• Nenhum resultado encontrado

Considerações acerca do espaço onde foi realizada a pesquisa

A maioria das experiências relatadas durante a escrita desta pes- quisa foi vivenciada por mim no colégio que pertence à minha família que atende crianças da Educação Infantil (a partir dos três anos de idade) ao Ensino Fundamental ciclo I (de 1º ao 5º ano).

Essa instituição está localizada em um conhecido bairro da peri- feria de São Paulo, abordado pela mídia como um dos mais violen- tos da capital e com baixos índices de desenvolvimento humano. Os arredores não possuem bibliotecas nem livrarias, estando desassisti- dos quanto a espaços que estimulem a leitura, a criatividade e a busca de informação. Os serviços públicos de saúde, transporte e educação

ALEXANDRE PATRICIO DE ALMEIDA

não atendem satisfatoriamente toda a demanda local. A maior parte dos pais que possuem os filhos matriculados em escolas particulares nas redondezas trabalha no setor terciário, principalmente em casas de família ou pequenos comércios.

A falta de estrutura do bairro se reflete diretamente em nosso trabalho escolar, já que projetos que envolvem idas a cinemas, teatros, museus e bibliotecas se tornam ainda mais difíceis e custosos de se realizar por conta da dificuldade que temos de chegar nesses locais. Além disso, os encadeamentos de violência urbana também implicam no rendimento de nossos alunos, pois muitos acabam faltando em dias que a polícia faz operações específicas em determinadas ruas, ou ocorre algum homicídio.

Diversos alunos possuem pais divorciados, com um bom rela- cionamento entre eles; ao extremo em que outros desconhecem a identidade de seu “verdadeiro pai”. Algumas crianças possuem pais adolescentes, que despreparados para lidar com os compromissos da educação, entregam seus filhos aos cuidados dos avós (ou parentes mais próximos).

A maioria está matriculada em período integral, pois os pais passam o dia todo fora trabalhando – essa é uma das principais causas da elevada ausência em reuniões e festividades escolares. Como o grau de instrução das famílias é baixo, certas crianças não têm ajuda para realizar as tarefas de casa ou estudar para as avaliações. Alguns pais possuem problemas com vícios – bebidas e drogas ilícitas – e os estudantes acabam presenciando cenas de violência doméstica ocasio- nadas por essa conduta.

Foi esse cenário, comum em muitas escolas de nosso país, que instigou o meu pensamento a respeito de uma educação diferenciada. Trabalhando neste lugar tão farto de debilidades, comecei a pensar o quanto esses alunos precisariam ser assistidos e auxiliados, para que um dia pudessem ter a chance de se tornarem alguém na vida, cami- nhando na contramão das alternativas que lhe eram reservadas (como o mundo do crime e da falta de oportunidades, por exemplo).

UM EXEMPLO DE PESQUISA EM PSICANÁLISE APLICADA: CONTRIBUIÇÕES DE MELANIE KLEIN À EDUCAÇÃO ESCOLAR

Além da questão da violência presente em nosso meio externo, percebi que a falta de interação entre os pais, professores e alunos também era um fator que prejudicava intensamente a qualidade do ensino e a eficácia da aprendizagem. Sentindo-se desamparadas, as crianças desenvolviam formas de expressar as suas angústias e inse- guranças – ocasionadas por um ambiente aniquilador. A obrigação de se quebrar esse círculo prejudicial e ininterrupto era uma situação inadiável.

Passei, então, a me dedicar à formação da equipe docente. Ofereci um programa de escuta para os professores que consistiu em encontros semanais para discutirmos a situação real das crianças e as suas dificuldades. Além disso, começamos a realizar reuniões mensais que promoviam uma capacitação complementar: trabalhávamos com conceitos acerca do desenvolvimento infantil; temas de pedagogia e psicanálise; e, claro, as ideias referentes à constituição do psiquismo formuladas por Melanie Klein. Aliando a formação psicanalítica às minhas (e as nossas) experiências docentes, comecei a compor uma proposta de educação que pudesse compreender a alma humana; as dores, as dificuldades, os medos, as singularidades e as resistências que se manifestavam em nossa rotina escolar. Recorri à psicanálise, pois percebi que seu estudo me expandia ainda mais a reflexão sobre a causa do fracasso escolar, sem delegar a culpa a um único fator. Nesses encontros, também explorei a importância de ampliarmos o contato com os pais; trazê-los à escola, e conciliar diálogos que objeti- vassem a compreensão do universo particular de cada aluno.

A escrita desse texto me remeteu a um episódio que ocorrera nesse período de capacitação com a equipe docente. Em um dos encontros, uma professora aproveitou para manifestar a sua insatisfação com um deter- minado aluno: ele havia acabado de ingressar na escola; estava no terceiro ano e ainda tinha muitas dificuldades para escrever; não sabia distinguir algumas letras das outras; apresentava distorções na caligrafia e conse- cutivamente, complicações com a leitura. Perguntei à professora se ela já havia conversado com os pais do menino e ela, sem hesitar, respondera

ALEXANDRE PATRICIO DE ALMEIDA

que não. Mediante essa fala, sugeri que chamássemos estes pais à escola a fim de indicarmos a eles alguma intervenção que possibilitasse a diminui- ção das dificuldades dessa criança.

Somente a mãe do garoto pôde estar presente no dia da conversa – o pai trabalhava em dois horários e não poderia se ausentar. Após apre- sentarmos o que estava ocorrendo com o seu filho, ela desabou a chorar e disse que se sentia muito culpada, pois, na maioria das vezes, era ela quem ajudava o menino com as tarefas de casa, as quais ela possuía uma enorme dificuldade para entender, nos revelando, naquele momento, que só sabia escrever o seu próprio nome e que até hoje não aprendera a ler nem a escrever efetivamente.

O sentido da queixa da professora mudava diante daquela situa- ção. A compreensão da realidade daquela criança nos fez alterar o âmbito de nossos pensamentos (e atitudes). Ofereci àquela mãe, a oportunidade de deixar seu filho meia hora antes do horário de início das aulas, para que pudéssemos auxiliá-lo com as tarefas de casa naquele tempo. Ela con- cordou no mesmo instante e disse que ficava muito feliz com a ajuda da escola. Contou também que se propunha a levar o seu filho a qualquer especialista que indicássemos, para tentar ajudá-lo a superar as suas difi- culdades. O que não foi preciso, pois em três meses o garotinho estava acompanhando o restante da classe.

Ao decorrer da pesquisa, outras histórias como essa, foram utili- zadas como recortes práticos para a exemplificação da teoria, possibi- litando discuti-la e, também, desdobrá-la em distintas investigações. Histórias de uma prática que se pautou em mudar o sentido de uma educação marcada por desafios. Imagino que “proteger o indivíduo contra a atividade destrutiva que impera em nossa cultura” seja uma das chaves que abram a porta de uma educação mais centrada nos afetos e nos valores humanos. Dar importância, ao que é considerado sem importância, pode alterar o rumo do destino de muitas crianças que estariam fadadas ao fracasso.

O aluno é o centro da ação educativa. É nisso que devemos acre- ditar quando nos propomos a mudar as nossas atitudes e desconstruir

UM EXEMPLO DE PESQUISA EM PSICANÁLISE APLICADA: CONTRIBUIÇÕES DE MELANIE KLEIN À EDUCAÇÃO ESCOLAR

nossas antigas convicções. Klein acreditava nisso. Ela confiava vee- mente no potencial transformador das crianças, como podemos per- ceber na citação a seguir:

Algumas crianças tem um efeito integrador sobre toda a vida familiar. Sendo predominantemente amistosas e solícitas, elas melhoram a atmosfera da família. Observei que as mães muito impacientes e intolerantes em relação a dificuldades, melhoram pela influência de uma criança assim. O mesmo se aplica à vida escolar, onde algumas (...) crianças exercem um efeito benéfico sobre a atitude de todos os outros através de um tipo de lide- rança moral baseada em uma relação amistosa e cooperativa (...). (KLEIN, 1959/1996, p. 296)

Quando Freud nos trouxe a noção da existência de um apare- lho psíquico composto, em sua maior parte, por um complexo campo inconsciente, afirmando que o homem não seria o senhor de sua pró- pria casa, tirou o sujeito de sua posição narcísica centralizadora – o que o fez pensar sobre seus próprios limites e incapacidades. Melanie Klein difundiu essa ideia e ampliou os conceitos de Freud. Suas con- tribuições acerca do desenvolvimento do psiquismo infantil podem permitir ao professor cogitar as mais variadas estratégias que tenham como objetivo despertar as potencialidades conscientes e inconscien- tes de seus alunos; promovendo atividades que facilitem os processos de integração e o surgimento de sentimentos reparadores.

Ao compreender a realidade do aluno citado neste último caso, consegui me dispor a ajudar aquela mãe. Foi por me colocar no lugar dela e da angústia gerada por seu analfabetismo, que consegui pro- porcionar uma tentativa de preencher as lacunas que se formaram no âmbito cognitivo (e emocional) daquela criança. Não era só o fato de não saber ler que estava em jogo, mas o conjunto composto pelos sentimentos de vergonha, dor, ressentimento e culpa – aspectos afe- tivos que, inevitavelmente, sustentavam a relação com o seu filho. O quanto este sofrimento era despejado sobre o garoto? E o quanto ele

ALEXANDRE PATRICIO DE ALMEIDA

se sentia responsável por carregar esse “fantasma” que tanto assom- brava a sua mãe e que lhe era imposto através da incapacidade dela em auxiliá-lo com os deveres de casa?

O professor precisa conhecer as teorias do desenvolvimento, de aprendizagem, de personalidade que os livros ensinam. Mas precisa ter uma atitude permanente de investigador do ser em desenvolvimento e de sua própria prática. E o conhecimento que aí adquire – na prática – volta para enriquecer as teorias. Ou seja, psicologia e pedagogia, em suas relações, realizam um benefício mútuo. (ALMEIDA, 2012, p. 86)

Isso é subjetividade. É poder pensar no que está por trás de nossa pele, de nossas feições e dos relacionamentos que aparentam ser tão simples. Não é somente seguir à risca o que lemos nos livros – tratando-os como sagrados manuais de instrução. É aprender com a prática; investigar as possibilidades, no sentido em que a experiência nos atinge (e nos ensina). A psicanálise é um ponto cabal para o diá- logo com a pedagogia. É precisamente isso que procurei demonstrar pela investigação sustentada nesta dissertação.