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A liberdade ontológica sartreana se apoia na consciência do homem.

Entretanto para que isto fique nítido é preciso assimilar o que Sartre entende por consciência e, de forma mais precisa, o que ele entende por consciência de si, pois o reconhecimento da liberdade como condição do existente se dá no momento mesmo em que a realidade humana toma consciência de si enquanto existente.

A consciência, em Sartre, começa a ser exposta em detalhes na introdução d’O Ser e o Nada, onde o autor tenta trilhar um caminho em busca do fenômeno descrevendo-o. Contudo sua defesa de uma consciência de ser consciente – consciência vazia de um Eu pré-formatado contra o que defendiam os neokantianos – já está presente desde seu primeiro texto

propriamente filosófico, A transcendência do Ego, de 1934. Sobre esta questão é preciso destacar duas grandes referências no que diz respeito ao conceito sartreano de consciência, a saber: René Descartes e Edmond Husserl.

Descartes e seu cogito27 foi tomado enquanto primeiro passo em um caminho em busca de um conhecimento indubitável; a primeira certeza verdadeira de uma subjetividade28. Também em Sartre, não pode haver outra verdade, no ponto de partida, senão esta: penso, logo existo. É aí que se atinge a verdade absoluta da consciência29. Entretanto, para Sartre, esta descoberta não instaura apenas o sujeito individual, instaura também – ao mesmo tempo e com a mesma certeza – o outro. Será trabalhada aqui esta questão. Por enquanto cabe frisar esta influência forte do cogito cartesiano no pensamento sartreano para entender a consciência.

A outra forte influência que o filósofo da liberdade sofreu na sua concepção de consciência foi a de Husserl que, pelo método fenomenológico, ofereceu a Sartre “os instrumentos para criticar o academicismo francês e renovar a concepção da relação consciência-mundo”30 de modo que a fenomenologia conserva consigo o distanciamento existente entre consciência e seu objeto que em Husserl ocorre, de certo modo, por sua epoché – pondo entre parêntese a existência para buscar a essência (portanto a verdade pura)

27 O método cartesiano da dúvida metódica o leva a várias suspensões e questionamentos hiperbólicos da realidade até deparar-se com esta primeira verdade clara e distinta ao seu espírito: “adverti que, enquanto eu queria assim pensar que tudo era falso, cumpria necessariamente que eu, que pensava, fosse alguma coisa. E, notando que esta verdade: ‘eu penso, logo existo’ era tão firme e tão certa que todas as mais extravagantes suposições dos céticos não seriam capazes de a abalar, julguei que podia aceitá-la, sem escrúpulo, como o primeiro princípio da Filosofia que procurava.” (DESCARTES, 1983, p.46)

28 Parte-se aqui de uma perspectiva metódica no campo da filosofia para afirmar com Sartre que Descartes foi o primeiro pensador europeu moderno a instaurar o sujeito como ponto de partida filosófico. Entretanto, não é negligenciado ao espírito desta discussão a influência de outros autores que já vinham trabalhando a importância da subjetividade na discussão filosófica. De uma maneira menos sistemática, mas voltada para uma investigação mais contingente e sem pretensões universais temos no nascer da modernidade os ensaio de Michel de Mongtaine, onde a narrativa sobre o mundo e o conhecimento de si, das relações e das coisas se dá em primeira pessoa. Por outro lado, não menos importante, porém menos reconhecido na história da filosofia, o medieval da patrística, Agostinho de Hipona (antiga cidade argelina) foi um filósofo dedicado a uma investigação sobre a participação ativa do homem para com o conhecimento, o que bem pode-se ver em sua obra Solilóquios, bem como para os desdobramentos desta ação subjetiva no campo moral, tal como observa-se em sua obra sobre o livre-arbítrio.

29 SARTRE, 1973, p. 21. Em O Ser e o Nada, Sartre associa o cogito cartesiano ao momento posterior do que ele chama de “cogito pré-reflexivo”.

30 CASTRO, Fabio Caprio Leite de. A ética de Sartre, 2016, p. 34.

das coisas. Contudo o existencialismo não mergulha na busca interior por uma essência. Seu alvo é fora, é a existência:

A questão mais importante é de como vamos examinar o ser humano. Husserl vai no interior, aos atos, às vivências para conhecer o sujeito que apreende o fenômeno, para poder conhecer as características do que está fora (não factualmente), mas conforme foi apreendido pelo sujeito, faz uma análise do ponto de vista do espírito. Os existencialistas, interessados nessa existência do ser humano, permanecem fora. (ALES BELLO, 2006, p.95)

Entretanto, a intencionalidade da consciência, em termos husserlianos, onde “toda consciência é consciência de alguma coisa”31 é elemento decisivamente forte na consciência sartreana, pois como diz o próprio, “Husserl define a consciência como transcendência. De fato: é sua tese, sua descoberta essencial.”32. Para Sartre, assumir que consciência é

“consciência de” significa que esta transcendência33, esta intencionalidade para algo fora de si é a estrutura constitutiva da consciência. Portanto, a evidência ontológica da existência da consciência é que ela nasce tendo por objeto um ser que ela não é, um ser sempre fora de si.

Desta forma, a consciência é “um ser cuja existência coloca a essência, e, inversamente, é consciência de um ser cuja essência implica a existência, ou seja, cuja aparência exige ser”34, de modo que o ser fora da consciência, o ser transfenomenal, é tomado como o que existe independente da consciência, pois é em si mesmo, ser-Em-si. É maciço e plena positividade desconhecendo, assim, a alteridade. Ao ser-Em-si escapa até a temporalidade.

Mas é oportuno deixar de lado o aprofundamento do Em-si, pois aqui, tal como no próprio Sartre, o interesse maior é no homem, e não nas coisas.

31 CASTRO, 2016, p.35.

32 SARTRE, 2014, p. 34.

33 Cabe alertar que transcendência aqui não traz o sentido da tradição e que é homologado em Kant como diferente da noção de transcendental. Pois como nos lembra Luciano Donizetti, em seu artigo intitulado “A epistemologia na filosofia de Sartre”, publicado na revista Cadernos Sartre, em 2012, “antes de ser algo que exceda a experiência possível (Kant), a transcendência é entendida [por Sartre] como relação com as coisas mesmas, enquanto a imanência se resume à percepção que a consciência tem de si mesma (conforme Husserl); nesse jogo intencional que é a consciência fica claro que conhecer é um ato transcendente, o que leva a filosofia de Sartre para o centro da questão epistemológica.” (SILVA, 2012, p. 73-74).

34 SARTRE, 2014, p. 35.

Antes de focar na intencionalidade da consciência, é preciso tomar nota do que Sartre nomeia, já em A transcendência do ego, de consciência irrefletida. Seria ela uma instância da consciência não intencional? Não é o que parece. Nesta primeira reflexão filosófica sobre o Eu, o filósofo da existência apresenta a instância do Ego como sendo de natureza fugidia e toda tentativa de capturá-lo de frente derruba a consciência em um plano irrefletido. Quando o Eu aparece irrefletidamente é porque sua aparição não se deu num reconhecimento de si mesmo, mas sim numa espécie de observação de si por uma ótica exterior a si. É o não reconhecimento imediato de si enquanto consciente de si e de sua relação com o mundo. É o que Sartre nomeia como Eu-conceito, ou seja, uma percepção imediata do eu que não se vê incluída nele, pois tal aparição do eu nada mais é que uma aparição complementar do mundo enquanto Em-si.

Exemplos pertinentes para esta pesquisa da consciência irrefletida é a de um funcionário de uma grande empresa responder sobre o que faz dizendo “estou fazendo o almoço de amanhã [pois a empresa não oferece alimentação durante o expediente]”, ou, quando perguntado pela identidade racial em um formulário, um brasileiro de periferia responder “marquei que sou

‘branco’ [porque não tenho pele muito escura]”. Já na década de 1930, Sartre entendia esse tipo de abordagem sobre si mesmo como um conceito vazio, pois tornava o Ego expressão vazia de si e idêntica ao mundo.

O problema maior é que ao cair no irrefletido, ou seja, ao praticar uma percepção de si enquanto Eu-conceito, o Ego não apenas se esvazia, mas também se degrada. Perde toda sua intimidade. Entretanto, nem por isso a consciência irrefletida deixa de ser intencional: ela apenas não se percebe como tal, nem como agente da intencionalidade posta (como a de marcar o formulário). Deste modo, ela continua a existir por alguma intenção que, nos exemplos dados, seriam respectivamente suprir a necessidade fisiológica de alimentar o corpo e concluir o preenchimento de um formulário.

N’O Ser e o Nada a consciência irrefletida aparece acompanhada da consciência pré-reflexiva, que já não é mais um movimento exclusivamente para fora, mas um primeiro movimento imediato da consciência em direção a si

mesma que resulta em uma percepção imediata do objeto, quando a consciência volta-se para si mesmo enquanto consciência de ser consciente.

Sartre entende que enquanto pré-reflexiva, a consciência é uma “consciência não posicional de si” ou, graficamente falando, consciência (de) si, que se apresenta em três dimensões: intenção, prazer e dor35.

Esta consciência imediata (de) si enquanto consciente é a instância pré-reflexiva36 da consciência. Para que a consciência saia da imediaticidade pré-reflexiva sobre si mesmo rumo ao cogito reflexivo da consciência, ou seja, como consciência posicional de si (para além da instantaneidade não posicional expressa pelo uso dos parênteses), é preciso explicar o Para-si da consciência. Mas para entender o Para-si é preciso passar pela negação própria ao nada da consciência de existir.