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Ouvi uma menininha dizer que ela amava sua mãe mais do que todas as pessoas, pois o que faria ela se sua mãe não a tivesse dado à luz e alimentado? Este forte sentimento de gratidão estava ligado à sua capacidade de fruição e mostrava-se em seu caráter e em suas relações com outras pessoas particularmente pela generosidade e consideração. (KLEIN, 1959/1996, p. 288)

O processo de escrita pode ser muito difícil e doloroso. É incrível como nos tornamos resistentes para registrar as nossas experiências e atribuirmos alguma utilidade a elas. O método de transcrição por si só já é muito árduo. Faltam-nos palavras, ideias, sentidos e assimila- ções. O texto, às vezes, precisa ser esquecido, deixado de lado, para

UM EXEMPLO DE PESQUISA EM PSICANÁLISE APLICADA: CONTRIBUIÇÕES DE MELANIE KLEIN À EDUCAÇÃO ESCOLAR

ser retomado e reelaborado. Lemos, relemos e percebemos que ainda não está bom, que ainda poderíamos ter dado um pouco mais de nós (uma fantasia de totalidade que nos assombra permanentemente).

Fico preocupado quando um aluno meu que está cursando a graduação em pedagogia me vem contar que considera as matérias de psicologia tão complexas; ao mesmo tempo em que ouço dos meus alunos de psicologia que a psicanálise é difícil demais para se entender com as leituras. Penso, no entanto, que é justamente a complexidade que enriquece a nossa formação. Apesar disso, paradoxalmente, um raciocínio mais complexo parte da simplicidade, da clareza do enten- dimento de conceitos profundos. Como diria Piaget (1964/2014, p. 3): “o desenvolvimento, portanto, é uma equilibração progres- siva, uma passagem contínua de um estado de menor equilíbrio para um estado de equilíbrio superior”. Aprendemos através da constru- ção de estruturas. Essa construção não abarca somente os critérios cognitivos, mas, também, o nosso investimento de afeto, de paixão. Aprendemos com mais facilidade aquilo que gostamos.

Enquanto escrevia essa pesquisa, uma das angústias que me aco- meteu foi a de como tornar a teoria de Melanie Klein clara, acessível e prazerosa para a leitura de um professor. Como essa teoria poderia ajudar um educador a repensar e transformar a sua ação educativa? Não me prendi a responder isso de maneira completa, pois acredito que a completude plena não exista. Bion (1963), um psicanalista que fez grande uso das ideias de Klein, escreve citando Maurice Blanchot: “a resposta é a desgraça da pergunta”. É a pergunta que nos movimenta a pensar, a pesquisar e a buscar respostas. Respostas que continuam em movimento no nosso interior. Esse movimento é o que sustenta as nossas transformações.

Ao fazer uso de uma teoria tão interessante, mas tão intricada, procurei me valer das minhas próprias vivências. Não sei se consegui. Não sei se fui capaz de despertar no leitor o meu encantamento pela genialidade de Klein. Espero, ao menos, ter suscitado certo interesse por sua obra. Isso, para mim, já seria mais que o suficiente. Ficaria feliz em saber que um aluno de pedagogia estivera lendo Melanie Klein

ALEXANDRE PATRICIO DE ALMEIDA

para compreender as raízes psíquicas de seus alunos. Psiquismo esse que se manifesta com tanta incidência no meio escolar e que constitui a nossa própria essência.

Chegando até aqui, me dei conta do quanto foi complicado ela- borar essa dissertação, mas foram justamente essas dificuldades que me fizeram perceber o quanto uma educação mais humana precisa ser elaborada. Quando Klein nos convida a pensar sobre a constitui- ção primária do psiquismo, ela planta em nós um olhar que consiste na compreensão de que a personalidade, o caráter e as nossas atitudes atuais, possuem sua origem em questões muito mais profundas e ini- ciais. Que aquela criança que foi privada de cuidado e/ou que sofreu uma criação negligente, poderá desenvolver algumas consequências disso, sendo a maioria delas, bastante negativas. Entretanto, a escola pode desviar o curso deste rio. Ao escutar e acolher os seus alunos, essa instituição promoverá a possibilidade de abarcar os aspectos individuais e sociais em um todo, dando outro significado às estrutu- ras que se ergueram com as primeiras experiências.

Começo estas “Considerações Finais” com uma citação de Melanie Klein, em que ela, mais uma vez, salienta o valor da grati- dão para a instauração de nossa capacidade de amar e se relacionar com os outros. “A gratidão faz a pessoa feliz e livre de ressentimento e inveja”, ela dirá em seu texto de 19595. Uma leitura atenta de sua obra nos permite compreender que o ressentimento e a inveja estão liga- dos aos mecanismos de agressividade e destrutividade, dificultando os processos de integração do ego. Caminhando pelos trajetos traça- dos por essa psicanalista, conseguimos entender o quanto sofre uma criança que é assolada por seus impulsos agressivos – principalmente, quando estes não são compreendidos e integrados à essência de sua personalidade. Além disso, essa destrutividade pode ser um empe- cilho para a estabilização das relações sociais, além de comprometer os ímpetos criativos do sujeito. Ao se dedicar em compreender o seu

5 Nosso mundo adulto e suas raízes na infância – para mim, um dos textos mais belos de Melanie Klein, publicado, originalmente, em 1959.

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aluno – sobretudo, aquele mais “difícil” – o professor se envolve numa prática de amor que conquista, entre muitas coisas boas, a instalação de afeto e a admiração por parte da criança.

Agradecemos por algo que recebemos com amor. Por mais que nossos instintos agressivos e vorazes sejam acentuados, tendemos a diminuí-los ao passo em que somos acolhidos e compreendidos. Em alguns anos de docência, tive o prazer de receber ao final do período letivo, textos e declarações de meus alunos que diziam: “professor, obri- gado por ter compartilhado o seu conhecimento conosco”. Essa gratidão permitia aos meus alunos as mais incríveis elaborações e aprendiza- gens. Ao mesmo tempo em que esse ambiente de inclusão e respeito nos assegurava a estabilidade emocional obtida por uma relação con- fiante e transformadora.

Penso ainda que, para que haja, de fato, um atravessamento na educação pelo discurso psicanalítico; para que se crie uma cons- ciência da existência do inconsciente como pertencente à unidade psíquica (e formador da cultura), é preciso que os sujeitos envol- vidos nesse processo passem, também, por uma experiência psica- nalítica – como a análise pessoal, por exemplo. Porém, a inserção neste campo teórico, já pode ser o passo inicial para entendermos tal dimensão. Ao conceber o ensino como um potencial de trans- missão de valores, admitimos a influência que ele possui sobre os processos de constituição do ser humano. Neste sentido, obtemos a realização de uma psicanálise, decifrada em sua dimensão indireta, mas sem deixar de cumprir o seu principal papel: tocar o outro de forma transformadora (assim como fui tocado pelo brilhantismo do arcabouço desenvolvido por Melanie Klein).

Referências

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ALEXANDRE PATRICIO DE ALMEIDA

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Má integração da agressividade