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2. PREFÁCIO DE OS CONDENADOS DA TERRA

2.3 Para quem o prefácio?

2.3.1 O oprimido e a negação

Sartre sabe que em nada precisa prefaciar Os condenados da terra para os oprimidos aos quais ele se destina, ou seja, aos colonizados. A estes, Fanon foi muito cirúrgico e compreensível. É preciso, então mostrar aos europeus o que Fanon diz aos seus irmãos para, desta mensagem, propor a cura desta doença europeia chamada opressão121. Para tanto, é crucial que o europeu aprenda a ver o oprimido com outros olhos que não os que o põe

121 “Este médico [Fanon] não pretende nem condená-la sem apelação – há tais milagres – nem lhe fornecer os meios de cura; constata que ela [a Europa] agoniza.” (FANON, 1979, p. 5)

como inferior que concorda ou resigna-se com sua situação de oprimido. É preciso perceber que o colonizado agora levanta-se por meio da negação radical de sua situação de oprimido e do contexto da opressão.

O colonizado, enquanto tal, já surge no paradigma da negação: ele não é homem, não é civilizado, não tem alma, portanto, não deve ser livre. O indígena, portanto, aparece ao primeiro olhar do colonizador como um não-homem: ele é tomado pela metrópole como um Em-si, um objeto no mundo que pode ser manipulado: o indígena deve ser instrumento da colônia, seja para a agricultura, para a pecuária, para o garimpo ou mesmo para o trabalho doméstico, esta nova propriedade do senhor nunca foi e nunca será humanamente igual a ele, segundo o escravagista e o colonizador.

Ao não-homem deve sempre ser negado a cultura, a língua, o direito, a moral e tudo o mais que é próprio à criação humana em “sociedade civilizada”. Quando muito em exceção, a elite europeia tentava engendrar um indigenato de elite: selecionava os mais jovens, “gravava-lhes na testa, com ferro em brasa, os princípios da cultura ocidental, metia-lhes na boca mordaças sonoras, expressões bombásticas e pastosas que grudavam nos dentes;

depois de breve estada na metrópole, recambiava-os adulterados”. 122 Entretanto, esta imersão forçada na cultura do colonizador não intencionava sequer incluir tal grupo seleto na civilização europeia outorgando-lhes a condição de homem europeu. É, no mínimo, ilustrativo disto a lembrança que Albert Memmi escreve no prefácio de 1966 a seu Retrato do colonizado, antes prefaciado por Sartre. O tunisiano, ainda descobrindo quais os poucos aspectos de sua personalidade e de sua relação com os outros não tinham sido afetados pela colonização, diz:

Jovem estudante chegando à Sorbonne pela primeira vez fui inquietado por rumores: “Tinha eu o direito, como tunisiano, de me preparar para o concurso de professor universitário de filosofia?” Fui ver o presidente da banca: “Não é um direito”, explicou-me... “é um voto.” Ele hesitou, como um jurista que procurava a as palavras exatas: “Digamos que é um voto colonial.” (MEMMI, 2007, p. 12)

Memmi disse não compreender até então o que de fato isto significava. E é realmente difícil dizer o que este “voto” possa significar.

122 FANON, 1979, p.3

Entretanto é muito fácil compreender o que quer dizer a frase “Não é um direito”. Ela chega inclusive a dar luz na compreensão desse “voto colonial”. O que está posto é exatamente a negação de um direito. Contudo, na verdade, esta situação parece expressar bem a realidade de todo opressor diante o oprimido. Tudo que socialmente é reconhecido como um direito aos homens daquela civilização, aos colonizados não passa de um voto: há uma prerrogativa de que o opressor disponibilizará desconfiadamente a oportunidade do colonizado provar que merece algum mínimo reconhecimento por sua dignidade e competência. Trata-se de uma aposta na ideia burguesa/liberal/colonial de uma possível meritocracia futura. Trata-se de um exercício de inclusão social123. Todavia, esta dignidade humana e competência profissional esperadas do colonizado não estão dadas a priori, como é dado a um metropolitano através do direito. É um voto de (des)confiança, é um exercício de solidariedade do colonialista.

Porém, bastou a mínima abertura de (des)confiança do metropolitano para com o indígena para que este percebesse e denunciasse a opressão imposta por aquele. Não tendo mais sua língua, sua cultura, suas referências originárias, esses “indígenas adulterados”, aos quais Sartre faz menção, abrem a boca não para repetir acriticamente o que aprendeu na metrópole. Essas bocas agora se abrem sozinhas: essas vozes amarelas da Ásia, negras da África e nativas/originárias/diaspóricas da América Latina passaram a falar do humanismo europeu, mas para censurar a desumanidade praticada pelos europeus contra os colonizados.

Esta primeira geração de colonizados adulterados realizou o primeiro movimento do que, sob a influência de Orfeu Negro discutindo a violência da linguagem, se pode chamar de violência simbólica124: usando os signos associados ao humanismo europeu, essa geração radicalizou seus sentidos construindo narrativas de denúncias das atrocidades cometidas por aqueles que diziam defender um humanismo puramente abstrato e universal. O

123 Entenda-se aqui inclusão em seu sentido normativo: a inclusão enquanto movimento unilateral e hierárquico de uma instituição de poder possibilitando acesso limitado a um determinado grupo social ou indivíduo, esperando com isso certas respostas positivadas pelas normas sociais. Inclusão não é o mesmo que acesso. Esta discussão é melhor desenvolvida em outro texto nosso, publicado na coleção Decolonialidade a partir do Brasil, volume III.

124 “visto que o opressor está presente até na língua que eles falam, falarão esta língua para destruí-la [...]; o Heraldo negro, por sua vez, irá ‘desfrancesá-las’; empenhar-se-á em triturá-las, em romper-lhes a associação habitual, em as acasalar pela violência.” (SARTRE, 1968, p. 101)

jogo sobre a Verdade se inverteu: enquanto os europeus queriam vestir a verdade que aparecia nua aos indígenas, os indígenas se apropriaram do elemento cultural da colonização para, com ele, desnudar os trajes que vestiam esse falso humanismo e denunciaram, assim, suas contradições: mostraram as carnes pálidas e anêmicas e as mãos europeias sujas de sangue colonizado.

Através da cultura europeia esses colonizados passam a negar a Europa.

Porém, os europeus não conseguiam ver e ouvir senão o próprio orgulho ilusório de ter alcançado a missão que eles haviam criado para si: helenizar os asiáticos e criar uma espécie nova chamada por Sartre “negros greco-latinos”.

Uma segunda geração de indígenas adulterados redimensionou o problema para um tratamento mais profundo e até didático de suas denúncias:

escritores e poetas dotados de uma incrível paciência se dedicaram a explicar para os europeus que os valores da metrópole não se ajustavam bem à verdade de sua vivência colonial. Eles negavam a possibilidade tanto de rejeitar como de assimilar completamente as diretrizes europeias. Ao se olharem colonizados, viam-se monstros criados pelo Europeu, e diziam a este:

“vosso humanismo nos supõe universais e vossas práticas racistas nos particularizam”125. Porém, os europeus não interpretavam desta reclamação didática outra coisa que não uma suposta reivindicação de integração que obviamente não deveria ser realizada, posto que isso arruinaria o sistema colonial que repousa na superexploração de sub-homens; bastava cogitar a possibilidade dessa igualdade para não frustrar a nostalgia indígena por inteiro.

Quanto à possibilidade de revolta, mesmo com todas as negações e reclamações os colonizados não ousariam se revoltar contra aqueles dos quais eles mais desejam fazer parte: os europeus. Assim pensava a Europa sobre esta geração de monstros da negação.

Eis que uma terceira geração se anuncia, e não se faz almejando os europeus como interlocutores. Enquanto a primeira geração experimenta a negação violentando o sentido europeu das palavras para, pelo próprio sentido europeu, denunciar o humanismo desumano dos europeus; enquanto a segunda geração percebe as contradições internas do sistema colonial e tenta mostrar pacientemente que é consequência dessas contradições negar qualquer assimilação ou rejeição completa da civilização europeia; a terceira

125 FANON, 1979, p. 4.

geração, por sua vez, orienta para que se deixe de lado esta Europa doente que em sua “aventura espiritual” (FANON, 1979, p.271) de levar a verdade (europeia) aos índios está asfixiando quase toda a humanidade.

Fanon é um exemplar desta geração de ex-indígenas que se apossou da língua francesa e agora a sujeita a exigências novas, servindo-se dela para se dirigir apenas aos colonizados. A primeira negação que esta geração de oprimidos coloca é a de negar a Europa até como possíveis receptores da sua mensagem de união entre os países do Terceiro Mundo.

Sartre diz ao Europeu que esta atitude político-literária de dirigir-se exclusivamente aos colonizados do sul global em total indiferença com os europeus é um rebaixamento da Europa, posto que para os pais, ou seja: a segunda geração, os europeus eram os únicos interlocutores; já os filhos

nem nos consideram mais como interlocutores admissíveis:

somos objetos do discurso. Evidentemente Fanon menciona de passagem nossos crimes famosos, Sétif, Hanoi, Madagascar, mas não perde seu tempo em condená-los; utiliza-os. Se desmonta as táticas do colonialismo, o complexo jogo das relações que unem e opõem os colonos aos “metropolitanos”, faz isso para seus irmãos; seu objetivo é ensiná-los a desmantelar-nos. (FANON, 1979, p.6)

A geração de Fanon não está preocupada com os Europeus. Para ele pouco importa se sobreviverão ou não à doença que eles mesmo criaram.

Assim como seus pais, os filhos estão querendo ensinar algo a alguém. Mas desta vez, em vez de sujeito da aprendizagem, os europeus tornaram-se objetos de estudo. E se Fanon faz o esforço de desmontar o maquinário opressor é para mostrar aos irmãos colonizados como fazer para desmoronar a opressão através dos agentes opressores.