escrever é tornar-se, é um processo em que se torna estrangeiro, é uma linha de fuga. E Deleuze, através de Foucault, propõe:

É a partir das “lutas” de cada época, do estilo das lutas, que se pode compreender a sucessão de diagramas ou seu re-encadeamento por sobre as descontinuidades. Pois cada um deles mostra como se curva a linha do lado de fora de que falava Melville, sem começo nem fim, linha oceânica que passa por todos os pontos de resistência e que faz rodar, entrechoca os diagramas, sempre em função do mais recente. (...) Daí a tripla definição de escrever: escrever é lutar, resistir; escrever é vir-a-ser; escrever é cartografar, “eu sou um cartógrafo...” (DELEUZE, Foucault, tradução de Claudia Sant’Anna Martins, 2013, p. 53).

Escrever, então, é um processo de luta, que coloca em confronto as pré-concepções e o que se testemunha. A escritura dos autores aqui em questão se monta em torno de uma experiência com um meio que

lhes é exótico, a linha do lado de fora, a superfície sem fim da floresta. O testemunho se constrói a partir de uma experiência que, em si, é única. Se a paisagem promove uma diminuição do sujeito que a observa, suas concepções também serão redimensionadas. Michaux comenta sobre o assunto quando esteve a vagar pelo Oriente:

Chego à Índia, abro os olhos e escrevo um livro. Os que se assombram me assombram. Como não escrever sobre um país que se apresenta com a abundância do novo e a alegria do reviver? E como escrever sobre um país onde se viveu por 30 anos, ligado ao tédio, à contradição, aos cuidados pequenos, às contrariedades, à rotina pessoal, e do qual já não sabemos nada? Fui exato agora em minhas descrições? (...)

O conhecimento não aumenta com o tempo. Faz- se omisso às diferenças. A pessoa se acomoda, se entende. Já não se observa. Esta lei fatal faz com que os antigos residentes na Ásia, e as pessoas mais misturadas aos asiáticos, não sejam mais aptas a ter uma visão precisa e que um transeunte de olhos ingênuos possa, por vezes, colocar o dedo na ferida (MICHAUX, Un Barbaro en Asia, 1986, p. 45 − tradução nossa62).

Viajar pelo Oriente, no ano de 1931, promoveu em Michaux uma fluência escrita que ele alega não possuir com relação ao seu país. Seguindo sua argumentação, o conhecimento não aumenta com o tempo63, uma vez que a vida cotidiana faz com que a faculdade de

62 Na versão em espanhol: "Llego a la India, abro los ojos, y escribo un libro. Los que se asombran me asombran. ¿Cómo no escribir sobre un país que se presenta con la abundancia de lo nuevo y en la alegría de revivir? ¿¡Y cómo escribir sobre un país donde se ha vivido 30 años, ligado al aburrimiento, a la contradicción, a los cuidados estrechos, a los reveses, a la rutina personal, y del que ya no sabemos nada? Ahora ¿he sido exacto en mis descripciones? (...) El conocimiento no progresa con el tiempo. Se hace caso omiso de las diferencias. Uno se acomoda, se entiende. Ya no se observa. Esta ley fatal hace que los antiguos residentes en Asia, y las personas más mezcladas a los asiáticos, no sean las más aptas para tener una visión precisa y que un transeúnte de ojos ingenuos pueda, a veces, poner el dedo en la llaga" (MICHAUX, Un Barbaro en Asia, 1986, tradução de Jorge Luis Borges, p. 45).

63 Se o conhecimento não aumenta com o tempo, isso reforça ainda mais a ideia do gesto impetuoso da produção escrita. Uma escrita não poderia melhorar,

observação dos paisanos e dos estrangeiros decline progressivamente, impede o olhar de permanecer livre. Por outro lado, aqueles que viajam podem se colocar diante do inédito, podem fazer voltar a experiência com todas as diferenças que isso implica. A percepção do exotismo dispara uma disponibilidade para o olhar, para o ouvir, para o tocar... estimula uma percepção da superfície, das sensações. Michaux vai associar diretamente esse tipo de percepção espontânea e sem esforço − uma percepção estética, no sentido etimológico da palavra − à produção escrita. O contato inspira e promove a aisthesis ou a própria literatura.

A percepção estética, potencializada pelo contato com a paisagem e com o pago de outros, posteriormente, se conforma como trabalho, como arte, como poiseis. Poderia também se conformar como episteme, como pensamento lógico e científico. Na ficção impulsionada pela

aisthesis, como parece ser o caso das escritas motivadas pela viagem,

cabe salientar que a percepção estética não seria somente um impulso inicial, mas um impulso que atravessa a escrita.

Nos artigos que Euclides publicara antes e depois da viagem ao norte, algumas diferenças são marcantes, como, por exemplo, entre “Contra os Caucheiros” (publicado primeiramente em O Estado de São

Paulo, em 1904, depois reunido em Contrastes e Confrontos, de 1907) e

“Os caucheros” (publicado em À Margem da História, em 1909). Enquanto em “Contra os Caucheiros” o autor alerta para o perigo de uma iminente guerra entre Brasil e Peru, profetizando que o domador do caucheiro será o jagunço, em “Os Caucheros” (notemos que, além do uso da palavra em castelhano, a palavra “contra” é suprimida) encontramos uma elaboração mais refinada, recheada de uma série de episódios presenciados pelo autor: um corpo mutilado e desnudo, abandonado em uma margem do rio; as incursões trivialíssimas que dizimavam completamente grupos populacionais são exemplos de descrições que só surgiram depois da viagem. Mesmo que os brasileiros não recebessem uma carga direta de responsabilidade sobre o que ali ocorria, o descaso e o abandono do governo em relação a tais poderia apenas se compor de forma diferente cada vez que é retomada. Talvez por isso, Michaux não mude o seu relato ao revisitá-lo em 1945 e 1967, porque entende que a transformação do que foi dito significaria a composição de um novo relato e não um aprimoramento de um gesto que já estava completo. Sobre isso, o próprio Michaux comenta em seu prólogo de 1967: “Lo más que puedo es apartar, sacar, cortar, hacer algunas sisas, echar algo en un vacío de repente molesto, pero me está vedado cambiarlo o darle un nuevo viraje” (MICHAUX, Un Barbaro en Asia, 1986, tradução de Jorge Luis Borges, p. 3).

localidades promoveria a impunidade; os caucheiros passam a condensar a capacidade de deslocamento na floresta, dando o impulso inicial tanto para o desbravamento, para a barbárie, como para a civilização e para a ruína − falaremos mais sobre isso no capítulo “A ficção do pago”.

Em Tastevin, podemos perceber um progressivo refinamento de suas impressões a partir dos artigos publicados depois da Primeira Guerra. Antes, seus artigos vinham ordenados pelo itinerário das viagens, e quase não há descrições da fauna e da flora; os rios recebem pouca atenção, a não ser quando é necessário que se relate algum impedimento de navegação. As curvas dos rios são contadas com pressa e as cabanas e postos habitados são descritos à medida que podem ser um pouso por uma noite ou uma referência para mais avançar. Depois da guerra, seus artigos começam a apresentar divisões temáticas − “fauna e flora”, “seringueiros”, “índios”, “navegabilidade” −, numa tentativa de sair do simples “relato de viagem” para a produção de artigos sobre as regiões visitadas; uma forma mais ordenada, almejando um rigor científico, cujas informações estivessem dispostas de maneira que pudessem ser utilizadas pela comunidade científica.

Os dois autores, então, como testemunhas, se encontram em um lugar estranho: a superfície líquida, barrenta e lisa, sobre a qual escrevem. Não podemos perder de vista, no entanto, que o próprio testemunhar implica em uma desterritorialização, sobre a qual se pode falar apenas do lado de fora, no limiar da superfície. A lacuna, o indizível, a incongruência, e a impossibilidade de testemunhar traem, constantemente, seus próprios testemunhos.

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