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2. PREFÁCIO DE OS CONDENADOS DA TERRA

2.3 Para quem o prefácio?

2.3.2 O opressor e a consciência de si

Aos infortúnios das duas primeiras gerações a Europa não deu ouvido. Contudo, Sartre escreve o prefácio para alertar seu continente a não negligenciar também as manifestações desta terceira, pois desta vez o infortúnio está na situação dos europeus enquanto que é pela nova geração que os falsos indígenas começam a reivindicar concretamente e organizadamente sua condição de humanos livres. Fica nítido com esta

geração que eles já passaram pela fase do auto-reconhecimento: já se sabem oprimidos e já tem consciência de si como agentes transformadores da própria realidade que, como não é isolada, também não podem ser transformados isoladamente. Sartre então, pelo prefácio, faz o europeu buscar consciência de si como opressor para só assim poder superar, também coletivamente, tal situação rumo a uma extinção da opressão.

É por não ter consciência de si enquanto opressor que os europeus respondem à primeira geração com o orgulho de quem cumpriu a missão civilizatória de manipular o indígena para torná-lo capaz de interagir, mesmo que de forma limitada, com o Primeiro Mundo. Na melhor das hipóteses, o que se pode dizer é que a consciência que o europeu tem de sua ação opressora, é uma consciência irrefletida, onde o Eu-conceito se toma como a própria civilização em curso. Assim, o europeu não se vê como opressor e sim como um mero meio que justifica o fim que é o progresso. Ele faz o que faz para o Bem civilizatório do indígena. Neste primeiro momento, a consciência do colonizador não volta exatamente para si, pois está observando o indígena como um “outro” absolutamente estranho a ela mesma.

Há uma consciência posicional de si que o europeu experimenta no momento mesmo em que se orgulha de helenizar os asiáticos e criar os negros greco-latinos. Porém, esta consciência não é de si enquanto opressor e sim de si enquanto representante da Europa redentora dos selvagens. O que há, na verdade, é a má-fé de acreditar-se este redentor, um Auto da fé126, um Em-si messiânico que se vê exterior a sua real situação de opressor.

Na segunda geração, o opressor já tem certa consciência imediata de si enquanto partícipe de uma opressão existente. Todavia, esta consciência não posicional (de) si ainda não se mostra reflexivamente como opressora. Ela é a consciência pré-reflexiva, aquela que faz o europeu compreender que não pode oferecer ao indígena a condição de homem europeu sob pena de perder seu lugar de privilégio forjado na superexploração colonial. Estão imediatamente conscientes que criaram um monstro, estão conscientes de que

126 “No Auto da fé, eu encontro paralelamente o recurso confiante na ordem absoluta e transcendente. Nós temos, primeiramente, a Causa: quer dizer, a Glória de Deus. E o primeiro ponto é que ela é tal (positividade absoluta e transcendente) que nenhum meio pode alterá-la.

Aqui, a justificação dos meios pelo fim não é mesmo lógica, dialética ou automática: trata-se de uma intenção que remonta do fim aos meios. Deus abençoa o cristão militante, ele santifica os meios que emprega.” (SARTRE, 1983, p.191)

este monstro deseja alcançá-los, mas não percebem que o monstro cresce e que não há como destruir o monstro sem reconhecer que tal destruição requer a destruição de si mesmo enquanto opressores e privilegiados. Não percebem que para fazer afirmar o homem autêntico é preciso destruir criador e criatura.

É na terceira geração de (ex-)indígenas que o Europeu tem uma oportunidade, através do prefácio alertador de Sartre ao livro de Fanon, de perceber que aquele indígena que o colonizador garantia existir nunca passou de uma ilusão que o metropolitano criou para si mesmo para, com ela, sustentar sua boa consciência conferida pela opressão institucionalizada. É, portanto, nesta terceira oportunidade de contato com as manifestações dos colonizados que o colonizador pode chegar à consciência reflexiva de si enquanto opressor. É só pela consciência posicional de si enquanto opressor que o Europeu poderá voltar-se para sua realidade doente e, contra ela, abrir mão de seus privilégios doentios127.

A violência original exercida pelos europeus agora se volta dialeticamente contra a opressão e seus agentes. Ela é, para Sartre, a “lança de Aquiles” capaz de cicatrizar os ferimentos que ela mesma abriu (FANON, 1979, p.20). Esta violência original é aquela mesma utilizada no início do processo de dominação para instaurar a opressão; é a violência primeira perpetrada contra o povo colonizado capaz de fragilizá-los a ponto de tornar possível a opressão colonial; é o primeiro momento da violência, onde o fim almejado é o reinado da metrópole opressora sobre a colônia oprimida.

127 Mantém-se aqui as terminologias de cunho clínico, médico, no compromisso de manter viva a comparação feita por Sartre sobre a presença da opressão na sociedade colonial e capitalista. Aqui mantém-se esta terminologia, pois além de seu caráter comparativo, parece que Sartre as usam para aproximar sua reflexão da prática profissional do autor ao qual ele de dispôs a prefaciar: Frantz Fanon, médico psiquiatra. O propósito aqui é que esses termos colaborem para explicar a problemática em questão, contudo, sabe-se das limitações que tal comparação com termos da medicina levam a assimilações perigosas de compreensão dessa discussão política, como a de entendê-la sob o ponto de vista orgânico-corporal. A respeito do uso problemático de expressões biológicas, R. D. Laing e D. G. Cooper, autores do livro Razão e Violência: uma década da filosofia de Sartre (1950-1960), referindo-se a discussão psicanalítica em Sartre, dizem o seguinte: “O projeto original, sempre uma relação do self com o ser, não pode ser expresso em metáfora fisicalista e analogia biológica sem fatal confusão e ambiguidade. Infelizmente até os melhores estudos psicanalíticos são escritos nesses termos, ou acabam neles recaindo. Na verdade, com frequência é difícil saber quando um escritor psicanalítico pretende usar de metáforas, analogias, ou está tentando uma explicação. O último caso parece ser frequente e o trabalho acaba ridicularizado por pseudo-irredutíveis fetichizados.” (1982, p. 20)