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A existência do Outro se põe como tão fundamental quanto a do Eu, ou seja, tão fundamental quanto a existência do Para-si. Sartre começa a desenvolver o problema do ser-Para-outro a partir da vergonha enquanto um modo de consciência não posicional (de) si.

A vergonha é apresentada por Sartre como não sendo originalmente um fenômeno reflexivo. Ela é, por natureza, reconhecimento não tético de si:

eu me reconheço imediatamente como o Outro me vê. Assim, “a vergonha é vergonha de si diante do Outro; essas duas estruturas são inseparáveis” 67. O Outro inicialmente aparece ao Para-si como objeto de sua consciência. Porém o olhar do Outro faz com que o inicialmente sujeito perceba esta objetividade como um Para-si diferente dele, de consciência tão intencional quanto a dele e, portanto, instauradora de um mundo Para-si, no qual o então sujeito passa a fazer parte como objeto.

O outro é, antes de tudo, a fuga permanente das coisas rumo a um termo que o Para-si capta ao mesmo tempo como objeto a certa distância dele e que o escapa na medida em que estende em volta do outro as próprias distâncias deste estranho68. Assim, o Outro-objeto, ao ser um olhar distante e impenetrável, torna-se Outro-sujeito instaurando a possibilidade real do ser-Para-si tornar-se ser-Para-outro através de uma conversão radical e imediata de modo que a forma “ser-visto-pelo-outro” é a verdade do “ver-o-outro”. Há um desdobramento extremamente relevante desta perspectiva na relação mestre-escravo ou, se preferível, oprimido-opressor que Sartre desenvolve, por exemplo, em seu texto Orfeu Negro – onde ele apresenta o homem branco (o colonizador, europeu, opressor, o senhor do negro) como detentor do privilégio

66 SARTRE, 2014, p. 286.

67 SARTRE, 2014, p. 290.

68 SARTRE, 2014, p. 329.

da invisibilidade perante o Outro-negro, pois “o branco desfrutou durante três mil anos o privilégio de ver sem que o vissem; era puro olhar”69. Isto porque o negro era visto pelo branco como Em-si, objeto. Com a presença do negro enquanto Outro-sujeito, o puro olhar torna-se objeto olhado.

Sartre descreve a ocasião de, por algum motivo – ciúmes, curiosidade ou vício, alguém ouvir atrás da porta e olhar pela fechadura. No momento da ação imediata a consciência é não posicional (de) fazê-lo.

Contudo eis que passos se aproximam: alguém observa. Em um só instante este eu que não conhecia o ciúme, pois era o próprio ciúme, transcende radicalmente para fora de si mesmo. É levado do cogito pré-reflexivo ao cogito reflexivo sobre si mesmo e sua atitude.

É possível dizer que tanto a vergonha como o medo, o orgulho, a tristeza ou a alegria são emoções, pois no Esboço para uma teoria das emoções Sartre diz que emoção é uma “transformação do mundo” (2012, p.

62). Quando a vergonha, ou qualquer desses outros modos de ser se instaura é porque houve então a conversão radical do Para-si em Para-outro. O outro que provoca esta conversão já não é mais acessível apenas como olho, mas como olhar, pois como diz Sartre (2014, p. 333) “jamais podemos achar belos ou feios, ou notar a cor de olhos quando estes nos veem. O olhar do outro disfarça seus olhos. Parece adiantar-se a eles”70. É a percepção do outro enquanto corpo que, espelhadamente, põe o Para-si enquanto corpo também.

Tornando consciente o fato de que existem vários Para-si.

É exatamente a relação do Eu com o Outro na história que mobiliza Sartre a tratar declaradamente o problema das disciplinas auxiliares tais como a psicologia, a sociologia e a antropologia, sendo que para esta última é preciso se dar destaque.

69 Orfeu Negro, no livro Reflexões sobre o racismo, publicado pela Difusão Europeia do livro.

(SARTRE, 1968, p. 89)

70 Conceição Evaristo, escritora negra brasileira, em seu conto Olhos d’Água, no livro homônimo, ilustra bem a impossibilidade de ver os olhos que são instrumentos do olhar que atravessa o Para-si transformando-o em ser-Para-outro. Neste caso, transformando a protagonista do conto em “filha de sua mãe”, ao que ela diz: “me descobria cheia de culpa, por não recordar de que cor seriam os seus olhos. Eu achava tudo muito estranho, pois me lembrava nitidamente de vários detalhes do corpo dela. Da unha encravada do dedo mindinho do pé esquerdo... da verruga que se perdia no meio de uma cabeleira crespa e bela... Um dia, brincando de pentear boneca, [...] A mãe e nós rimos e rimos e rimos de nosso engano. A mãe riu tanto, das lágrimas escorrerem. Mas de que cor eram os olhos dela?” (2018, p. 16)

Se o projeto filosófico sartreano tem o homem concreto como seu objeto, é coerente admitir que sua filosofia apresenta-se como uma vasta antropologia filosófica desde seus primeiros escritos até àqueles de maturidade, onde a disciplina antropológica é explicitamente tomada como objeto de estudo. A este respeito, A conferência de Araraquara – de 1960, logo após a publicação da Crítica da razão dialética – traz a questão da antropologia, enquanto a disciplina que fala a respeito do homem como questão central na discussão sobre a realização de uma filosofia marxista e uma antropologia que seja, ao mesmo tempo, estrutural (estudando o que permanece) e histórica (estudando o que modifica).

O fundamento desta antropologia estrutural e histórica não pode ser outro que não o homem. O que é preciso observar é o seguinte: a antropologia toma o homem como objeto de estudo e, por outro lado, reclama em seu fundamento por um homem que seja sujeito da pesquisa. Na antropologia, o homem precisa saber-se, ao mesmo tempo, sujeito e objeto de pesquisa. Em outras palavras, nas ciências humanas, de modo geral faz-se necessária a relação situacional entre questionados e questionadores, sendo que este informante interrogado é

o homem da sociedade considerada que, por deixar escapar segredos ou por responder benevolamente, ou ainda, por ter sido encarregado de fazê-lo, informa, responde às questões de um indivíduo que pergunta. Se consideramos, porém, que o questionador toma o questionado por um objeto total, verificamos imediatamente que a Sociologia e a Etnografia desaparecem. É impossível considerar o homem que estudamos estritamente como objeto, pois o questionador é homem tanto quanto o questionado. (SARTRE, 2005, p.69) O dilema existente entre pesquisador e informante é exatamente aquele existente entre o ser-Para-si e o ser-Para-outro, pois na medida em que o questionado é testemunha de seu povo, sua cultura, sua sociedade e seu espaço, o questionador também o é de sua situação. É na situação do encontro que a compreensão – que não é o mesmo que intelecção – torna-se possível.

A compreensão consiste no fato de que dois seres diferentes, situando-se na sua diferença, chegam a se corresponder de modo prático71. O

71 SARTRE, 2005, p. 79. Sartre usa como exemplo claro de compreensão o cinema mudo, pois ele expressa aquilo que o filósofo entende como praxis, de modo que no cinema mudo

encontro corporal/sensível desses existentes é que possibilita que, pela diferença, um possa se fazer compreensível ao outro através de seus atos.

O corpo é condição fundamental de existência da própria consciência. Para Sartre, todavia, existem três dimensões ontológicas do corpo. A respeito destas três dimensões relativas ao Para-si (que também é a condição ontológica do Outro), Aline Ibaldo Gonçalves diz que

a primeira dimensão do ser do Para-si é existir enquanto corpo. A segunda dimensão é o corpo do Para-si que é conhecido pelo outro.

O outro me revela o objeto que sou para ele. A terceira dimensão ontológica do corpo trata de como existo para mim enquanto corpo que é conhecido pelo outro72.

Entretanto, o reconhecimento destas três dimensões do corpo e a conversão radical do existente se dão em situação. Contudo, o que é a situação?