• Nenhum resultado encontrado

2. PREFÁCIO DE OS CONDENADOS DA TERRA

2.1 O que é o prefácio?

2.1.3 Violência enquanto problema filosófico

A violência não é um tema muito negligenciado pelas grandes narrativas da humanidade. No mundo ocidental, o surgimento da preocupação com a violência data do surgimento dos deuses e do mundo. Na mitologia grega, por exemplo, pelos cantos iniciais da Teogonia, de Hesíodo, a noção de violência confunde-se com a negação radical da ontologia ali presente: a violência está intimamente relacionada ao não-ser, como destruição do que é ou mesmo como o que se põe como início radical do que é (inclusive – e principalmente – do que é divino). É nessa esteira que o primeiro tragediógrafo de destaque – Ésquilo – faz questão de, na tragédia Prometeu Acorrentado,

101 “No século XIX, o marxismo é uma tentativa gigantesca não só de fazer a História, mas de assenhorear-se dela, do ponto de vista prático e teórico, unificando o movimento operário e iluminando a ação do proletariado pelo conhecimento do processo capitalista e da realidade objetiva dos trabalhadores. No termo desse esforço, pela unificação dos explorados e pela redução progressiva do número das classes em luta, a História deve ter, por fim, um sentido para o homem. Ao tomar consciência de si mesmo, o proletariado torna-se sujeito da História, isto é, ele deve reconhecer-se nela.” (SARTRE, 2002, p. 75)

colocar a Violência em cena, como aquela que junto ao Poder, acorrenta Prometeu a mando de Zeus. Interessantemente, em Ésquilo a Violência é uma personagem que está presente em cena, age – se expressa em atos – cumprindo uma ordem superior, mas não fala nada. Não há texto na tragédia que seja proferido pela personagem Violência, o que é totalmente o inverso sobre o Poder, que faz questão de enquanto presente, falar, criticar, julgar e condenar Prometeu.

Mesmo sendo presente na história da humanidade e sendo tratada de alguma forma em alguns textos antigos de renome, a violência não figurou na história da filosofia como um dos grandes temas a serem discutidos com a profundidade filosófica que foram, por exemplo, o amor, o conhecimento, a beleza, a justiça e a verdade.

O tema central do prefácio a’Os condenados da terra escrito em meados do século XX é de certo a violência. É nele que Sartre diz o seguinte:

se rejeitarmos a lenga-lenga fascista de Sorel, veremos que Fanon é o primeiro desde Engels a repor em cena a parteira da história. E não se creia que um sangue demasiado ardente ou desventuras da infância lhe tenham dado para a violência não sei que gosto singular: ele se faz o intérprete da situação, nada mais. Mas isso basta para que ele constitua, etapa por etapa, a dialética que a hipocrisia liberal oculta de nós e que nos produziu tanto quanto a ele. (FANON, 1979, p. 9)

Esta crítica de Sartre a George Sorel tem por alvo principalmente os escritos do autor, no livro Reflexões sobre a violência – publicado no início do século XX, onde o autor se guia pela pergunta a respeito do papel que cabe à violência nas relações sociais de sua época. O pequeno-burguês de Normandia defende não ser preciso examinar os efeitos da violência a partir dos resultados imediatos que ela pode produzir, mas sim das consequências longínquas da violência. Para este engenheiro aposentado,

Não é preciso perguntar se ela [a violência] pode ter para os operários atuais mais ou menos vantagens diretas do que uma habilidosa diplomacia, mas se perguntar o que resulta da introdução da violência nas relações do proletariado com a sociedade. Não comparamos dois métodos de reformismo,

mas queremos saber o que é a violência atual com relação à revolução social futura. (SOREL, 1993, p. 46)

Com esta pergunta retórica ao final do parágrafo fica nítido o posicionamento de Sorel em defesa de uma prática violenta que se exerça em nome de um ideal universalizante, uniformizante e longínquo, para não dizer catastroficamente utópico. Basta um pouco de vivência ou de observação atenta às relações sociais para notar que não é possível admitir esta projeção numa busca cega e apaixonada por uma suposta verdade universal da sociedade. Aceitar tal projeção da violência para “bons resultados” em um futuro distante é nada menos do que consentir com uma proposta de assassinatos e conflitos em massa da qual tanto proponente como apoiador também serão vítimas.

É visível que os processos de produção mudam constantemente e cada vez mais rápido na história da humanidade, o que altera as relações de trabalho e as relações interpessoais. Cristalizar o uso da violência de forma acrítica no presente visando um telos a longo prazo é cair na ilusão de que o futuro está dado e é imutável. Tal posicionamento só pode ser oriundo de uma visão de mundo autocrática e determinista.

Sartre toma Friedrich Engels como referencial do tema da violência na discussão político-filosófica, pois em seu livro O papel da violência na História (1896), o filósofo entendia a violência, consonante a Marx, como parteira da história. Para Engels, só há dois poderes decisivos na política: a violência organizada do Estado – o exército, e a violência inorganizada – elementar – das massas populares102.

Contudo, de Friedrich Engels (no século XIX) a Frantz Fanon (seu contemporâneo), Sartre parece não ter conhecimento ou, pelo menos, negligenciar as reflexões densas e potentes de Walter Benjamin (1982 – 1940) a respeito do tema da violência. Sobre este tema em Benjamin é possível sublinhar o ensaio “Para uma crítica da violência” sobre o qual não cabe aqui desenvolver uma explanação a respeito; entretanto, cabe frisar o fato de que

102 ENGELS, Friedrich. O papel da violência na história. São Paulo: Editorial Estampa, 1975, p. 43.

ao tratar da violência, Benjamin – em seu método desviante – se apoia nas narrativas míticas forjando interessantes e pertinentes conceitos como os de

“violência mítica” e “violência divina”. De toda forma, é a Fanon que Sartre atribui a apresentação do diagnóstico de uma Europa doente pela violência colonialista e pela opressão presente no colonialismo.