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Posta a relação fundamental do ser-Para-si com o ser-Para-outro, onde cada um transforma o outro em seu oposto conflituoso-complementar na relação sujeito-objeto, Sartre apresentará este conjunto no mundo, com sua dupla e inversa determinação, denominando-o de situação. No caso visto acima sobre a relação entre para-si e para-outro, ele diz que “não há cena a ser vista atrás da porta se eu não estiver com ciúmes, mas meus ciúmes nada seriam sem o simples fato objetivo de que há uma cena a ser vista atrás da porta” (2014, p. 334). Desta forma, a situação aparece como o instante num determinado tempo e espaço onde o Eu (ou Ego, enquanto consciência que transcende a si), age sobre o meio e localizando-o em relação ao mundo e ao outro; entretanto, também é o momento em que esta subjetividade, concretamente localizada, se encontra na livre possibilidade de ação fomentada pela sua própria consciência (não tética (de) ciúme, como é o caso.

Mas também (de) tristeza, vingança, dentre outros modos de consciência).

compreende-se, pois, “com base nos atos a significação objetiva das coisas”.

72 GONÇALVES, A. I. O problema do outro em Sartre. Santa Maria: Universidade Federal de Santa Maria, 2012, p.47. (Dissertação de mestrado)

Não obstante, a noção de situação se dá pela relação entre a facticidade e a liberdade do homem (ou do Para-si). A situação é a síntese de ambos: ela é o sujeito inteiro (realidade humana) e a coisa inteira (mundo), ao mesmo tempo em mútua intervenção. Isto quer dizer que a liberdade não é absoluta no sentido idealista de puramente abstrata e metafísica sem relação direta com o mundo; todavia, também quer dizer que a facticidade não é um determinismo que condiciona o homem a uma resignação fatídica, pois a situação primeira é do homem jogado no mundo. Mas, estando no mundo, a liberdade é o próprio ser do homem. Deste modo, quando dissemos que

o escravo acorrentado é tão livre quanto seu amo, não queríamos nos referir a uma liberdade que permanece indeterminada. O escravo em seus grilhões é livre para rompê-los; significa que o próprio sentido de suas correntes lhe aparecerá à luz do fim que escolheu: continuar escravo ou arriscar o pior para livrar-se da servidão. (SARTRE, 2014, p.

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Este fim a escolher é, na verdade, o projeto a traçar. Contudo as escolhas em situações nunca são apenas dicotômicas, como geralmente parecem ou, na terminologia sartreana dos Cahiers pour une morale, não são só ambivalentes: elas são ambíguas, de modo que o escravo em sua situação de escravizado – seja pela força, pelo consentimento ou pela lei – é livre para escolher se resigna-se ao serviço, se estingue a própria vida, se prepara a morte de seu senhor, se foge, se fica para criar uma insurgência de revoltas, dentre inúmeras outras possibilidades que a situação abre como possíveis em maior ou menor grau de responsabilidade perante suas realizações efetivas, porém em absoluto grau de responsabilidade pela escolha feita.

Nesta esteira, quando Sartre se põe a escrever sobre a situação dos judeus em seu texto Reflexões sobre a questão judaica, a situação é o elemento que primeiro define o homem, pois para ele dizer que o homem é um ser “em situação” significa que o homem

constitui um todo sintético com sua situação biológica, econômica, política, cultural etc. Não é possível distingui-lo mas, inversamente, é ele que atribui o sentido, escolhendo-se em e por ela. Estar em situação, segundo nós, significa escolher-se em situação e os homens diferem entre si como

diferem suas respectivas situações e também conforme a escolha que efetuam de sua própria pessoa. (SARTRE, 1968, p. 35)

Não é possível distanciar o Para-si de sua situação, entretanto é nesta situação que ele é obrigado a criar-se. Cada homem, portanto, deve fazer-se enquanto tal, mesmo na constante possibilidade de ser objetivado por si mesmo através da má-fé ou pelo Outro (inclusive através da violência e da opressão), seja este Outro um outro Para-si ou uma instituição (prático-inerte) qualquer que transmita ou imponha seus valores. É desta desarmonia que surge o conflito, e ele se acirra pela inacessibilidade ao outro enquanto tal.

Como demonstra Eliana Sales Paiva, as relações humanas são perpassadas por uma perspectiva insuperável do conflito. Contudo, ela também alerta “que o conflito aqui [n’O Ser e o Nada] não aponta para uma proximidade com a violência” (2003, p. 104).

O conflito é uma categoria sartreana que só faz sentido no nível ontológico da discussão. No nível histórico-político é preciso entender que esta relação sujeito-objeto aparece mediada pela violência e pela opressão. Como percebe Aron (1970, p. 117), já que a história vivida dos primórdios do processo civilizatório começa com a revolta e segue-se com a promessa e com o terror. Portanto, a história toda é violenta, no sentido de que ela toda utiliza-se deste instrumento – utiliza-seja para a manutenção do contexto de opressão instalado na sociedade em questão ou como instrumento de transformação social, o que impossibilita que as classes sociais existam senão como inimigas.

Assim, só existe uma ambivalência inicial: aceitar a alienação ou combatê-la das diversas formas possíveis (enquanto existência ambígua que se pretende autêntica).

Desta forma, a história pode ser definida como totalização, ou seja, ação constante de totalizar. Nas palavras de R. D. Laing e D. G. Cooper (1976, p. 72), a história precisa ser sempre reescrita, destotalizada e retotalizada, pois como totalização está sempre desatualizada. Ela não estará jamais completa até o momento em que haja uma parada no tempo. Aqui o único ponto de partida metodológico possível é a praxis do indivíduo, pois a dialética não é o

produto da história, é o movimento original de sua totalização feito pelo indivíduo com base na totalização que a história faz de sua praxis. Este movimento original é que manifesta o projeto, que por sua vez precisa ser original para ser autêntico.